REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202506182003
Layane de Souza Silva1
Yan Marques dos Santos2
Ana Paula de Oliveira Rosembal3
Lidia Marcia Heringer Sanabria4
RESUMO
A enfermagem é uma profissão comprometida com os princípios éticos e com a promoção da saúde em todos os níveis de atenção. Quando se trata do sistema prisional brasileiro, ela tende a enfrentar desafios e complexidades. Nesse âmbito, o presente artigo tem como objetivo principal discorrer acerca das dificuldades enfrentadas pelos profissionais de enfermagem em unidades prisionais, com foco nas possíveis deficiências estruturais, na alta prevalência de doenças e nas limitações operacionais que comprometem o atendimento em saúde. A metodologia foi construída a partir de uma revisão bibliográfica. Como resultados, observou-se que a precariedade da infraestrutura física, a escassez de recursos humanos e materiais, assim como o ambiente de constante tensão e insegurança, limitam significativamente a prática da enfermagem e impedem a efetivação de cuidados integrais, humanizados e contínuos. Além disso, verifica-se a recorrência de doenças infectocontagiosas, transtornos mentais e agravos decorrentes das condições insalubres, os quais exigem da enfermagem não apenas competência técnica, mas também habilidades socioemocionais e compromisso ético com os direitos humanos, indicando a necessidade urgente do fortalecimento das políticas públicas voltadas para a saúde prisional e de capacitação específica para os profissionais que atuam nesse contexto.
Palavras-chave: Enfermagem; Sistema prisional; Saúde pública; Infraestrutura carcerária; Direitos humanos.
ABSTRACT
Nursing is a profession committed to ethical principles and the promotion of health at all levels of care. When it comes to the Brazilian prison system, it tends to face challenges and complexities. In this context, the main objective of this article is to discuss the difficulties faced by nursing professionals in prison units, focusing on possible structural deficiencies, the high prevalence of diseases and operational limitations that compromise health care. The methodology was built from a bibliographic review. As a result, it was observed that the precariousness of the physical infrastructure, the scarcity of human and material resources, as well as the environment of constant tension and insecurity, significantly limit nursing practice and prevent the implementation of comprehensive, humanized and continuous care. Furthermore, there is a recurrence of infectious diseases, mental disorders and illnesses resulting from unhealthy conditions, which require nursing not only technical competence, but also socio-emotional skills and ethical commitment to human rights, indicating the urgent need to strengthen public policies aimed at prison health and specific training for professionals who work in this context.
Keywords: Nursing; Prison system; Public health; Prison infrastructure; Human rights.
1. INTRODUÇÃO
A enfermagem trata-se de uma profissão socialmente reconhecida e comprometida com o cuidado integral e pleno para a saúde, entretanto, a mesma enfrenta desafios singulares e complexos quando é inserida em contextos de privação de liberdade, por exemplo (Brito et al., 2022). O sistema prisional brasileiro, historicamente marcado por fatores como a superlotação e a precariedade sanitária, se revela como um cenário desafiador para a prática da enfermagem, principalmente, pautada na humanização (Rocha et al., 2022).
Cabe destacar que a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), que foi instituída em 2014 pela Portaria Interministerial nº 1, representa um avanço normativo ao estabelecer que as ações de saúde no sistema prisional devem estar integradas na atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS) (Maciel et al., 2022). Entretanto, como apontam Silva; Almeida; Freitas (2024), ainda que exista um marco legal, a sua implementação concreta é limitada por fatores estruturais, como por exemplo, ausência de profissionais qualificados, escassez de recursos materiais e humanos, fragilidade dos processos de gestão e articulação intersetorial, entre outros.
Ademais, verifica-se que o ambiente prisional favorece a proliferação de doenças, principalmente, as transmissíveis, sendo a principal a tuberculose, além de hepatites virais, sífilis, AIDS e entre outras, cujas prevalências são superiores quando comparadas na população em liberdade (Nascimento et al., 2020). Assim, o confinamento em condições insalubres, associado com a escassez de exames, medicamentos e práticas preventivas, contribui para que o cuidado em saúde das pessoas privadas de liberdade seja frequentemente negligenciado ou colocado em segundo plano nas prioridades institucionais.
O profissional da enfermagem, nesse âmbito, move-se no centro da ação sanitária, atuando não apenas como técnico, mas como agente ético, humanizador e político (Costa Silva et al., 2021). Contudo, a atuação do profissional é limitada por barreiras institucionais, entre elas a dependência de escolta para a realização de encaminhamentos externos, condição que embora importante para a segurança, pode dificultar o acesso ao cuidado. Soma-se a isso a interferência de agentes penitenciários na triagem dos atendimentos e a ausência de capacitação específica para lidar com as particularidades do ambiente prisional, conforme analisado por Maciel et al., (2022).
Considerando todos esses fatores, percebe-se a importância de discutir com mais atenção a atuação da enfermagem dentro das prisões brasileiras. Assim, apesar das leis e políticas que garantem o direito à saúde para quem está em situação de privação de liberdade, ainda são muitos os obstáculos enfrentados no dia a dia desses profissionais.
Diante desse contexto, o presente estudo busca responder à seguinte questão problema: “Quais são os principais desafios enfrentados pelos profissionais de enfermagem no atendimento à saúde dentro das unidades prisionais brasileiras, especialmente no que diz respeito à infraestrutura, as doenças mais comuns e as limitações no cuidado?”.
Logo, a escolha do tema se justifica pela necessidade de dar visibilidade a uma realidade ainda pouco debatida, mas de grande importância. Portanto, o presente artigo se propõe a refletir sobre essa realidade a partir de uma revisão de literatura, com abordagem qualitativa, com o objetivo de reunir e analisar os principais desafios enfrentados pela enfermagem nos presídios brasileiros.
1.1 Objetivos
1.1.1 Objetivo geral
Discorrer acerca dos principais desafios enfrentados por profissionais de enfermagem no sistema prisional brasileiro, com foco nas limitações estruturais, na prevalência de doenças e nas restrições no atendimento para a saúde das pessoas privadas de liberdade por meio de uma revisão bibliográfica.
1.1.2 Objetivos específicos
• Identificar por meio da revisão bibliográfica os principais entraves relacionados com a infraestrutura física e organizacional das unidades prisionais que impactam a atuação da enfermagem;
• Mapear os agravos para a saúde mais prevalentes entre a população carcerária;
• Compreender as limitações operacionais, éticas e institucionais que comprometem o acesso à atenção em saúde dentro dos estabelecimentos penais.
2. REFERENCIAL TEÓRICO
O referencial teórico constitui uma das seções centrais do presente estudo, por apresentar os fundamentos conceituais e científicos que sustentam o trabalho. Logo, é por meio dele que se estabelece o diálogo com a literatura existente, permitindo a compreensão crítica do objeto de estudo. Assim, nos subtópicos a seguir, serão discutidos os principais temas que embasam a pesquisa.
2.1 A Infraestrutura prisional e seus efeitos sobre a prática de enfermagem
O sistema penitenciário brasileiro enfrenta, historicamente, deficiências estruturais que comprometem diretamente a garantia de direitos básicos, como por exemplo, ao acesso para a saúde. Dessa maneira, o sistema prisional brasileiro figura entre os que possuem as maiores populações carcerárias do planeta (Brito et al., 2022).
Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), mais de 70% dos estabelecimentos prisionais operam acima de sua capacidade, o que compromete não apenas a segurança, mas também o cuidado em saúde (Brasil, 2019).
No que se refere à assistência à saúde nesse contexto, observa-se que ela ainda ocorre de forma fragmentada e esporádica, concentrando-se principalmente em demandas emergenciais (Silva et al., 2020). Como consequência, ações com foco na prevenção, na promoção contínua da saúde e na educação em saúde permanecem pouco desenvolvidas ou negligenciadas nas rotinas institucionais, dado o contexto penitencial. Além disso, a precariedade das instalações, superlotação e insalubridade são condições que tendem a ser recorrentes nas unidades prisionais do país (Costa Silva et al., 2024).
Essas condições acabam interferindo na atuação dos profissionais de enfermagem. Outrossim, as estruturas físicas inapropriadas dificultam a realização de procedimentos básicos, como curativos, aferição de sinais vitais, administração de medicamentos e atendimento individualizado (Sousa et al., 2021). De acordo com Barbosa et al., (2014), a inexistência de consultórios adequados e de espaços de isolamento impossibilita a adoção de medidas de controle de infecções, por exemplo, expondo tanto os detentos quanto os profissionais a riscos constantes.
Estudos como o de Soares; Camponogara; Vargas (2020), reforçam que a estrutura deficitária das prisões desestimula o trabalho dos profissionais de saúde, comprometendo o vínculo terapêutico e limitando a autonomia profissional. Ademais, o acúmulo de funções e a inexistência de equipes multiprofissionais completas contribuem para a sobrecarga dos enfermeiros, muitas vezes os únicos responsáveis pela assistência direta. Diante de tal cenário, é possível observar que as condições estruturais inadequadas do sistema prisional não apenas limitam a efetivação do cuidado em saúde, mas também fragilizam o exercício profissional da enfermagem, comprometendo a qualidade da assistência das pessoas privadas de liberdade.
2.2 A prevalência de doenças, os desafios epidemiológicos no contexto prisional e o profissional da enfermagem
A população privada de liberdade tende a apresentar uma alta incidência de doenças transmissíveis, em especial tuberculose, AIDS, hanseníase, hepatites virais e sífilis (Nascimento et al., 2020). A própria natureza do ambiente prisional, com celas geralmente superlotadas, baixa circulação de ar, umidade e higiene precária, favorece a transmissão de agentes patogênicos e dificulta a adoção de medidas preventivas. Por exemplo, segundo Macedo; Maciel; Struchiner (2017), o risco de infecção por tuberculose no ambiente prisional é significativamente mais elevado do que fora dele, podendo ser até 30 vezes maior.
Essas condições de vulnerabilidade são agravadas pela falta de continuidade do cuidado e pela escassez de insumos e medicamentos. Segundo Melo et al. (2025), as condições físicas inadequadas das unidades prisionais se tornam ainda mais críticas diante da escassez de recursos financeiros, da ausência de infraestrutura sanitária, da má qualidade da ventilação e da cobertura assistencial insuficiente. Esses fatores, combinados, criam um ambiente propício para a disseminação de doenças infecciosas entre a população encarcerada.
A enfermagem, nesse contexto, tem papel central no rastreamento, na triagem, na promoção de ações educativas e na administração de tratamentos (Brito et al., 2022). Como afirmam Garcia et al., (2022), os enfermeiros são geralmente os primeiros profissionais de saúde a ter contato com o preso adoecido, sendo essenciais para o monitoramento e encaminhamento adequado dos casos.
Entretanto, as estatísticas relacionadas aos atendimentos em saúde no sistema prisional evidenciam uma cobertura ainda limitada dos serviços ofertados. No estado de Goiás, por exemplo, entre os anos de 2014 e 2019, foram realizadas 62.212 consultas dentro das unidades prisionais e 84.125 encaminhamentos para atendimentos externos. Apesar disso, o número de profissionais de saúde, como médicos, enfermeiros e outros integrantes da equipe multiprofissional, permaneceu abaixo do necessário para suprir a demanda existente (Nascimento et al., 2020).
Em Mato Grosso, por exemplo, o número de enfermeiros registrados nesse mesmo período foi de apenas 140 para todo o sistema prisional estadual, número claramente insuficiente diante da complexidade dos casos atendidos. Outro ponto crítico refere-se à carência de médicos especialistas, o que compromete a integralidade da atenção à saúde (Nascimento et al., 2020).
Além disso, cabe destacar que a presença de transtornos mentais é significativa entre os detentos, o que demanda um olhar mais atento da enfermagem sobre aspectos psicossociais do cuidado (Silva; Almeida; Freitas, 2024). De acordo com o estudo de Ranuzi et al., (2018), o transtorno de depressão e o comportamento suicida estão entre os agravos mais subnotificados no ambiente prisional, em parte por falta de profissionais especializados, mas também pela invisibilidade institucional das questões de saúde mental no sistema penitenciário.
Diante de tais complexidades, destaca-se que a alta carga de doenças físicas e mentais nas prisões tende a ser um reflexo direto das condições estruturais degradantes e do desafio institucional, reforçando a necessidade de uma atuação de enfermagem comprometida, sensível e integrada, que vá além do atendimento pontual.
2.3 Limitações institucionais, éticas e operacionais da enfermagem no cárcere
O cuidado em saúde dentro do sistema prisional sofre interferências não apenas estruturais, mas também institucionais e éticas. A enfermagem, como prática comprometida com o bem-estar, a escuta e promoção da autonomia, enfrenta obstáculos que vão desde a ausência de protocolos assistenciais até o cerceamento de decisões por parte da segurança penitenciária (Brito et al., 2022).
A inexistência de formação específica para atuar com a população encarcerada é um dos pontos mais críticos levantados por autores como Maciel et al., (2022). De modo geral, os enfermeiros não recebem preparação adequada durante a graduação para lidar com as particularidades de tal contexto. Isso pode gerar insegurança, estresse e dificuldades para estabelecer vínculos terapêuticos (Maciel et al., 2022).
De acordo com Fonseca et al., (2024), a atuação da enfermagem no sistema prisional é marcada por desafios éticos importantes, especialmente em relação com a garantia do sigilo profissional, da privacidade, frequentemente comprometidos pela presença de escoltas, pela ausência de ambientes adequados e pela lógica institucional voltada à segurança. Logo, o atendimento nessas unidades tende a ser diferente dos outros tipos de ambiente.
Ainda, segundo Brito et al. (2022), mesmo diante de condições adversas, como a precariedade estrutural, o estigma social e negligência institucional, a atuação da enfermagem no sistema prisional é marcada por uma abordagem ética, integral e voltada para a humanização do cuidado. Para enfrentar esses desafios, é fundamental que os profissionais estejam engajados não apenas na execução de procedimentos técnicos, mas também em práticas sensíveis para as especificidades da população privada de liberdade. Cabe ao enfermeiro assumir um papel alinhado aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).
Portanto, a atuação da enfermagem nas prisões brasileiras exige muito mais do que competência técnica: exige coragem e compromisso ético.
3. METODOLOGIA
O presente estudo foi desenvolvido por meio de uma abordagem qualitativa, em uma revisão bibliográfica da literatura. Verifica-se que essa modalidade de estudo permite reunir, analisar e sintetizar os resultados de pesquisas já publicadas sobre o tema (Rodrigues et al., 2007). Logo, a escolha se justifica pela sua capacidade de agregar diferentes tipos de evidência científica e possibilitar reflexões aprofundadas sobre realidades complexas, como é o caso da saúde em contextos de privação de liberdade.
A busca pelos estudos foi realizada nas bases de dados SciELO e Google Acadêmico. Para a construção da estratégia de busca, foram utilizados descritores controlados do DeCS (Descritores em Ciências da Saúde), tais como “enfermagem”, “sistema prisional”, “saúde prisional” e “desafios no atendimento”.
Foram selecionados alguns artigos publicados entre os anos de 2014 e 2024, que estivessem disponíveis na íntegra, gratuitamente e escritos em português. A seleção ocorreu em etapas: inicialmente, com a leitura dos títulos e resumos para triagem preliminar, seguida da leitura completa dos textos que se mostraram relevantes. Foram excluídos artigos repetidos, textos que não abordavam diretamente a atuação da enfermagem no sistema prisional ou os que o acesso não era gratuito.
A análise dos dados foi realizada por meio da análise temática, que permitiu identificar categorias relacionadas aos principais desafios enfrentados pela enfermagem no contexto prisional brasileiro. Os estudos incluídos foram lidos de forma integral e analisados criticamente, com foco nos principais obstáculos e complexidades enfrentadas pela enfermagem dentro das unidades prisionais. As informações foram organizadas em quadros comparativos para facilitar a visualização e discussão crítica dos resultados encontrados.
Portanto, por se tratar de uma pesquisa baseada exclusivamente em dados secundários, sem envolvimento direto de participantes humanos, o estudo não necessitou de aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa. Ainda assim, todos os procedimentos seguiram os princípios éticos da integridade científica.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
Com base na revisão bibliográfica realizada, foi possível identificar um panorama preocupante sobre a atuação da enfermagem nas unidades prisionais brasileiras. De acordo com as leituras, observou-se que os principais desafios enfrentados pelos profissionais, estão diretamente relacionados com a precariedade da infraestrutura física, alta incidência de doenças infectocontagiosas e crônicas, escassez de profissionais de saúde e entre outros. A seguir, os achados são apresentados e discutidos com base nas produções científicas analisadas.
Tabela 1 – Comparativo dos estudos analisados sobre enfermagem e saúde no sistema prisional
Autores | Ano | Tema | Objetivo | Principais resultados |
Nascimento et al. | 2020 | Doenças transmissíveis na população privada de liberdade na região Centro Oeste do Brasil. | Analisar a incidência de doenças entre presos na região Centro-Oeste do Brasil. | Os autores apontam que as doenças transmissíveis configuram uma séria ameaça para a saúde pública, especialmente quando se observa que o ambiente prisional não dispõe de condições adequadas para a prevenção, tratamento e acompanhamento contínuo dos casos. Ressalta-se, assim, a necessidade de responsabilização do Estado, tanto do ponto de vista legal quanto ético, sendo fundamental a adoção de políticas públicas articuladas entre os setores da saúde e da justiça. |
Oliveira | 2022 | Saúde e prisão: um estudo do acesso, assistência e promoção da saúde no cárcere. | Analisar dados epidemiológicos e acesso à saúde. | A dissertação conclui que o direito à saúde das pessoas privadas de liberdade permanece violado, sobretudo pela precariedade estrutural, ausência de equipes completas e obstáculos no acesso aos serviços. No Pará, o cenário é agravado por altos índices de doenças evitáveis, carência de assistência contínua e baixa efetividade das políticas públicas, como a PNAISP. |
Brito et al. | 2022 | Pessoas privadas de liberdade: uma visão voltada à saúde | Refletir sobre o cuidado de enfermagem no cárcere. | O artigo conclui que apesar dos marcos legais e das normativas institucionais que sustentam a saúde no sistema prisional, o distanciamento entre o que é garantido por lei e o que é efetivamente praticado ainda é profundo. Esse abismo institucional resulta em violações de direitos, em risco à vida e em desrespeito à dignidade humana. |
Gomes e Ribas | 2023 | Cuidados em saúde à população privada de liberdade: revisão integrativa. | Sistematizar evidências sobre cuidado em saúde. | A pesquisa aponta que o atendimento em saúde destinado para a população privada de liberdade no Brasil ainda se mostra distante dos princípios constitucionais que orientam o SUS, como a equidade, integralidade e humanização do cuidado. A assistência oferecida aos indivíduos encarcerados está inserida em um cenário de desamparo institucional, cujas origens envolvem fatores políticos, estruturais e simbólicos profundamente enraizados. |
Silva, Almeida; Freitas | 2024 | Desafios no cuidado de enfermagem em ambiente prisional. | Identificar entraves para enfermeiros em prisões. | O estudo evidencia que a atuação da enfermagem em ambientes prisionais é marcada por precariedades estruturais, formação insuficiente e limitações éticas e institucionais que comprometem o cuidado integral. As autoras defendem a urgência de reorganização político-institucional e a valorização da enfermagem como prática também ética e social, especialmente no atendimento a mulheres encarceradas. |
Com base na análise da tabela 1, observa-se que os estudos selecionados convergem ao evidenciar as múltiplas fragilidades que caracterizam a atenção para a saúde no sistema prisional brasileiro, especialmente no que tange ao cuidado de enfermagem. As publicações apontam, de modo reiterado, que a precariedade estrutural, ausência de condições adequadas para a prevenção e controle de doenças transmissíveis, escassez de profissionais qualificados e falta de políticas públicas efetivas comprometem a integralidade do cuidado.
É necessário evidenciar, por exemplo, o estudo de Nascimento et al. (2020), que enfatiza o impacto das doenças infecciosas em unidades prisionais do Centro Oeste e reforça a responsabilidade do Estado na articulação entre saúde e justiça. De forma semelhante, Gomes e Ribas (2023) e Silva, Almeida; Freitas (2024) ressaltam os entraves enfrentados pelos profissionais de enfermagem, que atuam em um cenário de negligência institucional, marcado por carência de insumos, falta de autonomia e ausência de preparo técnico e ético para lidar com as especificidades da população privada de liberdade.
A dissertação de Oliveira (2022), por sua vez, aprofunda a análise ao apresentar dados epidemiológicos do estado do Pará, revelando altos índices de agravos evitáveis e dificuldades no acesso a serviços extramuros. Já o estudo de Brito et al. (2022) amplia o debate ao abordar a violação sistemática dos direitos humanos nas unidades prisionais, destacando que as condições de encarceramento afetam não apenas os indivíduos presos, mas também a saúde coletiva.
Tais achados reafirmam a urgência de políticas públicas intersetoriais, da valorização da enfermagem como agente ético e transformador e do compromisso efetivo do Estado com a dignidade humana no contexto prisional. A seguir, apresenta se um levantamento da frequência com que os principais desafios apareceram nos estudos analisados:
Tabela 2 – Frequência de desafios mais citados nos estudos analisados
Desafio identificado | Frequência (número de estudos) | Efeitos para a enfermagem e a saúde |
Superlotação e insalubridade estrutural | 5 | Dificulta o controle de infecções e o atendimento privativo. |
Altas taxas de doenças transmissíveis | 5 | Exige atuação constante em vigilância epidemiológica e controle de surtos, aumentando a sobrecarga e o risco de adoecimento dos profissionais. |
Escassez de profissionais de saúde | 4 | Tende a gerar sobrecarga de trabalho, comprometer a qualidade do cuidado e favorecer o esgotamento físico e emocional das equipes de enfermagem. |
Falta de protocolos e formação | 3 | Pode prejudicar a padronização das condutas, comprometer a segurança do paciente e limitar a autonomia técnica dos profissionais. |
Invisibilidade da mulher presa | 2 | Contribui para o apagamento das necessidades específicas em saúde sexual e reprodutiva, dificultando ações de cuidado integral e equitativo. |
Interferência de agentes penitenciários | 2 | Pode comprometer a autonomia profissional da enfermagem, gerar conflitos éticos e impedir a privacidade nas consultas e procedimentos de saúde. |
Ao relacionar, esses dados demonstram a força do argumento central do presente texto: a atuação da enfermagem em unidades prisionais não pode ser analisada fora de um contexto institucional de violação de direitos. As práticas de cuidado são limitadas tanto por condições materiais quanto por entraves éticos e burocráticos.
A pesquisa de Melo et al. (2025) mostra, por exemplo, que em Pernambuco o déficit de vagas carcerárias chega a 49%, com índices alarmantes de portadores de HIV, tuberculose e hepatites. Nascimento et al. (2020), por sua vez, identificaram 3.005 casos de tuberculose e 2.543 de HIV entre presos do Centro-Oeste, o que reforça a ideia de que as prisões funcionam como verdadeiros “vetores de doença”.
Em relação ao Sudeste, especificamente, Minas Gerais, dentro do recorte temporal do presente trabalho, a pesquisa sobre a saúde da população carcerária em Minas Gerais revela um cenário de precariedade, com condições de saúde geral e bucal comprometidas devido à negligência nos cuidados básicos e à oferta limitada de serviços de saúde no ambiente prisional. Um estudo realizado em Barbacena, Minas Gerais, com dados de 2021 a 2024, demonstrou a alta prevalência de doenças infectocontagiosas (11,7%), hipertensão arterial (9,9%) e diabetes mellitus (2,9%) entre os indivíduos privados de liberdade, além de uma significativa parcela com higiene bucal insatisfatória e necessidade de reabilitação protética (Barros, 2024).
Considerando a escassez de estudos que abordem a atuação do enfermeiro no contexto prisional especificamente em Minas Gerais, foi necessário recorrer a uma fonte fora do recorte temporal da presente pesquisa. Nesse sentido, um dos únicos trabalhos encontrados foi o de Murta et al. (2025), que investigou as atividades desempenhadas pela equipe de enfermagem em unidades prisionais de Minas Gerais, buscando estabelecer parâmetros para a quantificação de pessoal. Assim, ao pensar no âmbito do sudeste, os resultados revelaram que as atividades predominantes da equipe de enfermagem incluem o preparo, a entrega e administração de medicamentos. Em contrapartida, a educação em saúde foi identificada como uma área de menor relevância nas práticas cotidianas. A pesquisa também evidenciou uma sobrecarga de trabalho para os enfermeiros, indicando a necessidade de readequar os processos de trabalho para que as ações prioritárias se concentrem na prevenção de agravos e na promoção da saúde, e não apenas na abordagem curativista.
O estudo de Silva, Almeida e Freitas (2024) denuncia que a autonomia desses profissionais é constantemente atravessada por hierarquias institucionais e decisões de agentes penitenciários. Essa interferência direta nas rotinas de atendimento compromete o princípio da universalidade do SUS e fere a ética profissional.
Em relação às populações, Gomes e Ribas (2023) reforçam a invisibilidade da mulher presa, apontando para a ausência de políticas voltadas ao cuidado com a saúde reprodutiva e mental das mulheres encarceradas. Além disso, a falta de estrutura é tão grave que muitos presídios sequer dispõem de ambientes adequados para o atendimento de enfermagem.
Destaca-se, enfim, a relevância prática desses resultados, indicando claramente a necessidade urgente de intervenções estruturais e a importância de políticas públicas intersetoriais que garantam melhores condições de trabalho e capacitação específica para profissionais de enfermagem que atuam no sistema prisional. Esses achados evidenciam que sem medidas efetivas o papel fundamental da enfermagem continuará sendo limitado, o que compromete diretamente a qualidade da assistência prestada e o direito à saúde das pessoas privadas de liberdade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depois de todo o conteúdo abordado, analisado e discorrido, considerações finais mostram-se necessárias. Desse modo, os resultados da presente pesquisa mostram que a atuação da enfermagem no sistema prisional brasileiro é atravessada por uma série de desafios e complexidades estruturais, institucionais e éticos que limitam o exercício pleno do cuidado em saúde na então área, diferentemente de outras.
Por exemplo, observou-se nas análises dos textos selecionados a precariedade da infraestrutura, alta prevalência de doenças infectocontagiosas, escassez de profissionais capacitados e a interferência de normas de segurança sobre a autonomia profissional configuram um cenário adverso, que demanda atenção das políticas públicas e das instituições formadoras de profissionais de saúde.
Constatou-se que embora exista uma base normativa que assegura o direito para a saúde das pessoas privadas de liberdade, como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade (PNAISP), a aplicação prática dessas diretrizes ainda é insuficiente e frequentemente desarticulada. Nesse contexto, os profissionais de enfermagem podem se encontrar sobrecarregados, sem suporte institucional adequado e, muitas vezes, obrigados a atuar em condições que contrariam os princípios éticos da profissão e os preceitos do Sistema Único de Saúde.
O presente estudo também conclui que o enfermeiro assume um papel importante na promoção de ações educativas e preventivas, sendo, muitas vezes, o primeiro e único profissional a atender as demandas de saúde dos detentos. No entanto, sem investimentos em infraestrutura, formação específica e valorização do trabalho em saúde no cárcere, o cuidado permanece restrito, pontual e emergencial.
Diante disso, reforça-se a importância de incluir a temática da saúde prisional nos currículos da graduação em enfermagem e em programas de educação permanente, de forma a preparar os profissionais para atuar com competência nesse campo. Por fim, espera-se que a pesquisa contribua para o avanço acadêmico e social, ao estimular a ampliação do debate sobre a saúde prisional, promover maior visibilidade para as demandas da enfermagem nesse contexto e impulsionar mudanças práticas significativas nas políticas públicas e na gestão da saúde nas unidades prisionais.
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1Aluna do curso de graduação em Enfermagem pela Faculdade do Futuro – FAF. E-mail: layanesouza5@hotmail.com
2Aluno do curso de graduação em Enfermagem pela Faculdade do Futuro – FAF. E-mail: yanmarues913@gmail.com
3Aluna do curso de graduação em Enfermagem pela Faculdade do Futuro – FAF. E-mail: anaromsebal@hotmail.com
4Enfermeira, professora do curso de graduação em Enfermagem pela faculdade do Futuro – FAF. E-mail: lidiamarciatrabalhos2022@gmail.com