INFLUÊNCIA DA MICROBIOTA INTESTINAL NA FISIOPATOLOGIA DAS DISFUNÇÕES METABÓLICAS ASSOCIADAS À OBESIDADE: UMA REVISÃO INTEGRATIVA

INFLUENCE OF GUT MICROBIOTA ON THE PATHOPHYSIOLOGY OF METABOLIC DYSFUNCTIONS ASSOCIATED WITH OBESITY: AN INTEGRATIVE REVIEW

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202512040856


Kathleen Coelho Vieira Moreno


Resumo

A obesidade é uma condição multifatorial, em crescente prevalência global, associada a inflamação crônica de baixo grau, resistência à insulina, diabetes tipo 2 e doença hepática gordurosa não alcoólica. Nas últimas décadas, a microbiota intestinal emergiu como um componente relevante na rede de fatores que sustentam essas disfunções, influenciando a extração de energia da dieta, a integridade da barreira intestinal, a resposta inflamatória e o metabolismo de metabólitos como os ácidos graxos de cadeia curta.

Este artigo tem como objetivo integrar a produção científica recente sobre a relação entre microbiota intestinal, obesidade e complicações cardiometabólicas, discutindo mecanismos fisiopatológicos e implicações terapêuticas. Foi realizada uma revisão integrativa nas bases PubMed/MEDLINE, Scopus, Web of Science e SciELO, contemplando artigos publicados entre 2000 e dezembro de 2023, com foco em estudos experimentais, clínicos e revisões sobre microbiota intestinal e obesidade. De forma geral, a disbiose observada em indivíduos obesos caracteriza-se por menor diversidade microbiana, alteração em grupos bacterianos dominantes, redução de bactérias produtoras de butirato e aumento de espécies potencialmente pró-inflamatórias.

Apesar de resultados promissores com intervenções baseadas em dieta, prebióticos, probióticos, simbióticos e transplante de microbiota fecal, a heterogeneidade metodológica e a variabilidade interindividual ainda limitam recomendações firmes. A revisão reforça que a microbiota intestinal deve ser vista como um eixo modulador relevante – e não como explicação única – para a obesidade e suas complicações metabólicas.

Palavras-chave: microbiota intestinal; obesidade; endotoxemia metabólica; ácidos graxos de cadeia curta; inflamação; resistência à insulina.

Abstract

Obesity is a multifactorial condition with rising global prevalence and is associated with low-grade chronic inflammation, insulin resistance, type 2 diabetes and non-alcoholic fatty liver disease. Over the last two decades, the gut microbiota has emerged as an important component in this network, influencing energy harvest from diet, intestinal barrier integrity, inflammatory responses and the metabolism of short-chain fatty acids.

This integrative review aims to synthesize recent scientific evidence on the relationship between gut microbiota, obesity and cardiometabolic complications, highlighting pathophysiological mechanisms and therapeutic implications. A literature search was conducted in PubMed/MEDLINE, Scopus, Web of Science and SciELO for studies published between 2000 and December 2023, including experimental, clinical and review articles. Overall, dysbiosis in obese individuals is characterized by reduced microbial diversity, shifts in dominant bacterial groups, decreased abundance of butyrate-producing bacteria and increased potentially pro-inflammatory species.

Although dietary modulation, prebiotics, probiotics, synbiotics and fecal microbiota transplantation show promising results, methodological heterogeneity and high inter-individual variability still limit robust clinical recommendations. The evidence supports the view that the gut microbiota acts as a modulatory axis rather than a single cause of obesity and its metabolic complications.

Keywords: gut microbiota; obesity; metabolic endotoxemia; short-chain fatty acids; inflammation; insulin resistance.

1 Introdução

A obesidade consolidou-se como um dos principais desafios de saúde pública do século XXI, com aumento consistente de prevalência entre adultos, adolescentes e crianças em diferentes regiões do mundo. Estima-se que a frequência de obesidade tenha praticamente triplicado desde a década de 1970, refletindo mudanças profundas nos padrões alimentares, na urbanização e nos níveis de atividade física. A compreensão contemporânea do problema afasta-se de interpretações puramente comportamentais, reconhecendo que a obesidade resulta da interação complexa entre fatores genéticos, ambientais, socioeconômicos, culturais e biológicos (Tilg; Kaser, 2011).

Nesse cenário, a microbiota intestinal – o conjunto de trilhões de microrganismos que habitam o trato gastrointestinal – passou de coadjuvante pouco lembrado a protagonista frequente nas discussões sobre fisiopatologia metabólica. Estudos em animais germ-free demonstraram que a ausência de microbiota obriga os animais a consumir mais calorias para manter o peso corporal, sugerindo que os microrganismos intestinais participam ativamente da extração de energia da dieta (Shen; Obin; Zhao, 2013). Em paralelo, análises metagenômicas revelaram que o “microbioma obeso” apresenta maior capacidade de degradação de polissacarídeos e produção de metabólitos energéticos, em comparação a microbiotas de indivíduos magros (Turnbaugh et al., 2006).

Além do papel na colheita de energia, a microbiota participa da manutenção da integridade da barreira intestinal, da modulação da resposta imune e da produção de metabólitos com impacto sistêmico, como os ácidos graxos de cadeia curta (SCFAs), que influenciam diretamente a inflamação e a sensibilidade à insulina (Silva; Bernardes; Rossato, 2020). A partir da década de 2000, o conceito de “endotoxemia metabólica” – caracterizada pelo aumento crônico de lipopolissacarídeo (LPS) circulante em resposta à dieta hiperlipídica – trouxe um elo plausível entre disbiose intestinal, inflamação de baixo grau e resistência à insulina.

Ao mesmo tempo, o campo avançou o suficiente para mostrar que a relação microbiota–obesidade está longe de ser linear. Resultados conflitantes quanto à razão Firmicutes/Bacteroidetes, diferenças metodológicas entre estudos, variabilidade individual e influência de fatores como uso de antibióticos, padrão alimentar, sono e estresse apontam para um quadro complexo, no qual a microbiota é parte de uma rede de causalidade, e não um gatilho isolado.

Diante desse panorama, o presente artigo busca responder a duas perguntas centrais: (a) como as alterações da microbiota intestinal contribuem para a fisiopatologia das disfunções metabólicas associadas à obesidade? e (b) em que medida intervenções que modulam a microbiota podem ser incorporadas de forma realista às estratégias de prevenção e tratamento? Para tanto, adotou-se o desenho de revisão integrativa, que permite reunir e interpretar evidências de naturezas diferentes (estudos experimentais, observacionais e ensaios clínicos), mantendo um eixo analítico centrado em mecanismos fisiopatológicos.

2 Estado da arte: microbiota intestinal, obesidade e disfunções metabólicas

2.1 Características gerais da microbiota em indivíduos obesos

A maior parte dos estudos aponta que a obesidade é acompanhada de redução da diversidade microbiana e de alterações em grupos bacterianos dominantes. Em média, observa-se perda de riqueza gênica e perfis microbianos associados a maior inflamação de baixo grau e pior controle glicêmico (Tilg; Kaser, 2011; Liu et al., 2021).

Em uma grande coorte europeia, Le Chatelier et al. (2013) identificaram subgrupos de indivíduos com alta e baixa riqueza gênica da microbiota intestinal. Aqueles com baixa riqueza – cerca de um quarto da amostra – apresentavam maior índice de massa corporal, resistência à insulina mais acentuada, dislipidemia e níveis mais elevados de marcadores inflamatórios, indicando que a perda de diversidade pode funcionar como marcador de risco cardiometabólico.

De forma mais fina, revisões recentes descrevem, em indivíduos obesos, redução de bactérias produtoras de butirato – como Faecalibacterium prausnitzii e Roseburia spp. – e aumento de grupos potencialmente pró-inflamatórios, incluindo algumas Proteobacteria (Sarmiento-Andrade et al., 2022). No entanto, a inconsistência de resultados em relação a táxons específicos, e em especial à razão Firmicutes/Bacteroidetes, sugere que a simples contagem de grupos bacterianos é insuficiente para capturar a complexidade da associação entre microbiota e obesidade.

2.2 Regulação do balanço energético e SCFAs

Do ponto de vista metabólico, a microbiota intestinal amplia o repertório enzimático do hospedeiro, permitindo a fermentação de carboidratos não digeríveis e a produção de SCFAs – principalmente acetato, propionato e butirato. Esses metabólitos podem ser absorvidos e utilizados como fonte de energia, além de atuarem como sinalizadores metabólicos em tecidos periféricos e no sistema imune (Silva; Bernardes; Rossato, 2020).

Em condições fisiológicas, o butirato é a principal fonte de energia para colonócitos e exerce efeitos anti-inflamatórios, enquanto acetato e propionato participam da lipogênese e da gliconeogênese. Em contextos de obesidade, porém, estudos apontam perfis alterados de SCFAs fecais e plasmáticos, com aumento global da produção em alguns casos e redução relativa de butirato em outros (Almeida; Ejtahed; Larijani, 2020). Essas alterações podem refletir tanto maior capacidade de extração de energia da dieta quanto mudanças na sinalização via receptores GPR41 e GPR43, influenciando saciedade, adipogênese e sensibilidade à insulina.

2.3 Endotoxemia metabólica, inflamação e resistência à insulina

O conceito de endotoxemia metabólica surgiu a partir de estudos que demonstraram aumento crônico de LPS circulante em animais alimentados com dietas ricas em gordura, em níveis duas a três vezes superiores aos observados em dietas normolipídicas (Cani et al., 2007). Esse aumento foi suficiente para desencadear inflamação de baixo grau, resistência à insulina e acúmulo de gordura em tecidos periféricos, mesmo na ausência de ganho ponderal extremo.

Mecanisticamente, a disbiose induzida pela dieta pode reduzir a integridade da barreira intestinal, alterar a produção de muco e diminuir a abundância de bactérias associadas à proteção da mucosa. Como consequência, componentes da parede bacteriana, como o LPS, atravessam com mais facilidade a mucosa e alcançam a circulação portal e sistêmica, ativando receptores Toll-like em macrófagos, adipócitos e hepatócitos. Esse estímulo crônico alimenta um estado inflamatório discreto, mas persistente, que contribui para a instalação de resistência à insulina e para a progressão de complicações cardiometabólicas (Cox; West; Cripps, 2015; Moreira et al., 2012).

2.4 Eixo intestino–cérebro e controle do apetite

A microbiota também participa do eixo intestino–cérebro por meio de múltiplas rotas: produção de SCFAs, modulação de hormônios intestinais (GLP-1, PYY, grelina), síntese de neurotransmissores e sinalização via nervo vago. Esses sinais chegam ao sistema nervoso central e podem alterar circuitos de recompensa, percepção de saciedade e resposta ao estresse.

Embora essa área ainda esteja em desenvolvimento, há evidências de que alterações na microbiota podem modificar a sensibilidade a sinais orexigênicos e anorexigênicos e influenciar a expressão de receptores de leptina e insulina em núcleos hipotalâmicos, criando um contexto em que a defesa biológica do peso corporal se torna mais favorável à manutenção da obesidade (Liu et al., 2021).

3 Método

3.1 Desenho da revisão

Foi conduzida uma revisão integrativa, escolhida por permitir a síntese de resultados provenientes de diferentes desenhos de estudo (experimentais, observacionais, ensaios clínicos e revisões) em torno de uma mesma questão norteadora. A pergunta que guiou a revisão foi: “Como a microbiota intestinal influencia a fisiopatologia das disfunções metabólicas associadas à obesidade e quais implicações terapêuticas decorrem desse conhecimento?”.

3.2 Estratégia de busca

A busca foi realizada nas bases PubMed/MEDLINE, Scopus, Web of Science e SciELO entre setembro e dezembro de 2023. Empregaram-se descritores em inglês combinados por operadores booleanos, incluindo “gut microbiota” OR “intestinal microbiota” AND “obesity” OR “overweight” AND “insulin resistance” OR “metabolic syndrome” OR “type 2 diabetes” OR “non-alcoholic fatty liver disease”. Termos adicionais como “short-chain fatty acids”, “metabolic endotoxemia”, “bile acids”, “probiotics”, “prebiotics” e “fecal microbiota transplantation” foram utilizados para refinar a busca em temas específicos.

O recorte temporal contemplou publicações de janeiro de 2000 a dezembro de 2023, período em que se consolidou a literatura moderna sobre microbiota e obesidade.

3.3 Critérios de inclusão e exclusão

Foram incluídos estudos que:
a) apresentassem dados sobre composição ou função da microbiota intestinal em indivíduos com obesidade ou em modelos experimentais de obesidade;
b) investigassem mecanismos fisiopatológicos relacionados à inflamação, resistência à insulina, dislipidemia, doença hepática gordurosa não alcoólica ou alterações do eixo intestino–cérebro; ou
c) avaliassem intervenções voltadas à modulação da microbiota (alterações dietéticas, prebióticos, probióticos, simbióticos, transplante de microbiota fecal) com desfechos relacionados ao peso corporal, à sensibilidade à insulina ou a outros marcadores metabólicos.

Foram excluídos artigos que não apresentassem dados originais ou sínteses explícitas sobre microbiota e obesidade, que se restringissem a condições sem interface metabólica ou que estivessem em idiomas diferentes de inglês, espanhol ou português.

3.4 Extração e síntese dos dados

Dos estudos selecionados, extraíram-se informações sobre tipo de estudo, população ou modelo experimental, métodos de avaliação da microbiota (por exemplo, sequenciamento 16S rRNA, metagenômica, metabolômica), principais achados sobre composição microbiana, metabólitos relevantes, desfechos metabólicos e resultados de intervenções dietéticas ou microbianas.

A síntese foi conduzida de forma narrativa, agrupando os achados em eixos temáticos: composição e diversidade microbiana, metabolismo energético e SCFAs, endotoxemia metabólica e inflamação, eixo intestino–cérebro e intervenções terapêuticas. Quando disponíveis, revisões sistemáticas e meta-análises foram privilegiadas como base para discussões mais amplas.

3.5 Limitações metodológicas

Como revisão integrativa, o estudo não seguiu todas as etapas de uma revisão sistemática clássica, como registro prévio de protocolo ou avaliação quantitativa de risco de viés para cada estudo incluído. Além disso, há grande heterogeneidade nos métodos de sequenciamento, nas populações investigadas, nos hábitos alimentares e nos critérios diagnósticos de obesidade e de comorbidades, o que dificulta comparações diretas entre trabalhos (Liu et al., 2021; Zsálig et al., 2023). Ainda assim, o desenho adotado permite uma visão ampla e crítica do campo, adequada ao objetivo de discutir mecanismos e implicações clínicas.

4 Resultados da revisão

4.1 Composição microbiana e diversidade em obesidade

De maneira geral, os estudos convergem quanto à associação entre obesidade, menor diversidade microbiana e perfis de disbiose relacionados a inflamação e resistência à insulina (Tilg; Kaser, 2011; Liu et al., 2021). A coorte analisada por Le Chatelier et al. (2013), por exemplo, mostrou que indivíduos com baixa riqueza gênica da microbiota apresentavam não apenas maior IMC, mas também pior perfil metabólico e inflamatório.

Em diversos trabalhos, emergem padrões recorrentes: queda de bactérias produtoras de butirato, aumento de determinados Firmicutes e maior participação de Proteobacteria em indivíduos obesos (Sarmiento-Andrade et al., 2022). Essas alterações, embora não universais, sugerem que o ecossistema intestinal em obesidade se organiza de forma a favorecer maior eficiência na extração de energia e um ambiente inflamatório mais ativo.

Ao mesmo tempo, o fato de nem todos os estudos confirmarem as mesmas mudanças taxonômicas indica que a composição, isoladamente, talvez seja menos importante do que as funções que essa comunidade exerce. Por isso, abordagens que combinam dados taxonômicos, funcionais e metabolômicos têm ganhado importância (Almeida; Ejtahed; Larijani, 2020).

4.2 Metabólitos microbianos: SCFAs, ácidos biliares e outros

SCFAs são um eixo central na interface microbiota–metabolismo. Em condições fisiológicas, o acetato contribui para lipogênese periférica e síntese de colesterol, o propionato atua sobretudo como substrato gliconeogênico hepático, e o butirato sustenta a função de colonócitos e exerce efeitos anti-inflamatórios. 

Em obesidade, estudos mostram perfis alterados de SCFAs fecais e plasmáticos, embora a direção dessas alterações varie entre investigações. Algumas evidências apontam para aumento global de SCFAs em indivíduos obesos – sugerindo maior capacidade de extração de energia – concomitante à redução de butirato e alterações na expressão de receptores GPR41/GPR43, o que pode favorecer inflamação e adipogênese. 

Outro eixo relevante envolve os ácidos biliares secundários, produzidos pela microbiota a partir de ácidos biliares primários. Esses metabólitos atuam como ligantes de receptores como FXR e TGR5, modulando a secreção de incretinas, o gasto energético e a sensibilidade à insulina. Alterações na microbiota podem, portanto, remodelar o “pool” de ácidos biliares, influenciando o balanço entre armazenamento e oxidação de gordura. 

Metabólitos derivados de aminoácidos, como indóis e trimetilamina-N-óxido (TMAO), também têm sido implicados na interface microbiota–metabolismo, com associações descritas entre TMAO, risco cardiovascular e resistência à insulina, embora os mecanismos específicos ainda estejam em investigação. 

4.3 Permeabilidade intestinal, endotoxemia e inflamação

Modelos animais mostram que dietas ricas em gordura alteram a composição da microbiota, aumentam a permeabilidade intestinal e elevam o LPS circulante, configurando a chamada endotoxemia metabólica (Cani et al., 2007). Esse estado se associa a maior expressão de marcadores inflamatórios em tecido adiposo, fígado e músculo, contribuindo para a instalação de resistência à insulina.

Em humanos, níveis elevados de LPS ou de proteínas ligantes de LPS foram descritos em indivíduos com obesidade, síndrome metabólica e diabetes tipo 2, relacionando-se a maior circunferência abdominal e pior perfil inflamatório. Embora a causalidade seja mais difícil de demonstrar em humanos, o conjunto dos achados sugere que a perda da integridade da barreira intestinal e a translocação de componentes bacterianos são peças importantes do quebra-cabeça.

A modulação da microbiota por meio de prebióticos, dietas ricas em fibras e redução de ultraprocessados parece capaz de atenuar a endotoxemia e melhorar marcadores inflamatórios em alguns estudos, reforçando o vínculo entre ecologia intestinal e inflamação sistêmica (Moreira et al., 2012).

4.4 Microbiota e complicações cardiometabólicas

Revisões focadas em obesidade, diabetes tipo 2 e NAFLD convergem para a noção de que alterações da microbiota não apenas acompanham essas condições, mas participam ativamente de sua fisiopatologia. Em NAFLD, por exemplo, observa-se aumento de bactérias capazes de produzir etanol endógeno, aumento da permeabilidade intestinal e ativação de receptores inflamatórios hepáticos, contribuindo para esteatose e progressão para esteato-hepatite. 

Na diabetes tipo 2, estudos apontam para redução de bactérias produtoras de butirato e aumento de espécies como Ruminococcus gnavus e certas Proteobacteria, associadas a inflamação e resistência à insulina. A coexistência de obesidade, disbiose, endotoxemia e resistência à insulina sugere um núcleo fisiopatológico compartilhado, no qual a microbiota funciona como modulador de risco.

4.5 Evidências de intervenção: dieta, prebióticos, probióticos, simbióticos e TMF

4.5.1 Intervenções dietéticas

Dietas ricas em fibras, alimentos integrais e padrão mediterrâneo associam-se a maior diversidade microbiana, aumento de bactérias produtoras de SCFAs e melhor perfil metabólico. Por outro lado, o padrão ocidental, rico em gorduras saturadas, açúcares refinados e ultraprocessados, favorece disbiose, permeabilidade intestinal e inflamação. 

Estudos de intervenção em humanos mostram que mudanças alimentares podem alterar a composição da microbiota em semanas, com repercussões em SCFAs, peso corporal e marcadores metabólicos, embora os resultados variem conforme o contexto e a adesão. 

4.5.2 Prebióticos e probióticos

Prebióticos como inulina, fruto-oligossacarídeos e galacto-oligossacarídeos estimulam seletivamente o crescimento de bactérias benéficas (por exemplo, Bifidobacterium), com efeitos observados sobre SCFAs, integridade da mucosa e inflamação em modelos animais e em alguns estudos clínicos. 

Quanto aos probióticos, revisões sistemáticas e meta-análises indicam um efeito modesto, porém consistente, na redução de peso corporal, IMC e circunferência de cintura em indivíduos com sobrepeso e obesidade, especialmente com combinações de cepas de Lactobacillus e Bifidobacterium, muitas vezes em formulações multiespécies. Entretanto, há heterogeneidade nos resultados, e os benefícios parecem depender de cepas específicas, dosagem, duração e contexto dietético.

4.5.3 Akkermansia muciniphila e novas abordagens

Akkermansia muciniphila, bactéria degradadora de mucina localizada na camada de muco intestinal, ganhou destaque por sua associação inversa com obesidade, resistência à insulina e inflamação. Em estudo piloto randomizado, Depommier et al. demonstraram que a suplementação oral de A. muciniphila pasteurizada foi segura, bem tolerada e associada a melhora de sensibilidade à insulina, redução de colesterolemia e tendência à redução de peso em indivíduos com sobrepeso e resistência à insulina. 

Esse e outros achados suscitam a possibilidade de “probióticos de próxima geração”, baseados em espécies-chave ou consórcios microbianos personalizados, embora ainda seja cedo para extrapolações clínicas amplas.

4.5.4 Transplante de microbiota fecal (TMF)

O TMF, bem estabelecido no tratamento de infecção recorrente por Clostridioides difficile, tem sido explorado em contexto metabólico. Em ensaio clínico cruzado, Vrieze et al. mostraram que o TMF de doadores magros para indivíduos com síndrome metabólica aumentou significativamente a sensibilidade à insulina e a abundância de bactérias produtoras de butirato seis semanas após o procedimento. 

Apesar dos resultados animadores, o uso do TMF para obesidade e síndrome metabólica ainda é experimental, com desafios relacionados à padronização de protocolos, seleção de doadores, segurança a longo prazo e estabilidade das mudanças microbianas.

5 Discussão

5.1 Força e consistência das associações

O conjunto de evidências acumuladas ao longo das últimas duas décadas sustenta, com razoável consistência, que a microbiota intestinal participa da fisiopatologia da obesidade e de suas complicações metabólicas. Estudos em animais germ-free, experimentos de colonização cruzada, análises metagenômicas em humanos e ensaios clínicos com intervenções dirigidas convergem para a ideia de que a microbiota não é um mero marcador passivo, mas um componente ativo da rede metabólica. 

Entretanto, a força da associação varia conforme o desfecho analisado, o desenho do estudo e a população. A clássica narrativa do “microbioma obeso” com aumento de Firmicutes e redução de Bacteroidetes, por exemplo, mostrou-se insuficiente para explicar a diversidade de achados, o que levou a um deslocamento do foco da taxonomia para funções metabólicas e perfis de metabólitos. 

5.2 Causalidade, heterogeneidade e controvérsias

Uma questão central diz respeito à causalidade: a disbiose é causa, consequência ou ambas as coisas no curso da obesidade? Modelos experimentais sugerem que microbiotas de animais ou humanos obesos podem induzir ganho de adiposidade quando transferidas para receptores germ-free, o que é um forte indício de causalidade. Por outro lado, mudanças rápidas na microbiota em resposta à dieta apontam para o papel modulador do ambiente: o que comemos, como dormimos e que medicamentos usamos influenciam fortemente o ecossistema intestinal. 

Os resultados conflitantes em relação a táxons específicos – e mesmo quanto à direção das mudanças em SCFAs – refletem diferenças em métodos de sequenciamento, normalização de dados, definição de obesidade, controle de dieta e variáveis de confusão (como uso de antibióticos e comorbidades). Essas heterogeneidades exigem cautela ao extrapolar achados e reforçam a necessidade de protocolos mais padronizados.

5.3 Implicações clínicas: onde a microbiota entra na prática?

Do ponto de vista clínico, a principal mensagem é que a microbiota amplia o repertório de alvos terapêuticos para o manejo da obesidade, sem substituir pilares já estabelecidos, como mudança de estilo de vida, farmacoterapia e, em casos selecionados, cirurgia bariátrica. Intervenções dietéticas que favorecem maior diversidade microbiana – com maior consumo de fibras, leguminosas, vegetais, frutas e alimentos minimamente processados – parecem ser uma forma de “tratamento microbiota-dirigido” de baixo custo e baixo risco, com benefícios demonstrados em múltiplos desfechos. 

Prebióticos e probióticos, por sua vez, mostram efeitos modestos, mas relevantes, sobretudo como coadjuvantes. Meta-análises sinalizam pequenas reduções em peso, IMC e circunferência abdominal, bem como melhorias em alguns marcadores inflamatórios e de sensibilidade à insulina, a depender da cepa e do desenho do estudo. É improvável que probióticos isoladamente sejam suficientes para tratar obesidade, mas podem ser integrados em estratégias multidisciplinares.

No campo dos “probióticos de próxima geração”, espécies como A. muciniphila oferecem um vislumbre de abordagens mais específicas, embora ainda restritas a estudos de fase inicial. Já o TMF, apesar de resultados promissores em termos de sensibilidade à insulina, enfrenta barreiras regulatórias, logísticas e de segurança que limitam seu uso rotineiro em obesidade. 

5.4 Perspectivas futuras

O avanço de técnicas multiômicas (metagenômica, metatranscriptômica, metabolômica) tende a refinar a compreensão da microbiota associada à obesidade, permitindo identificar assinaturas funcionais mais robustas do que aquelas baseadas em táxons isolados. A integração desses dados com informações genéticas, epigenéticas e de estilo de vida pode abrir caminho para estratégias de medicina de precisão, em que intervenções dietéticas e microbianas sejam personalizadas.

Outra frente promissora envolve o desenvolvimento de consórcios microbianos definidos – “cápsulas de microbiota” – desenhados para restaurar funções específicas, como produção de butirato, modulação de ácidos biliares ou redução de endotoxemia. No entanto, para que essas estratégias saiam do laboratório e ganhem espaço em diretrizes clínicas, serão necessários ensaios clínicos maiores, bem controlados e com acompanhamento de longo prazo.

6 Modelo integrativo microbiota–obesidade (MIM-O): uma proposta conceitual

À luz das evidências revisadas, é possível esquematizar um modelo integrativo – aqui denominado MIM-O (Modelo Integrativo Microbiota–Obesidade) – que organize os principais eixos pelos quais a microbiota contribui para as disfunções metabólicas associadas à obesidade.

No primeiro eixo, “Balanço energético e SCFAs”, a microbiota de indivíduos com obesidade apresenta maior capacidade de degradação de polissacarídeos e produção de SCFAs, o que aumenta a eficiência de extração de energia da dieta. Em combinação com um ambiente alimentar hipercalórico, esse ganho de eficiência contribui para excedente energético crônico e aumento da adiposidade. 

No segundo eixo, “Barreira intestinal e endotoxemia”, a disbiose reduz a abundância de bactérias produtoras de butirato e espécies associadas à integridade da mucosa (como A. muciniphila), favorecendo o afrouxamento das junções epiteliais. Esse cenário facilita a translocação de LPS e outros componentes microbianos, alimentando um estado de inflamação de baixo grau que impacta tecidos como fígado, músculo e tecido adiposo, culminando em resistência à insulina. 

O terceiro eixo, “Metabolismo hepático e ácidos biliares”, envolve a modulação da síntese e transformação de ácidos biliares, com efeitos sobre receptores nucleares e de membrana (FXR, TGR5) que regulam tanto a homeostase glicídica e lipídica quanto o gasto energético. Alterações nessa via podem favorecer a deposição de gordura hepática, a dislipidemia e a progressão para NAFLD. 

Por fim, o quarto eixo, “Eixo intestino–cérebro e comportamento alimentar”, destaca que a microbiota influencia a sinalização de saciedade, a resposta ao estresse e os circuitos de recompensa, modulando a probabilidade de padrões alimentares hiperpalatáveis e de dificuldade em manter a perda de peso. 

O MIM-O não se propõe a substituir modelos clássicos que enfatizam balanço energético, genética ou ambiente, mas a dialogar com eles, adicionando um plano microbiano à compreensão da obesidade. Do ponto de vista prático, ele sugere que intervenções bem-sucedidas tendem a atuar simultaneamente sobre múltiplos eixos – por exemplo, combinando dieta rica em fibras, redução de ultraprocessados, probióticos ou prebióticos e estratégias comportamentais – em vez de buscar “atalhos” em um alvo único.

7 Considerações finais

A literatura analisada indica, de forma consistente, que a microbiota intestinal é um componente relevante na trama que liga obesidade, inflamação crônica de baixo grau, resistência à insulina e complicações cardiometabólicas. Diversidade e composição microbiana, produção de SCFAs, integridade da barreira intestinal, endotoxemia metabólica, metabolismo de ácidos biliares e eixo intestino–cérebro formam um conjunto de vias pelas quais microrganismos e hospedeiro co-construem o fenótipo metabólico.

Em termos terapêuticos, a microbiota abre um mosaico de oportunidades, mais do que uma “bala de prata”. Dietas que favorecem maior diversidade microbiana, prebióticos, probióticos e, potencialmente, probióticos de próxima geração e TMF podem compor estratégias integradas de prevenção e tratamento da obesidade, desde que avaliadas com rigor e inseridas em programas mais amplos de mudança de estilo de vida.

Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer os limites atuais: heterogeneidade dos estudos, falta de padronização na análise da microbiota, forte influência de fatores ambientais e ausência de marcadores clínicos amplamente validados ainda dificultam a tradução imediata do conhecimento em protocolos prescritivos.

Em síntese, a microbiota intestinal não explica sozinha a obesidade, mas ignorá-la seria renunciar a um componente importante na compreensão e no cuidado das disfunções metabólicas que desafiam sistemas de saúde em todo o mundo.

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