NURSING’S COMMITMENT IN CONFRONTING OBSTETRIC VIOLENCE
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202510311044
Stefhany Morais e Silva1
Kennia Rodrigues Tassara2
Resumo
Este artigo aborda a violência obstétrica enquanto violação de direitos e problemas de saúde pública, focalizando o papel estratégico da enfermagem no seu enfrentamento. O estudo objetiva sintetizar as ações e estratégias de atuação da enfermagem para a prevenção e o combate à violência obstétrica, mediante uma Revisão Integrativa da Literatura. A metodologia seguiu as seis etapas preconizadas para revisões integrativas, incluindo busca sistematizada nas bases MEDLINE/PubMed, BVS/LILACS, SciELO e SCOPUS, utilizando a estratégia PICO e o protocolo PRISMA para seleção de estudos publicados entre 2014 e 2024. Os resultados demonstram que a atuação do enfermeiro obstetra é multidimensional, fundamentando-se em quatro eixos centrais: acolhimento e construção de vínculo por meio de comunicação empática; educação em saúde no pré-natal para empoderamento feminino e exercício da autonomia; implementação de boas práticas baseadas em evidências, como o uso do plano de parto e medidas de conforto não farmacológicas; e advocacia pelos direitos da parturiente. Conclui-se que o enfermeiro, pela sua posição privilegiada de proximidade com a mulher, configura-se como agente transformador fundamental para a promoção de um cuidado respeitoso e centrado na mulher, sendo imprescindível o investimento na sua capacitação contínua e no fortalecimento de políticas públicas de humanização para a efetiva transformação do modelo assistencial.
Palavras-chave: Violência Obstétrica. Enfermagem Obstétrica. Cuidado Humanizado. Revisão Integrativa.
1. INTRODUÇÃO
A violência obstétrica (VO) constitui uma grave violação dos direitos humanos e reprodutivos das mulheres, manifestando-se durante o período gestacional, parto, puerpério e até em situações de abortamento. Caracteriza-se pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais de saúde, através de tratamentos desumanizados, abusos físicos e verbais, medicalização excessiva e patologização de processos naturais, culminando na perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, de acordo com Aguiar et al., 2022; e dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2022.
Este fenômeno não é esporádico, mas um problema estrutural e global enraizado em assimetrias de poder, relações de gênero e em um modelo de atenção ao parto ainda excessivamente tecnocrático e intervencionista. Suas consequências extrapolam o momento do parto, podendo gerar sequelas físicas e psicológicas duradouras, como transtorno de estresse pós-traumático, depressão pós-parto e aversão a futuros atendimentos de saúde (LANSKY et al., 2019).
Nesse contexto, a Enfermagem Obstétrica emerge como um campo profissional fundamental na desconstrução desse paradigma. Amparada pela Lei do Exercício Profissional da Enfermagem (Lei Nº 7.498/86) e pelas Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal (2017), a atuação da enfermeira obstétrica e do obstetra é pautada na autonomia, no cuidado baseado em evidências científicas e na defesa intransigente de um parto humanizado (ÁLVARES et al., 2016).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a VO como qualquer ato de desrespeito, maus-tratos ou negligência durante o parto que ocorre em instalações de saúde, incluindo a falta de consentimento informado para procedimentos, abusos verbais e físicos, e falhas em adotar práticas baseadas em evidências. No Brasil, a Lei Federal 11.108/2005 (Lei do Acompanhante) e as portarias do Ministério da Saúde que instituem a Rede Cegonha são instrumentos legais que buscam combatê-la.
A dimensão do problema foi quantificada em estudos nacionais. A pesquisa “Cohorte de Nascimentos de Pelotas (RS) 2015”, com 4.275 puérperas, revelou que 18,3% das mulheres relataram maus-tratos no último parto, sendo 10% de abuso verbal, 5% de abuso físico, 6% de procedimentos inapropriados e 6% de negligência (LEITE et al., 2024).
Já os dados da Pesquisa Nascer no Brasil (2011-2012), conduzida pela Fiocruz com mais de 23 mil mulheres, apontaram prevalências ainda mais alarmantes: 56% das mulheres foram submetidas à manobra de Kristeller; 40% não tiveram acesso a métodos não farmacológicos para alívio da dor e a episiotomia, corte no períneo, foi realizada em 56% das parturientes, contra uma recomendação da OMS de que não ultrapasse 10% (LEAL et al., 2014). Esses dados evidenciam a banalização de intervenções desnecessárias e potencialmente danosas.
Os impactos dessas práticas são profundos. Do ponto de vista físico, podem resultar em complicações iatrogênicas, como lacerações perineais graves, hemorragias, infecções e aumento do tempo de recuperação. Para o bebê, intervenções como a ocitocina sintética mal administrada e a manobra de Kristeller podem levar à falta de oxigenação, que culmina no sofrimento fetal, e traumas neonatais (LANSKY et al., 2019). Psicologicamente, a experiência violenta do parto está fortemente associada ao desenvolvimento de depressão pós-parto, transtorno de estresse pós-traumático, sentimento de fracasso e medo de uma nova gravidez, prejudicando o vínculo mãe-bebê (SOUZA; BELLO, 2020).
Diante do exposto, este artigo tem como objetivo analisar o fenômeno da violência obstétrica no Brasil, elucidar suas manifestações e impactos, e discorrer sobre as ações e estratégias essenciais da Enfermagem na prevenção e combate a essa prática, visando a promoção de uma assistência segura, respeitosa e digna.
2. REVISÃO DA LITERATURA
A violência obstétrica configura-se como uma violação de direitos e um grave problema de saúde pública, caracterizada pela aplicação de intervenções desnecessárias ou desrespeitosas à mulher no ciclo gravídico-puerperal, desconsiderando sua autonomia e liberdade de escolha (LANSKY et al., 2017).
O parto, antes compreendido como um evento fisiológico e feminino, passou por um processo histórico de medicalização que o transformou em um evento médico e masculino, marcado pela noção do risco e da patologia como regra (SANFELICE et al., 2014). Este modelo, que se consolidou com a hospitalização massiva dos partos, transferiu o protagonismo da mulher para a figura do médico, excluindo outros profissionais habilitados, como as enfermeiras obstétricas (PASCHE; VILELA; MARTINS, 2010).
Esse fenômeno é agravado pelo modelo tecnocrático de assistência, que prioriza a rotatividade e a medicalização excessiva nos serviços de saúde, fragmentando e desumanizando o cuidado (OLIVEIRA et al., 2019; PAULA et al., 2020). Nesse contexto, a atuação da enfermagem, em especial da enfermeira obstétrica, emerge como um pilar fundamental no redesenho desse modelo de cuidado, posicionando-se na linha de frente para a implementação de estratégias que visam à prevenção e ao combate a essas práticas violentas.
A humanização do parto e do nascimento se consolida como a principal ferramenta de enfrentamento, sendo um eixo norteador para a prática da enfermagem. Trata-se de um conjunto de condutas e métodos que visam a promoção de partos saudáveis e a redução da morbimortalidade materna e neonatal, centrados na mulher e em suas individualidades (CORDEIRO et al., 2018).
Dentre as estratégias específicas sob a égide da enfermagem, destaca-se a elaboração e o respeito ao plano de parto, um documento que pactua as preferências da gestante com a equipe de saúde (CORTES et al., 2015). O pré-natal é apontado como momento crucial para a enfermagem construir um vínculo sólido com a mulher, disseminar informações e discutir o plano de parto, o que contribui para a continuidade do cuidado e a redução de agravos (TESSER et al., 2015). Ademais, a implementação de medidas de conforto não farmacológicas, como a musicoterapia, identificada por Mascarenhas et al. (2019) como tendo impacto analgésico, é uma ação concreta que a enfermagem pode liderar para proporcionar alívio e bem-estar, contrastando com um ambiente frio e impessoal.
No Brasil, o enfrentamento a essa realidade é um desafio significativo, influenciado por fatores como uma cultura patriarcal, desigualdade social, modelo de assistência excessivamente medicalizado e lacunas na formação dos profissionais de saúde (FICAGNA et al., 2022; NEVES; SILVA, 2022). Neste cenário complexo, a atuação do enfermeiro emerge como um eixo estratégico e fundamental para a prevenção e a promoção de um cuidado respeitoso e centrado na mulher.
A atuação do enfermeiro na prevenção da violência obstétrica é multifacetada e inicia-se no acolhimento e na educação em saúde. Cabe a esse profissional fornecer informações claras, acessíveis e baseadas em evidências científicas sobre o processo de parto, os procedimentos possíveis e os direitos da gestante, assegurando o consentimento informado antes de qualquer intervenção (SILVA MF et al., 2023). Esta prática educativa, desenvolvida de forma contínua desde o pré-natal, empodera a mulher, permitindo-lhe participar ativamente das decisões sobre o seu corpo e o seu parto, o que é um antídoto direto contra a coerção e a desinformação (ANTUNES; MARTINS, 2022).
Além da educação, a comunicação empática e a criação de um vínculo de confiança são pilares do cuidado de enfermagem. O enfermeiro deve assegurar uma comunicação não violenta, ouvindo atentamente as preocupações e preferências da mulher e respeitando suas escolhas, o que inclui garantir a presença de um acompanhante de sua livre escolha, conforme previsto na Lei nº 11.108/2005 (RODRIGUES et al., 2023).
A criação de um ambiente acolhedor, que preserve a privacidade e a dignidade da parturiente, é outra ação concreta que compete à enfermagem liderar, combatendo a impessoalidade e a violência institucional (FICAGNA et al., 2022).
Estratégias clínicas baseadas em evidências também são de responsabilidade direta da enfermagem. A promoção de boas práticas, como o respeito à fisiologia do parto, o uso de métodos não farmacológicos para alívio da dor e a recusa a intervenções desnecessárias e sem comprovação científica, como a episiotomia de rotina e a manobra de Kristeller, são ações que previnem ativamente a violência obstétrica física (LEITE et al., 2022; SANTOS et al., 2023).
Estudos demonstram que a implementação de protocolos de atendimento humanizado com a participação ativa do enfermeiro resulta na redução significativa da ocorrência de VO e no aumento da satisfação das mulheres com o cuidado recebido (SILVA RCB et al., 2021).
Contudo, para que o enfermeiro exerça esse papel com efetividade, é imperativo o investimento em sua capacitação contínua e o fortalecimento de políticas públicas que respaldem sua atuação. A formação deve incluir a conscientização sobre os diferentes tipos de violência obstétrica, suas causas e consequências, aliada ao desenvolvimento de competências para um cuidado humanizado (LIMA et al., 2022).
A atuação ética e técnica do enfermeiro, portanto, configura-se não apenas como uma responsabilidade clínica, mas como uma poderosa ferramenta de transformação do modelo assistencial, visando garantir a todas as mulheres uma experiência de parto segura, respeitosa e digna (GOMES et al., 2019).
Neste contexto, caracterizado pelo uso excessivo de intervenções desnecessárias e muitas vezes baseadas em tradições, a atuação da enfermagem emerge como um contraponto fundamental para a promoção de um cuidado respeitoso e centrado na mulher.
Em resposta a este paradigma intervencionista, surgiu o movimento pela humanização do parto, que busca resgatar a fisiologia do parto e o empoderamento feminino (TORNQUIST, 2002). A enfermagem constitui-se como peça-chave na operacionalização deste novo modelo, atuando na linha de frente para implementar as boas práticas recomendadas pela OMS.
Cabe ao enfermeiro, com sua formação direcionada para o cuidado integral, garantir que a assistência seja prestada de forma acolhedora, respeitando a autonomia e as escolhas da mulher, combatendo ativamente as rotinas desnecessárias e potencialmente violentas, como a episiotomia de rotina e a manobra de Kristeller (DINIZ; CHACHAM, 2006).
A violência obstétrica, entendida como uma violação dos direitos humanos das mulheres, manifesta-se justamente neste hiato entre o modelo medicalizado hegemônico e o cuidado humanizado almejado (D’OLIVEIRA; DINIZ; SCHRAIBER, 2002). Ela se expressa por meio de condutas como o tratamento desrespeitoso, a negligência, a realização de procedimentos sem consentimento informado e a negação do direito a um acompanhante. A enfermagem, pelo seu contato prolongado e direto com a parturiente, está posicionada de maneira única para prevenir e identificar essas situações, atuando como advogada da paciente e garantindo que sua voz seja ouvida e seus direitos respeitados (AGUIAR, 2010).
Nesse sentido, a atuação do enfermeiro na prevenção da violência obstétrica é multidimensional. Ela engloba desde a educação em saúde no pré-natal, empoderando a mulher com informações sobre seu corpo e seus direitos, até a implementação de medidas de conforto não farmacológicas durante o trabalho de parto (GARCÍA; DIAZ; ACOSTA, 2013).
A comunicação empática e a criação de um vínculo de confiança são ferramentas essenciais para assegurar que a experiência do parto seja positiva e respeitosa, contrastando com a impessoalidade do modelo tecnocrático (LEAL et al., 2014). Portanto, investir na capacitação e no empoderamento da enfermagem obstétrica é uma estratégia decisiva para a transformação do modelo de atenção ao parto e nascimento no Brasil, visando a garantia de um cuidado seguro, respeitoso e baseado em evidências científicas.
Dessa forma, a educação em saúde configura-se como uma ferramenta fundamental para a promoção de um cuidado obstétrico respeitoso e para a prevenção da violência obstétrica. No contexto do pré-natal, este processo educativo emerge como um momento privilegiado para transmitir conhecimentos sobre o ciclo gravídico-puerperal, potencializando as escolhas informadas das mulheres e fortalecendo sua autonomia.
Ao empoderar a gestante com informações claras e acessíveis, a educação em saúde permite que ela exerça plenamente seus direitos reprodutivos, constituindo-se na primeira linha de defesa contra práticas inadequadas (SILVA et al., 2022).
A autonomia conquistada pela gestante por meio do conhecimento permite que ela acompanhe e compreenda cada etapa da gestação e do parto. Este empoderamento é crucial para que a mulher consiga distinguir entre as ações necessárias e baseadas em evidências e aquelas que podem configurar violência obstétrica (SILVA et al., 2022).
Neste processo, o enfermeiro desempenha papel central como educador, implementando intervenções adequadas que vão ao encontro das expectativas das gestantes e constroem relações de confiança. O apoio e a orientação transmitidos por uma assistência qualificada são determinantes para que as mulheres tomem decisões embasadas em informações consistentes (BRASIL, 2022).
A atuação do enfermeiro educador alia-se necessariamente à prestação de uma assistência qualificada, que utiliza conhecimentos científicos sistematizados de forma individualizada para cada mulher (OLIVEIRA; COSTA, 2022). Esta abordagem personalizada torna o cuidado mais efetivo e menos mecânico, preparando a gestante para as transformações físicas, psicológicas e sociais inerentes ao processo gravídico-puerperal (BRASIL, 2022).
Sendo assim, a educação em saúde, quando direcionada tanto às gestantes quanto aos profissionais que as assistem, consolida-se como instrumento eficaz na prevenção da violência obstétrica, ao disseminar conhecimentos sobre o corpo feminino, o processo do parto e os direitos legais (PEREIRA et al., 2023).
Em uma perspectiva ampliada, iniciativas de mobilização social alinhadas à educação em saúde contribuem para divulgar as boas práticas na assistência ao parto e nascimento. Estas estratégias coletivas visam reduzir intervenções desnecessárias, diminuir as taxas excessivas de cesarianas e melhorar a experiência das mulheres durante o parto (SANTOS et al., 2023).
Dessa forma, a educação em saúde, articulada à atuação qualificada da enfermagem, representa um eixo estratégico na transformação do modelo de atenção ao parto e no enfrentamento da violência obstétrica.
Conforme evidenciado na literatura, os enfermeiros e obstetras emergem como os principais agentes perpetradores dessa modalidade de violência institucional, particularmente durante o trabalho de parto (OLIVEIRA et al., 2020; ZANCHETTA et al., 2021). A perpetuação desse ciclo violento está intrinsecamente ligada à lacuna epistemológica que envolve o conceito de VO, o qual permanece pouco difundido não apenas na população leiga, mas, de forma alarmante, entre os próprios trabalhadores da saúde (DE OLIVEIRA et al., 2020; SILVA et al., 2020).
Nesse contexto, a atuação do enfermeiro obstetra assume uma dualidade paradoxal: ao mesmo tempo em que é identificado como um dos principais autores de violência, sua posição de proximidade no cuidado confere-lhe um potencial ímpar como agente educador e transformador. O pré-natal constitui um momento propício para a desconstrução de práticas violentas, pois tem como princípio o acompanhamento da saúde materno-fetal e a orientação qualificada sobre os processos fisiológicos do parto e os direitos reprodutivos (ZANCHETTA et al., 2021).
Contudo, observa-se que os profissionais dos centros comunitários de saúde são apontados como a fonte de informação menos consultada sobre VO, fato que evidencia a desconexão entre o potencial educativo desses agentes e a realidade vivenciada pelas gestantes (ZANCHETTA et al., 2021).
A superação desse cenário exige uma reestruturação profunda na formação desses profissionais, com ênfase na ética do cuidado, nas evidências científicas atualizadas e no estímulo ao pensamento crítico. Tal formação deve promover uma abordagem menos intervencionista e medicalizante, pautada no respeito irrestrito à autonomia, crenças, costumes e etnia da pessoa gestante (MARTÍNEZ-GALIANO et al., 2023).
Instrumentos como o plano de parto se destacam como ferramentas fundamentais de comunicação e garantia de direitos, desde que manuseados por profissionais qualificados que orientem sobre sua finalidade e sobre a eventualidade de imprevistos (DZOMEKU et al., 2021).
Portanto, embora o combate à VO demande uma abordagem multidisciplinar, o enfermeiro obstetra, por sua posição estratégica, é figura imprescindível na promoção de um cuidado respeitoso, seguro e centrado na mulher. A capacitação contínua, aliada a políticas públicas de humanização como a Rede Cegonha e o PHPN, é basal para transformar seu papel potencial em ação efetiva, tornando-o um protagonista na erradicação da violência obstétrica e na construção de uma experiência de parto positiva e empoderadora.
3. METODOLOGIA
Este estudo configura-se como uma Revisão Integrativa da Literatura (RIL), que consiste em um método amplo de pesquisa que permite a inclusão de estudos experimentais e não experimentais para uma compreensão compreensiva do fenômeno analisado (WHITTEMORE; KNAFL, 2005). A RIL é adequada para este trabalho, pois possibilita a síntese do conhecimento existente sobre a atuação da enfermagem no combate à violência obstétrica, integrando diversas metodologias e identificando lacunas no conhecimento (SOUZA et al., 2010).
A execução da revisão foi operacionalizada em seis etapas sequenciais e sistemáticas, adaptadas do modelo proposto por Souza et al. (2010). A primeira etapa consiste na Formulação da Questão de Pesquisa, com o objetivo de delinear e direcionar a busca na literatura. Para tanto foi utilizada a estratégia PICO, acrônimo que representa População, Intervenção/Indicador (Interest), Comparação e Outcomes (Desfechos) (SANTOS et al., 2007). O que nos leva a seguinte sistematização:
- P (População): Enfermeiras(os) e equipe de enfermagem.
- I (Indicador/Interesse): Ações, estratégias e atuação no contexto.
- C (Comparação): Não se aplica a revisões integrativas de escopo amplo.
- O (Outcomes): Prevenção e combate à violência obstétrica.
- Questão Norteadora: “Quais as ações e estratégias de atuação da enfermagem descritas na literatura para a prevenção e o combate à violência obstétrica?”
Já a segunda etapa diz respeito ao estabelecimento dos critérios de inclusão e exclusão. Dessa forma, foram definidos os seguintes critérios para seleção dos estudos: artigos científicos originais e de revisão, publicados entre 2014 e 2024, nos idiomas português, inglês ou espanhol, indexados nas bases de dados selecionadas, e que abordassem explicitamente o papel ou as ações da enfermagem frente à violência obstétrica. Excluíram-se artigos de opinião, cartas ao editor, estudos duplicados e aqueles que não tinham o resumo ou texto completo disponível.
A terceira etapa, por sua vez, é a definição das fontes de pesquisa e estratégia de busca. A busca pelos estudos foi realizada até maio de 2025 nas seguintes bases de dados eletrônicas: Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE/PubMed), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS/LILACS), Scientific Electronic Library Online (SciELO) e SCOPUS.
A quarta etapa sintetiza a coleta e organização dos dados, que foi conduzida utilizando a ferramenta Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA), que foi utilizada como guia para reportar o fluxo de identificação, triagem, elegibilidade e inclusão dos estudos, garantindo transparência e reprodutibilidade (PAGE et al., 2021). Os resultados das buscas foram exportados para o gerenciador de referências Mendeley, onde foram eliminadas as duplicatas. A triagem inicial foi realizada pela análise de títulos e resumos, seguida pela leitura na íntegra dos artigos pré-selecionados para verificação final de adequação aos critérios.
A quinta etapa se refere à análise crítica e síntese dos estudos incluídos para avaliação de seu nível de evidência e grau de recomendação, conforme hierarquia proposta por Melnyk e Fineout-Overholt (2011), que classifica as evidências desde Level I (Evidência de Revisão Sistemática de Ensaios Randomizados) até Level VII (Opinião de Autoridades e/ou Relatos de Comitês de Especialistas).
A sexta e última etapa culmina na apresentação e interpretação dos resultados de forma narrativa, agrupando as ações e estratégias de enfermagem identificadas na literatura em temas centrais, permitindo uma discussão clara e abrangente que atende ao objetivo proposto neste trabalho.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES OU ANÁLISE DOS DADOS
A análise da literatura, conduzida por meio de uma Revisão Integrativa, permitiu a identificação e a síntese de um conjunto robusto de evidências sobre as ações e estratégias da enfermagem para o enfrentamento da VO. Os resultados foram categorizados em eixos temáticos centrais, que delineiam a atuação multifacetada desse profissional.
O primeiro eixo refere-se ao Acolhimento, Vínculo e Comunicação Empática. Evidenciou-se que a construção de uma relação de confiança, iniciada no pré-natal e mantida durante todo o ciclo gravídico-puerperal, é fundamental. Esta prática contrasta com a impessoalidade do modelo tecnocrático e se consolida por meio da escuta ativa, do respeito às individualidades e da garantia da presença de um acompanhante de livre escolha, conforme assegura a Lei nº 11.108/2005 (RODRIGUES et al., 2023; FICAGNA et al., 2022).
O segundo eixo, Educação em Saúde e Empoderamento da Mulher, destacou-se como uma ferramenta primordial de prevenção. A atuação do enfermeiro como educador no pré natal, fornecendo informações claras, acessíveis e baseadas em evidências sobre o processo do parto, os procedimentos e os direitos reprodutivos, é um antídoto direto contra a desinformação e a coerção (SILVA MF et al., 2023; ANTUNES; MARTINS, 2022).
O Plano de Parto emergiu como um instrumento tangível desta prática, funcionando como um documento pactuado que registra as preferências da gestante e garante sua autonomia, desde que devidamente elaborado e discutido (CORTES et al., 2015).
O terceiro eixo agrupou as Estratégias Clínicas Baseadas em Evidências e Boas Práticas. A literatura é unânime em apontar que a atuação técnica da enfermagem deve priorizar a fisiologia do parto e recusar intervenções desnecessárias e sem comprovação científica, como a episiotomia de rotina e a manobra de Kristeller (LEITE et al., 2022; DINIZ; CHACHAM, 2006).
A implementação de medidas de conforto não farmacológicas, como a deambulação, a musicoterapia e o uso de técnicas de respiração, sob a liderança da enfermagem, contribui para um ambiente menos medicalizado e mais acolhedor (MASCARENHAS et al., 2019).
Por fim, identificou-se o eixo Formação Profissional e Atuação Sistêmica. Os estudos apontam que a efetividade das ações de enfermagem está intrinsecamente ligada a uma formação profissional crítica e ética, que inclua a conscientização sobre a VO e o desenvolvimento de competências para o cuidado humanizado (LIMA et al., 2022). A atuação do enfermeiro é, portanto, estratégica para a consolidação de políticas públicas de humanização, como a Rede Cegonha, posicionando-o como um agente transformador do modelo assistencial (GOMES et al., 2019).
Portanto, fica evidente que a capacitação e a educação permanente são imperativas para consolidar a atuação da enfermagem nesse cenário. As instituições de ensino possuem um papel crítico em formar profissionais sensibilizados e capacitados para uma assistência ética e respeitosa, desde a graduação.
A transformação da cultura assistencial dentro das instituições de saúde, promovida por uma enfermagem empoderada e com base em evidências científicas, é o caminho para desconstruir a violência obstétrica e resgatar a fisiologia e a dignidade do processo de parto e nascimento (LEAL et al., 2021).
5. CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise demonstra que as estratégias mais efetivas são aquelas centradas no respeito à autonomia e na dignidade da mulher, tais como a comunicação empática, a construção de vínculo, a utilização do plano de parto e a adoção de medidas de conforto não farmacológicas. Contudo, fica evidente que o potencial transformador da enfermagem esbarra em desafios estruturais, como lacunas na formação profissional, a herança de um modelo de atenção patriarcal e a necessidade de um maior respaldo institucional e político.
Portanto, para que o papel da enfermagem se concretize plenamente, é imperativo investir em uma formação profissional contínua e crítica, que supere a abordagem puramente técnica e incorpore a ética do cuidado, os direitos humanos e a perspectiva de gênero. Paralelamente, é fundamental o fortalecimento de políticas públicas que não apenas reconheçam, mas também ampliem a autonomia e a atuação qualificada do enfermeiro obstetra nos diferentes cenários de assistência.
A transformação do modelo de atenção ao parto e nascimento é uma urgência em saúde pública, e a enfermagem se configura como uma profissão-chave neste processo. Investir no seu protagonismo significa avançar na garantia de um cuidado obstétrico seguro, respeitoso e verdadeiramente centrado nas mulheres.
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1Discente do Curso Superior de Enfermagem do Centro Universitário de Goiatuba-UniCerrado.
2Docente do Curso Superior de Enfermagem do Centro Universitário de Goiatuba-UniCerrado.
