A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E SEUS REFLEXOS NO DIREITO SUCESSÓRIO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

SOCIOAFFECTIVE PATERNITY AND ITS REFLECTIONS ON BRAZILIAN SUCCESSION LAW: A JURISPRUDENTIAL ANALYSIS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202504261653


José Alberto Oliveira de Paula Machado1
Sofia Lorena Maia da Silva2


Resumo

O presente estudo analisa os impactos da paternidade socioafetiva no Direito Sucessório brasileiro, considerando a evolução do conceito de filiação e sua valorização no ordenamento jurídico. Com a superação do modelo exclusivamente biológico, a afetividade passou a ser um critério essencial na definição da parentalidade. A pesquisa aborda a consolidação desse reconhecimento na jurisprudência e os desafios enfrentados na sucessão hereditária, especialmente na equiparação dos direitos entre filhos biológicos e socioafetivos. Por meio de uma análise jurisprudencial, são examinadas decisões dos tribunais superiores e estaduais que reforçam a multiparentalidade e a igualdade sucessória. O estudo propõe soluções jurídicas, como a criação de normas específicas e o fortalecimento da mediação familiar, para garantir segurança jurídica e equidade na partilha de bens. Conclui-se que a regulamentação da paternidade socioafetiva é fundamental para assegurar a proteção dos laços afetivos e a harmonização do direito sucessório com as novas configurações familiares.

Palavras-chave: Paternidade socioafetiva. Multiparentalidade. Direito de Família. Direito Sucessório. Jurisprudência. 

Abstract

This study analyzes the impacts of socio-affective paternity on Brazilian inheritance law, considering the evolution of the concept of filiation and its appreciation in the legal system. With the overcoming of the exclusively biological model, affection has become an essential criterion in the definition of parenthood. The research addresses the consolidation of this recognition in case law and the challenges faced in hereditary succession, especially in the equalization of rights between biological and socio-affective children. Through a case law analysis, decisions of higher and state courts that reinforce multi-parenthood and equality in inheritance are examined. The study proposes legal solutions, such as the creation of specific rules and the strengthening of family mediation, to guarantee legal certainty and equity in the division of assets. It is concluded that the regulation of socio-affective paternity is essential to ensure the protection of affective ties and the harmonization of inheritance law with the new family configurations.

Key-words: Socio-affective paternity. Multiparenthood. Family Law. Succession Law. Case law. 

INTRODUÇÃO

As transformações sociais das últimas décadas impulsionaram mudanças significativas no conceito de família, desafiando a tradicional primazia do vínculo biológico na definição da parentalidade. Nesse contexto, a paternidade socioafetiva tem ganhado relevância no ordenamento jurídico brasileiro, refletindo uma valorização da afetividade e da convivência como elementos fundamentais na constituição dos laços familiares. Contudo, esse reconhecimento ainda enfrenta desafios, especialmente no que se refere ao Direito Sucessório, área na qual os direitos hereditários dos filhos socioafetivos nem sempre são plenamente assegurados.

O presente estudo tem como objetivo central analisar os impactos da paternidade socioafetiva no Direito Sucessório brasileiro, investigando como o ordenamento jurídico tem tratado esse tipo de filiação no que tange à transmissão de bens. Dessa forma, busca-se compreender até que ponto o Direito brasileiro está preparado para equiparar a paternidade socioafetiva à biológica, garantindo segurança jurídica aos envolvidos. Para isso, serão analisadas as normativas vigentes, os precedentes judiciais e obras de doutrinadores especialistas na referida temática.

A problemática desta pesquisa está centrada na seguinte questão: Em que medida o Direito brasileiro tem incorporado e validado a paternidade socioafetiva no contexto sucessório? O atual modelo normativo tem sido suficiente para assegurar aos filhos socioafetivos os mesmos direitos sucessórios dos filhos biológicos? Como o Poder Judiciário tem lidado com eventuais conflitos entre a filiação biológica e socioafetiva na partilha de bens? Essas questões são essenciais para compreender os desafios enfrentados na prática jurídica e propor soluções que garantam um tratamento isonômico aos filhos socioafetivos.

Parte-se da hipótese central de que a paternidade socioafetiva pode ser reconhecida como juridicamente equivalente à paternidade biológica no Brasil, especialmente no contexto sucessório, desde que fundamentada em uma convivência contínua e um vínculo afetivo estável e voluntário. Ademais, postula-se que a criação de normas específicas para regulamentar essa relação permitiria uma maior segurança jurídica, reduzindo conflitos e garantindo a proteção dos laços afetivos na transmissão do patrimônio.

Metodologicamente, a pesquisa se desenvolverá por meio de uma abordagem qualitativa, utilizando análise bibliográfica e documental de doutrinas, legislações e decisões judiciais relacionadas à temática. Serão estudadas jurisprudências dos tribunais superiores e estaduais para identificar padrões interpretativos e soluções adotadas pelo Judiciário. A análise crítica desses elementos permitirá a formulação de propostas para aprimorar a regulamentação da paternidade socioafetiva no Direito Sucessório brasileiro.

Para a seleção dos casos analisados, foram considerados decisões proferidas pelos tribunais superiores e estaduais que versam sobre a paternidade socioafetiva no contexto sucessório. Os critérios adotados incluem a relevância do caso no cenário jurídico nacional, a clareza dos fundamentos utilizados na decisão e a influência na uniformização da jurisprudência. Além disso, buscou-se abranger diferentes perspectivas sobre a matéria, incluindo decisões favoráveis e contrárias ao reconhecimento da filiação socioafetiva para fins sucessórios.

Assim, a relevância desta pesquisa irá se justificar tanto no campo jurídico quanto no social, uma vez que busca contribuir para o reconhecimento e a proteção dos direitos dos filhos socioafetivos no âmbito sucessório. A partir da análise crítica da legislação e da jurisprudência, espera-se fornecer subsídios para uma evolução normativa que contemple a realidade das famílias contemporâneas, garantindo a equidade e a segurança jurídica na transmissão de bens entre gerações.

1. A EVOLUÇÃO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA NO DIREITO BRASILEIRO

O conceito de paternidade socioafetiva, embora presente nas relações humanas há muito tempo, ganhou reconhecimento jurídico no Brasil apenas nas últimas décadas. A evolução desse conceito no direito brasileiro reflete uma mudança de paradigma, com a superação do modelo exclusivamente biológico de filiação em favor de um modelo que valoriza os laços de afeto e cuidado. Neste contexto, este tópico irá explorar a definição da paternidade socioafetiva e a sua trajetória no ordenamento jurídico brasileiro, desde suas primeiras manifestações até o reconhecimento consolidado na legislação e na jurisprudência, destacando os principais marcos dessa evolução, pois a compreensão destes pontos será fundamental para analisar seus impactos no direito sucessório, tema central deste artigo.

1.1. Conceito de Paternidade Socioafetiva

A paternidade socioafetiva pode ser definida como a relação entre pai/mãe e filho que se estabelece a partir do vínculo afetivo, independentemente da existência de laços biológicos. Esse conceito decorre da ideia de que a filiação não deve se basear apenas na genética, mas também na afetividade, no cuidado e na convivência contínua entre as partes.

Nesse sentido, Jorge Siguemitsu Fujita3, acerca do conceito de filiação socioafetiva, diz que: 

Filiação socioafetiva é aquela consistente na relação entre pai e filho, ou entre mãe e filho, ou entre pais e filho, em que inexiste liame de ordem sanguínea entre eles, havendo, porém, o afeto como elemento aglutinador, tal como uma sólida argamassa a uni-los em suas relações, quer de ordem pessoal, quer de ordem patrimonial.

Contudo, a fim de desbiologizar a paternidade, afirma a Doutrinadora Maria Berenice Dias que: “Toda paternidade é necessariamente socioafetiva. Em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não biológica.”4 

Assim, constata-se que a construção da paternidade socioafetiva ocorre quando uma pessoa assume, de forma voluntária ou não, o papel de pai ou mãe na vida de uma criança ou adolescente, proporcionando-lhe amor, educação, sustento e presença ativa em seu desenvolvimento, independente de consanguinidade. Dessa forma, o vínculo afetivo passa a se sobrepor ao fator biológico na determinação da parentalidade.

O reconhecimento da paternidade socioafetiva é alicerçado em princípios jurídicos basilares, como a afetividade, que reconhece o valor jurídico dos laços de afeto e cuidado; e o melhor interesse da criança e do adolescente, que prioriza a proteção e o bem-estar dos menores. Esses princípios, em conjunto, fundamentam a necessidade de reconhecimento da filiação socioafetiva, garantindo a proteção dos laços afetivos e o desenvolvimento saudável da criança ou adolescente. 

Sobre o Princípio da Afetividade, Fujita5 declara que: 

Além de ser um sentimento ligado à nossa vida psíquica e moral, tendo, pois, um valor ético, o afeto também possui um valor jurídico. Com efeito, Paulo Luiz Netto Lôbo aponta alguns fundamentos constitucionais importantes do princípio da afetividade. O primeiro se baseia na afirmativa de que todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem, com os mesmos direitos e qualificações, ficando proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação (CF, art. 227, § 6º). O segundo fundamento se lastreia na afirmação de que o filho adotivo, de origem socioafetiva, tem os mesmos direitos que os demais filhos biológicos ou naturais (CF, art. 227, §§ 5º e 6º). O terceiro elemento fundante é a família monoparental, constituída por um dos pais e seu filho (CF, art. 226, § 4o). O quarto fundamento é o direito à convivência, e não à origem genética, com absoluta prioridade da criança e do adolescente (CF, art. 227, caput).1 O último fundamento é o “dever de solidariedade, uns com os outros, dos pais para os filhos, dos filhos para os pais, e todos com relação aos idosos (CF, arts. 229 e 230)”.

Nesse trecho, Fujita destaca a relevância do princípio da afetividade no Direito de Família, conferindo a ele um reconhecimento jurídico que ultrapassa o mero sentimento ou vínculo emocional. A abordagem de Paulo Luiz Netto Lôbo6, citada no texto, evidencia como a Constituição Federal de 19887 estabelece bases normativas para esse princípio, garantindo a equiparação entre filhos biológicos, adotivos e socioafetivos, reforçando a proteção dos laços familiares independentemente da origem genética.

Ao reconhecer que a filiação não se restringe ao fator biológico, mas pode ser construída pela convivência e pelo afeto, o ordenamento jurídico brasileiro demonstra sua adequação à realidade social contemporânea. A proibição de discriminações quanto à origem da filiação (art. 227, § 6º) e o direito à convivência familiar (art. 227, caput) são exemplos concretos de como o princípio da afetividade orienta a proteção dos vínculos familiares. Além disso, a menção ao dever de solidariedade (arts. 229 e 230) reforça a ideia de que as relações familiares devem ser pautadas na reciprocidade e no cuidado mútuo, independentemente da consanguinidade.

A afetividade, nesse contexto, não apenas representa um laço emocional, mas adquire relevância jurídica, servindo como fundamento para o reconhecimento da paternidade socioafetiva. Esse reconhecimento se baseia na convivência duradoura, na manifestação contínua de cuidado e no vínculo de filiação construído ao longo do tempo, independentemente da ascendência genética. 

Nesse sentido, claramente, o princípio da afetividade não apenas legitima a paternidade socioafetiva, mas também contribui para a ampliação do conceito de família, priorizando a dignidade e o bem-estar daqueles que integram esses núcleos. Esse entendimento ressignifica as relações familiares à luz dos valores constitucionais, tornando o afeto um critério jurídico essencial para a configuração dos laços paternos e filiais.

Importa destacar que essa relação afetiva pode se apresentar de variadas maneiras, como na adoção, na utilização de técnicas de reprodução assistida heteróloga ou por doação, na posse do estado de filho, bem como na adoção à brasileira e no caso dos chamados “filhos de criação”.

A adoção é o processo legal que confere a uma pessoa ou casal a condição de pais de uma criança ou adolescente, rompendo os laços jurídicos com a família biológica e garantindo os mesmos direitos de filiação. Já a técnica de reprodução assistida heteróloga, envolve a concepção de um filho utilizando material genético de um terceiro doador, possibilitando o reconhecimento jurídico da paternidade aos pais que criam a criança.

A posse do estado de filho ocorre quando a relação entre pai e filho é consolidada pela convivência e pelo reconhecimento social, ainda que sem formalização jurídica inicial. A adoção à brasileira, por sua vez, é uma prática informal na qual uma pessoa registra uma criança como seu filho sem passar pelos trâmites legais da adoção, sendo baseada na criação e no afeto. Já os chamados “filhos de criação” referem-se a crianças criadas por uma família sem adoção formalizada, mas com um vínculo afetivo forte o suficiente para caracterizar uma relação de paternidade socioafetiva.

A análise do conceito, dos seus fundamentos e das diversas formas de paternidade socioafetiva nos permite compreender a complexidade do tema e a importância desta temática no direito sucessório, que será abordado detalhadamente em um próximo tópico.

1.2. Evolução Histórica e Jurídica da Paternidade Socioafetiva no Brasil

A evolução da paternidade socioafetiva no Brasil reflete as transformações sociais que moldaram o país ao longo das décadas. Durante os séculos XIX e XX, a legislação representava os valores da época. O Código Civil de 19168 era um reflexo desse contexto, evidenciando uma sociedade patriarcal que valorizava predominantemente o vínculo biológico nas relações familiares. Os artigos 233 e 234 deste código são exemplos claros dessa realidade:

Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal.

Compete-lhe:

I. A representação legal da família.

II. A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adaptado, ou do pacto antenupcial.

III. direito de fixar e mudar o domicílio da família.

IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal.

V. Prover à manutenção da família, guardada a disposição do art. 277.

Art. 234. A obrigação de sustentar a mulher cessa, para o marido, quando ela abandona sem justo motivo a habitação conjugal, e a esta recusa voltar. Neste caso, o juiz pode, segundo as circunstâncias, ordenar, em proveito do marido e dos filhos, o sequestro temporário de parte dos rendimentos particulares da mulher.

Dessa forma, observa-se que a estrutura familiar era rigidamente hierarquizada. Os referido artigos explicitam uma sociedade onde o marido exercia autoridade suprema, relegando a mulher a um papel de subordinação. Essa hierarquia se estendia a todos os aspectos da vida familiar, desde a administração dos bens até a tomada de decisões cotidianas.

Nesse contexto, o conceito de família era restrito e tradicional. O modelo familiar predominante era o nuclear, com o homem como provedor e a mulher como cuidadora do lar. Essa visão tradicional excluía outras formas de família, formadas por laços socioafetivos. Logo, existia uma valorização do vínculo biológico, desconsiderando a importância da afetividade na construção das relações familiares. A paternidade era, portanto, definida pela consanguinidade, e não pelo afeto.

Contudo, ao longo das décadas seguintes, a sociedade brasileira passou por profundas transformações, impulsionadas por mudanças sociais, culturais e jurídicas. A Constituição Federal de 19889 foi um marco nesse sentido, ao estabelecer a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. 5º, I) e reconhecer a pluralidade das entidades familiares (art. 226). Essa mudança na ordem constitucional abriu espaço para o reconhecimento dos diversos tipos de parentesco e filiação, inclusive o da paternidade socioafetiva, uma vez que o afeto passou a ser valorizado como elemento constitutivo de famílias..

Outro avanço significativo ocorreu com a reforma do Código Civil de 200210, que trouxe uma visão mais moderna das relações familiares, enfatizando o princípio da afetividade e o melhor interesse da criança. Com isso, a paternidade socioafetiva ganhou ainda mais respaldo jurídico, sendo consolidada, inclusive, por meio de decisões do Superior Tribunal de Justiça11.

Como consequência dessas transformações no corpo social, em 2012, na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, foi aprovado o Enunciado n. 519, que substanciou o reconhecimento da paternidade socioafetiva. O enunciado dispõe que “o reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais”. Esse posicionamento consolidou ainda mais a ideia de que o afeto é um dos principais fundamentos das relações de parentesco.

A partir desse momento, o Poder Judiciário passou a validar a paternidade socioafetiva como uma forma legítima de parentalidade, independentemente da existência de vínculos biológicos entre pai e filho. Desse modo, observa-se que a evolução dessa entidade familiar no Brasil ecoou em uma transformação no entendimento sobre a importância do afeto na constituição das relações de parentesco. Essas mudanças trouxeram importantes repercussões no direito de família e, como será abordado no próximo tópico, no direito sucessório, onde o reconhecimento da paternidade socioafetiva impacta diretamente na partilha de bens e na garantia de direitos hereditários.

2. IMPACTOS DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA NO DIREITO SUCESSÓRIO

A paternidade socioafetiva, reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro, transcende os limites da biologia, baseando-se no afeto e na convivência como alicerces da relação paterno-filial. Essa mudança de paradigma traz consigo uma série de implicações no direito sucessório, um campo tradicionalmente ancorado em laços sanguíneos.

A inclusão do filho socioafetivo na linha sucessória, com os mesmos direitos de um filho biológico, representa um avanço significativo na proteção dos laços afetivos e na garantia da igualdade entre os herdeiros. No entanto, essa nova realidade também suscita desafios e questionamentos, especialmente no que diz respeito à coexistência da paternidade biológica e socioafetiva, à necessidade de comprovação do vínculo afetivo e à garantia dos direitos sucessórios dos filhos socioafetivos. Assim, este tópico propõe-se a explorar os impactos da paternidade socioafetiva no direito sucessório.

2.1. Do Direito Sucessório

O Direito Sucessório é o ramo do Direito Civil responsável por regulamentar a transmissão do patrimônio de uma pessoa após sua morte. Seu principal objetivo é definir a quem caberá a herança do falecido e de que forma essa transmissão ocorrerá, respeitando a ordem legal de sucessão, as vontades expressas em testamento e os princípios jurídicos que regem a matéria.

Sobre essa temática, o advogado e escritor, Rolf Madaleno12 explica:

O termo sucessão, em sentido amplo, abrange tanto a transmissão por ato inter vivos quanto a transmissão causa mortis, mas no direito sucessório abarca apenas a sucessão pelo evento morte, podendo se dar pela lei ou por testamento, ou seja, a morte é o fato desencadeador da sucessão.

Nesse sentido, a sucessão pode ocorrer de duas formas: legítima ou testamentária. A sucessão legítima se dá na ausência de testamento e segue a ordem estabelecida pelo Código Civil13, privilegiando os herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge). Já a sucessão testamentária ocorre quando o falecido manifesta sua vontade por meio de testamento, desde que respeitados os limites legais, como a parte legítima que deve ser reservada aos herdeiros necessários.

A importância do Direito Sucessório está na necessidade de garantir a segurança jurídica das relações patrimoniais, evitando disputas e conflitos familiares. Nesse contexto, Rolf Madaleno14 destaca que: 

A incumbência fundamental do direito sucessório é determinar os efeitos que a morte produz sobre as relações jurídicas antes tituladas pelo falecido, estabelecendo quem vai continuar essas relações e de que modo o fará a partir da abertura da sucessão. A sucessão universal pressupõe a sub-rogação da posição jurídica titulada em vida pelo defunto e cujo lugar nas relações jurídicas passa a ser ocupado pelo herdeiro no tocante ao ativo dos bens deixados pelo falecido e também em relação ao passivo e até o limite das forças da herança (CC, art. 1.792). Com a sub-rogação, o herdeiro adquire os bens deixados pelo sucedido, assume suas dívidas na proporção dos bens recebidos e adquire a posse que o defunto detinha sobre os bens no momento de seu óbito.

Dessa forma, o Direito Sucessório não apenas organiza a destinação do patrimônio, mas também assegura que a sucessão ocorra de forma justa e ordenada, respeitando os direitos dos herdeiros e as disposições legais que protegem a continuidade das relações jurídicas do falecido, e refletindo valores fundamentais da sociedade, como a proteção familiar e a segurança jurídica. 

2.2. Efeitos da Paternidade Socioafetiva sobre a Sucessão

Historicamente, o Direito sucessório esteve fortemente vinculado às estruturas familiares tradicionais e aos laços consanguíneos. Entretanto, com as mudanças sociais e culturais, novas formas de organização familiar passaram a ser reconhecidas, impactando diretamente as normas sucessórias. O aumento de uniões estáveis, a multiparentalidade e o reconhecimento da paternidade e maternidade socioafetiva são exemplos de mudanças que desafiam a legislação tradicional e demandam atualizações para garantir uma sucessão mais justa e inclusiva. 

Ao longo do tempo, esse âmbito tem se adaptado a essas transformações, buscando assegurar uma sucessão mais equitativa e humanizada. Nesse contexto, verifica-se um avanço na ampliação da concepção de parentesco e filiação, que agora passam a ser baseadas no Princípio da Afetividade. No entanto, por ser um campo tradicionalmente fundamentado na consanguinidade, ainda enfrenta desafios na plena incorporação dessas novas realidades.

De início, cumpre-se dizer que, a paternidade socioafetiva emerge como um dos principais temas quando fala-se em Direito Sucessório, uma vez que o seu reconhecimento equipara o filho socioafetivo ao biológico para fins de transmissão patrimonial post mortem. Essa equiparação garante que o filho socioafetivo tenha os mesmos direitos hereditários que os demais filhos, independentemente da existência de vínculo biológico com o falecido.

No art. 227, parágrafo 6º, da Constituição Federal de 198815, o legislador estabelece o princípio da igualdade entre filhos. Veja-se:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão  § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. 

No entanto, essa equiparação traz consigo algumas questões complexas. Uma delas é a possibilidade de coexistência da filiação biológica e socioafetiva. Em alguns casos, o falecido pode ter tanto filhos biológicos quanto socioafetivos, o que pode gerar conflitos na partilha de bens.

Nessa perspectiva, o jurista Paulo Lôbo16, ao debater a coexistência de descendentes socioafetivos e biológicos, e os potenciais conflitos daí decorrentes, argumenta que:

Não pode haver colisão entre filiação socioafetiva e filiação biológica nas sucessões abertas. A igualdade entre filhos de qualquer origem é princípio cardeal do direito brasileiro, a partir da Constituição, incluindo o direito à sucessão aberta.

A legislação brasileira prevê quatro tipos de estados de filiação, decorrentes das seguintes origens: a) por consanguinidade; b) por adoção; c) por inseminação artificial heteróloga; d) por força de posse de estado de filiação. A consan guinidade, a mais ampla de todas, faz presumir o estado de filiação quando os pais são casados ou vivem em união estável, ou ainda na hipótese de família monoparental. O direito brasileiro não permite que os estados de filiação não consanguíneos sejam contraditados, com fundamento na ausência de origem biológica, pois são irreversíveis e invioláveis, no interesse do filho.

Além disso, em conformidade com a lei maior brasileira e sua interpretação, o Supremo Tribunal Federal, em 2016, fixou tese de repercussão geral (Tema 622, RE 898.060) com o seguinte enunciado: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com efeitos jurídicos próprios”17. Nesse sentido, “de acordo com o caso concreto que serviu de paradigma ao julgamento do STF, o registro civil deve contemplar dois pais, isto é, o pai socioafetivo e o pai biológico, além da mãe biológica; dois pais e uma mãe.”18

Essa decisão representou um marco na consolidação da multiparentalidade no ordenamento jurídico brasileiro, pois rompeu com uma visão tradicional que restringia a filiação a um único vínculo, seja biológico ou socioafetivo.

Ao reconhecer a coexistência da paternidade socioafetiva com a biológica, o STF reafirmou a primazia do melhor interesse da criança e do adolescente, consolidando a ideia de que a filiação não se restringe ao vínculo genético, mas também se constrói por meio do afeto e da convivência. No âmbito do direito sucessório, esta decisão teve impactos significativos, ampliando a proteção patrimonial em múltiplas configurações familiares. Com isso, tanto os pais biológicos quanto os socioafetivos passaram a transmitir direitos hereditários aos seus descendentes, sem que um vínculo exclua o outro. Contudo, essa nova realidade da multiparentalidade trouxe desafios jurídicos relevantes, como a necessidade de readequação dos critérios de partilha da herança e a busca por um equilíbrio entre os direitos.

Sobre o tema, Paulo Lôbo19 esclarece que:

A decisão do STF implica reciprocidade entre ascendentes e descendentes socioafetivos dos mesmos efeitos jurídicos atribuídos aos ascendentes e descendentes biológicos, sem qualquer restrição ou primazia. Como essa decisão é abrangente da multiparentalidade, a sucessão hereditária legítima deve ser assegurada ao filho de pais concomitantes biológicos e socioafetivos, em igualdade de condições. Aberta a sucessão de cada um deles é herdeiro legítimo de quota-parte atribuída aos herdeiros de mesma classe (direta ou por representação), imediatamente, em virtude da saisine. Os limites dizem respeito às legítimas dos herdeiros necessários de cada sucessão aberta e não ao número de pais autores das heranças. O filho será herdeiro necessário tanto do pai socioafetivo quanto do pai biológico, em igualdade de direitos em relação aos demais herdeiros necessários de cada um; terá duplo direito à herança, levando-o a situação vantajosa em relação aos respectivos irmãos socioafetivos, de um lado, e irmãos biológicos, do outro, mas essa não é razão impediente da aquisição do direito.

Logo, essa decisão do STF significou um avanço no Poder judiciário, visto que garante que os efeitos jurídicos da filiação socioafetiva sejam os mesmos da filiação biológica, sem que um tipo de vínculo tenha mais importância que o outro. Como a decisão de solicitar a multiparentalidade, um filho que tenha tantos pais biológicos quanto socioafetivos terá direito à herança de todos eles, em igualdade de condições.

Quando um dos pais falecer, esse filho será considerado herdeiro legítimo e terá direito à parte da herança correspondente à sua posição na família, conforme as regras de sucessão. O que define o valor da herança não é a quantidade de pais que ele tem, mas sim as regras que protegem a parte obrigatória dos herdeiros necessários em cada sucessão.

No entanto, é fundamental ressaltar que a comprovação do vínculo socioafetivo é essencial para o reconhecimento da filiação e, consequentemente, para o exercício dos direitos sucessórios. Além da coexistência entre a filiação biológica e socioafetiva, a transmissão patrimonial post mortem pode ser impactada pela necessidade de demonstrar a relação afetiva. Em muitos casos, a ausência de um registro formal desse vínculo pode dificultar sua comprovação, gerando incertezas jurídicas e possíveis prejuízos emocionais aos envolvidos.

Diante dessa realidade, é essencial que os particulares busquem o reconhecimento judicial ou extrajudicial da filiação socioafetiva. No âmbito judicial, isso ocorre por meio da ação de investigação de paternidade socioafetiva, na qual o vínculo pode ser comprovado por meio de provas documentais, testemunhais e periciais, assegurando os direitos sucessórios do filho socioafetivo.

Paralelamente, o ordenamento jurídico brasileiro também possibilita o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva, realizado diretamente no cartório de registro civil. Esse procedimento simplifica e agiliza a formalização do vínculo, proporcionando maior segurança jurídica.

No entanto, a ausência de regulamentação específica e as lacunas na legislação brasileira sobre a paternidade socioafetiva ainda dificultam a padronização desses procedimentos, tornando o reconhecimento mais demorado e, em alguns casos, desgastante para as partes envolvidas. Essa insegurança jurídica pode agravar o impacto emocional dos indivíduos que enfrentam esse processo, reforçando a necessidade de avanços legislativos para garantir maior proteção e celeridade na formalização da filiação socioafetiva.

3. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL: PRECEDENTES E CRITÉRIOS DOS TRIBUNAIS

Os precedentes judiciais têm desempenhado um papel fundamental na consolidação da paternidade socioafetiva e seus reflexos no direito sucessório. O reconhecimento das relações paternos-filiais afetivas pelos tribunais abriu caminho para a ampliação dos direitos dos filhos socioafetivos, garantindo-lhes igualdade no acesso à herança. No entanto, apesar dos avanços, a aplicação desses entendimentos ainda enfrenta desafios e lacunas que impedem a uniformidade das decisões.

Nesse contexto, este tópico irá abordar o estudo de casos paradigmáticos de paternidade socioafetiva na sucessão, o que permitirá compreender como os tribunais têm interpretado e aplicado os princípios da filiação afetiva na transmissão patrimonial. Essas decisões moldam o entendimento jurídico e servem de base para demandas futuras.

Além disso, o presente item irá identificar as tendências e lacunas na seleção sucessória, fator essencial para avaliar a evolução da temática e os desafios ainda existentes. 

3.1. Estudo de Casos Paradigmáticos de Paternidade Socioafetiva na Sucessão

A análise de casos concretos envolvendo a paternidade socioafetiva e o direito sucessório revela uma tensão constante entre a proteção das relações afetivas e a segurança jurídica do sistema de sucessão. Os tribunais brasileiros, ao se depararem com tais demandas, têm oscilado entre a ampliação do reconhecimento da socioafetividade e a imposição de requisitos rigorosos para conter distorções do instituto.

Nessa perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial de n.º 2367165/SP (2024)20, reafirmou a necessidade de uma manifestação inequívoca do falecido quanto ao reconhecimento da filiação socioafetiva para fins sucessórios. O caso ilustra a dificuldade probatória enfrentada pelos pretendentes à herança, uma vez que a ausência de declaração expressa do suposto pai ou mãe pode inviabilizar o reconhecimento. O fundamento para tal restrição reside na necessidade de evitar que a simples invocação de um laço afetivo, sem provas concretas, subverta a ordem sucessória tradicional. Veja-se:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.

RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM C/C PETIÇÃO DE HERANÇA. PRETENSÃO DE REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ . 1. Conforme jurisprudência desta Corte, o reconhecimento da filiação socioafetiva depende da demonstração da vontade manifesta do apontado pai socioafetivo de estabelecer laços de parentesco com efeitos patrimoniais. Precedentes. 2 . Na hipótese dos autos, o acórdão recorrido contém fundamentação robusta acerca da falta de demonstração dos requisitos para reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem, sobretudo diante da ausência de vontade clara e inequívoca do falecido em reconhecer a autora como filha. 3. Para aferir as alegações do agravante e afastar as premissas firmadas pelo Tribunal de origem no sentido de reconhecer a paternidade socioafetiva seria necessário o revolvimento do conteúdo fático-probatório dos autos, o que é vedado na via especial, nos termos da Súmula n. 7 desta Corte Superior . 4. Igualmente inadmissível o recurso especial pelo dissídio jurisprudencial, na medida em que a incidência da Súmula n. 7 desta Corte acerca do tema acima mencionado que se supõe divergente impede o conhecimento da insurgência veiculada pela alínea c do art. 105, III, da CF .Agravo interno improvido. (STJ – AgInt no AREsp: 2367165 SP 2023/0159617-4, Relator.: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 19/08/2024, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/08/2024)

No entanto, essa decisão suscita questionamentos sobre a excessiva formalidade na comprovação da socioafetividade, especialmente quando há evidências indiretas do vínculo. Se a relação de cuidado e afeto foi pública e notória, por que a exigência de uma manifestação expressa em vida? O rigor na análise das provas não pode servir como barreira intransponível para aqueles que efetivamente exerceram a função parental, mas que, por circunstâncias diversas, não formalizaram esse vínculo.

Por outro lado, o Recurso Especial de n.º 1487596/MG (2021)21 enfrentou a questão da multiparentalidade e o tratamento diferenciado entre pais biológicos e socioafetivos. O STJ, ao reformar a decisão da instância inferior, garantiu que a filiação socioafetiva gera os mesmos efeitos sucessórios da biológica, evitando discriminações entre os filhos. Confira-se o entendimento jurisprudencial:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE . TRATAMENTO JURÍDICO DIFERENCIADO. PAI BIOLÓGICO. PAI SOCIOAFETIVO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer, em sede de repercussão geral, a possibilidade da multiparentalidade, fixou a seguinte tese:”a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (RE 898060, Relator.: LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-187 DIVULG 23-08-2017 PUBLIC 24-08-2017). 2 . A possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, da CF). Isso porque conferir “status” diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos. 3 . No caso dos autos, a instância de origem, apesar de reconhecer a multiparentalidade, em razão da ligação afetiva entre enteada e padrasto, determinou que, na certidão de nascimento, constasse o termo “pai socioafetivo”, e afastou a possibilidade de efeitos patrimoniais e sucessórios.3.1. Ao assim decidir, a Corte estadual conferiu à recorrente uma posição filial inferior em relação aos demais descendentes do “genitor socioafetivo”, violando o disposto nos arts . 1.596 do CC/2002 e 20 da Lei n. 8.069/1990 .4. Recurso especial provido para reconhecer a equivalência de tratamento e dos efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva na hipótese de multiparentalidade. (STJ – REsp: 1487596 MG 2014/0263479-6, Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 28/09/2021, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/10/2021 RMDCPC vol. 104 p . 169 RSTJ vol. 263 p. 629)

O julgado é emblemático porque combate uma visão hierárquica da filiação, que ainda persiste no imaginário jurídico e social. Ao impor que o pai socioafetivo fosse identificado como tal no registro civil, mas sem os mesmos efeitos patrimoniais, a decisão recorrida perpetuava uma desigualdade injustificável. O STJ, ao reconhecer a equivalência de status entre as filiações, reafirma o princípio da dignidade da pessoa humana e a igualdade entre os filhos, evitando um retrocesso na evolução do direito das famílias.

Em outra perspectiva, o Tribunal de Justiça de Goiás22 destacou a relevância dos elementos de nome, trato e fama ao analisar a improcedência de pedido de reconhecimento de filiação socioafetiva e petição de herança: 

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA C/C PETIÇÃO DE HERANÇA E NULIDADE DE INVENTÁRIO/PARTILHA EXTRAJUDICIAL COM RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. NÃO COMPROVAÇÃO DO ESTADO DE FILHA DA APELANTE, TAMPOUCO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. AUSÊNCIA DE VONTADE DE ADOTAR . SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. 1. Para que se configure o estado de posse de filho, pressupõe-se a presença de três elementos, quais sejam, o nome, o trato e a fama. O primeiro requisito é dispensável, no entanto, o trato dos pais com o suposto filho deve envolver assistência financeira, psicológica, moral e afetiva . Já a fama se configura no reconhecimento da sociedade quanto a relação de pais e filho. 2. A filiação socioafetiva configura-se na existência de vontade e reconhecimento recíproco de ambos os envolvidos. 3 . No caso em exame, não houve comprovação do estado de posse de filha da recorrente, tampouco a filiação socioafetiva, uma vez que os documentos e testemunhos constantes nos autos não demonstram o reconhecimento da apelante como filha do casal imputado como pais socioafetivos perante a sociedade, inexistindo, também, a vontade dos segundos em adotá-la como filha. 4. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJ-GO – APL: 02776445420168090032, Relator.: EUDÉLCIO MACHADO FAGUNDES, Data de Julgamento: 11/02/2019, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 11/02/2019)

Nesse caso, a improcedência do pedido de reconhecimento de filiação socioafetiva e petição de herança foi baseada na ausência de comprovação do estado de posse de filho, um dos principais critérios para o reconhecimento da socioafetividade, com base nos elementos de trato, nome e fama.

A exigência desses elementos, embora justificada para garantir autenticidade ao vínculo, muitas vezes desconsidera contextos familiares informais, nos quais a afetividade existe, mas sem externalização pública. É preciso questionar até que ponto o critério da “fama” é adequado nos dias atuais, considerando que muitas relações familiares fogem do padrão tradicional e não são necessariamente publicizadas.

Outro demanda relevante foi também julgada pelo Tribunal de Justiça de Goiás23, na qual o recurso reformou uma decisão para negar o reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem, alegando que a intenção de perfilhar nunca foi manifestada pelo falecido. Esse caso reforça uma abordagem formalista, na qual a ausência de prova documental ou testemunhal suficiente impede o reconhecimento da filiação:

DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA POST MORTEM. PETIÇÃO DE HERANÇA . PARENTESCO CIVIL. SOCIOAFETIVIDADE. POSSE DO ESTADO DE FILHO. VÍNCULO AFETIVO . PROVA INEQUÍVOCA DA VONTADE DO AUTOR DA HERANÇA EM PERFILHAR. INEXISTÊNCIA. SENTENÇA REFORMADA. 1 . O parentesco civil psicológico ou socioafetivo demanda a posse do estado de filho e a prova inequívoca da vontade de perfilhar. 2. Na espécie, embora não se duvide do amor filial da apelada pelo autor da herança, verifica-se que a recíproca não é verdadeira. Pelo que consta dos autos, o falecido estimou a apelada como enteada e não teve a intenção de reconhecê-la como filha, tanto que não o fez durante os quase 12 (doze) anos de convivência . 3. Sentença reformada para julgar improcedente o pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva post mortem e a consequente petição de herança. 4. Ônus sucumbenciais e honorários advocatícios invertidos .APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E PROVIDA. (TJ-GO – APL: 03927955020118090127, Relator.: Des(a). FÁBIO CRISTÓVÃO DE CAMPOS FARIA, Data de Julgamento: 27/07/2020, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 27/07/2020)

No caso em comento, a decisão levanta um dilema: a vontade do falecido deve ser um critério absoluto? Sabemos que, em muitos casos, o reconhecimento formal da filiação só se torna uma questão relevante após a morte do suposto pai ou mãe. Diante disso, a exigência de manifestação expressa pode ser um entrave à proteção de vínculos reais e afetivos. O desafio, portanto, é equilibrar a segurança jurídica com a proteção de laços familiares genuínos.

Em outro caso notável, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), na Apelação Cível n.º 5001300892020821002024, reafirmou a necessidade de comprovação efetiva da posse do estado de filho para o reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem. A decisão exige, além da demonstração dos laços afetivos e do exercício das funções paternas, a confissão pública e reiterada do pretenso pai em vida. Tal posicionamento visa garantir a segurança jurídica e evitar fraudes, mas impõe barreiras probatórias para aqueles que buscam a multiparentalidade.

Leia-se:

APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM CUMULADA COM REGISTRO DE MULTIPARENTALIDADE. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA NÃO DEMONSTRADA . SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. \nPara que se configure a filiação socioafetiva, além de o pretenso pai ter de ocupar e desempenhar, na vida do pretenso filho, notória e continuamente, o lugar e a função de pai, cumprindo, afetuosamente, os deveres de sustento, guarda e educação, deve confessar, no meio em que vive, pública e reiteradamente, que é pai daquele menor ou maior de idade, o qual passa a gozar, neste contexto, da posse do estado de filho, abrindo ensejo ao reconhecimento de vínculo parental socioafetivo.\nHipótese dos autos em que, não obstante a relação socioafetiva mantida com a menor, a evidenciar a existência de laços afetuosos entre eles, não há demonstração suficiente de que o \de cujus\, em vida, tenha expressado o interesse no reconhecimento do vínculo jurídico de paternidade, não se podendo imputar a relação parental a quem nesse sentido não se manifestou.\nPrecedentes do TJRS .\nApelação desprovida. (TJ-RS – AC: 50013008920208210020 RS, Relator.: Carlos Eduardo Zietlow Duro, Data de Julgamento: 30/03/2022, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: 30/03/2022)

Como já dito anteriormente, embora coerente com a necessidade de prova inequívoca, essa exigência formalista pode desconsiderar vínculos afetivos reais, consolidando entraves desnecessários ao reconhecimento de relações familiares legítimas. A ausência de uma manifestação expressa em vida deve, de fato, prevalecer sobre a evidência de um vínculo afetivo consolidado e publicamente reconhecido?

De forma semelhante, o Tribunal de Justiça de Goiás, novamente, na Apelação Cível n.º 5001430382022821001125, reafirmou a necessidade de comprovação da posse do estado de filho para o reconhecimento da filiação socioafetiva post mortem. No caso em questão, não foram demonstrados elementos suficientes para configurar o vínculo parental, inexistindo prova de intenção do falecido em reconhecer juridicamente a apelante como filha. Além disso, o testamento público deixou de mencioná-la, reforçando a ausência de manifestação inequívoca do de cujus. Veja-se:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA POST MORTEM CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. AUSÊNCIA DOS ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. INEXISTÊNCIA DE PROVA DA POSSE DO ESTADO DE FILHO, DA INTENÇÃO DE ADOTAR OU RECONHECER JURIDICAMENTE A PARENTALIDADE. MERA GUARDA FÁTICA. HIPÓTESE EM QUE O DE CUJUS INCLUSIVE DEIXOU TESTAMENTO PÚBLICO, NO QUAL SEQUER FEZ MENÇÃO À APELANTE. RECURSO DESPROVIDO . (Apelação Cível, n.º 50014303820228210011, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator.: Vera Lucia Deboni, Julgado em: 24-04-2024)

(TJ-RS – Apelação: 50014303820228210011 CRUZ ALTA, Relator: Vera Lucia Deboni, Data de Julgamento: 24/04/2024, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: 24/04/2024)

A decisão destaca a distinção entre a guarda fática e o reconhecimento jurídico da paternidade socioafetiva, enfatizando a necessidade de elementos probatórios sólidos. Embora o rigor probatório busque preservar a segurança jurídica e a ordem sucessória, questiona-se se essa formalidade excessiva não pode, em alguns casos, inviabilizar o reconhecimento de laços familiares genuínos que, na prática, exerceram em vida a função parental.

Da mesma maneira, a controvérsia sobre a paternidade socioafetiva post mortem foi analisada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) em uma Apelação Cível26. No caso em questão, a falta de provas concretas da posse do estado de filho levou ao não reconhecimento do vínculo. A requerente não conseguiu demonstrar a existência de assistência financeira, psicológica ou moral, tampouco a exteriorização pública da relação, recaindo sobre ela o ônus da prova, como demonstra a ementa:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – DIREITO DE FAMÍLIA – AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM C/C PETIÇÃO DE HERANÇA – POSSE DE ESTADO DE FILHO – INEXISTÊNCIA – PROVA DOCUMENTAL E TESTEMUNHAL INSUFICIENTES PARA COMPROVAR A PATERNIDADE – ÔNUS DA PROVA DA REQUERENTE – RECURSO DESPROVIDO. 1. O reconhecimento da paternidade respaldada pelo liame afetivo encontra respaldo no artigo 1.593, do Código Civil, o qual prevê que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou de outra origem . 2. O estado de posse de filho resta configurado quando demonstrados os requisitos de trato e fama, sendo o primeiro caracterizado por meio da assistência financeira, psicológica, moral e afetiva; ao passo que o segundo é a exteriorização do estado vindicado perante a sociedade. 3. Ausente demonstração de que o relacionamento entre a autora o de cujus era de pai e filha, ônus que incumbia a requerente, o reconhecimento da paternidade socioafetiva não encontra condições de agasalho . Precedentes dos Tribunais de Minas Gerais e Paraná. (TJ-MG – Apelação Cível: 5015710-60.2021.8 .13.0079 1.0000.24 .168089-1/001, Relator.: Des.(a) Francisco Ricardo Sales Costa (JD Convocado), Data de Julgamento: 14/06/2024, Câmara Justiça 4.0 – Especial, Data de Publicação: 19/06/2024)

Esse veredito evidencia a importância de distinguir a mera convivência afetiva da posse de estado de filho, que exige manifestações públicas e contínuas do suposto pai. No entanto, até que ponto essa exigência formalista reflete a realidade das relações familiares? Muitos vínculos afetivos, ainda que intensos e duradouros, não são formalizados juridicamente, seja por desconhecimento, receio ou até mesmo por fatores culturais. Ao condicionar o reconhecimento da paternidade socioafetiva a uma comprovação estritamente objetiva, corre-se o risco de desconsiderar histórias de cuidado e afeto entre dois ou mais indivíduos.

Logo, a discussão sobre a paternidade socioafetiva e o direito sucessório revela a complexidade de harmonizar os princípios da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana. Enquanto alguns julgados privilegiam a formalidade e a manifestação inequívoca do vínculo, outros reconhecem a necessidade de proteger os laços afetivos que se consolidam ao longo da convivência. O caminho ideal parece residir na busca de um equilíbrio entre garantir a autenticidade da relação parental e assegurar que vínculos afetivos legítimos não sejam desprezados em razão de excessivas formalidades.

3.2. Tendências e Lacunas na Jurisprudência Sucessória

Como se observa, a jurisprudência sucessória brasileira enfrenta desafios importantes ao lidar com a paternidade socioafetiva, especialmente na busca pelo equilíbrio entre a segurança jurídica e a proteção dos vínculos afetivos. A análise de julgados recentes revela uma oscilação entre a ampliação do reconhecimento da socioafetividade e a imposição de requisitos formais específicos, o que gera incertezas no âmbito sucessório.

Uma das tendências mais evidentes é a exigência de manifestação inequívoca do falecido para fins de reconhecimento da paternidade socioafetiva, conforme reafirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n.º 2367165/SP (2024)27. Esse posicionamento visa evitar que a simples invocação de um laço afetivo, sem provas concretas, subverta a ordem sucessória tradicional. Entretanto, essa rigidez probatória pode dificultar o reconhecimento de relações socioafetivas genuínas, especialmente quando não há documentação formal do vínculo.

Por outro lado, observa-se um movimento progressista em prol da multiparentalidade e da igualdade sucessória entre filhos biológicos e socioafetivos. Decisões como a proferida no Recurso Especial n.º 1487596/MG (2021)28 reforçam a equiparação dos direitos sucessórios de filhos, independentemente da origem do vínculo parental. Esse entendimento combate uma visão hierárquica da filiação e reafirma o princípio da dignidade da pessoa humana, alinhando-se à evolução do direito das famílias.

Entretanto, lacunas permanecem. A falta de critérios uniformes para a comprovação da socioafetividade, especialmente em contextos familiares informais, representa um desafio significativo. Tribunais como o do Estado de Goiás têm enfatizado a necessidade dos elementos de nome, trato e fama para validar a relação socioafetiva, o que pode excluir laços afetivos reais que não foram amplamente reconhecidos publicamente.

Outra incerteza relevante é a análise da vontade presumida do falecido em casos onde o vínculo socioafetivo era notório, mas não houve declaração expressa. Decisões como as do Tribunal do Rio Grande do Sul e do Tribunal de Minas Gerais reforçam a exigência de manifestação clara e reiterada em vida, mas questiona-se se essa formalidade não pode inviabilizar o reconhecimento de relações afetivas autênticas.

Nesse contexto, o Poder Judiciário e Legislativo brasileiro ao tratar sobre casos de sucessão e socioafetividade precisa buscar um ponto de equilíbrio entre segurança jurídica e proteção dos laços afetivos. A evolução normativa e jurisprudencial deve contemplar formas de garantir autenticidade no reconhecimento socioafetivo, sem que isso represente um entrave para vínculos efetivamente consolidados. A proteção da dignidade e da igualdade dos filhos deve prevalecer sobre formalismos que desconsiderem realidades familiares contemporâneas.

4. SOLUÇÕES JURÍDICAS PARA OS DESAFIOS DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA NO DIREITO SUCESSÓRIO

Conforme observado, a paternidade socioafetiva, reconhecida e consolidada no ordenamento jurídico brasileiro, representa um importante avanço na valorização dos laços afetivos em detrimento das relações meramente biológicas. No entanto, no âmbito do direito sucessório, sua aplicação ainda enfrenta algumas controvérsias que demandam soluções jurídicas inovadoras.

Sob essa ótica, surgem questionamentos relevantes quanto à concorrência de direitos entre descendentes biológicos e socioafetivos, bem como sobre a possibilidade de dupla parentalidade, quando coexistem ambos os vínculos.

A aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana e da afetividade impõe que o ordenamento jurídico ofereça mecanismos que garantam tratamento equânime aos filhos socioafetivos, evitando discriminações e assegurando a plena efetividade dos direitos sucessórios. Para tanto, é essencial considerar as particularidades de cada caso, adotando uma interpretação constitucionalmente adequada e pautada na proteção integral do núcleo familiar.

Diante dos desafios supracitados, a criação de uma legislação específica que discipline a paternidade socioafetiva e seus reflexos no Direito Sucessório revela-se não apenas recomendável, mas imprescindível. Tal medida proporcionaria maior segurança jurídica, uniformizaria os entendimentos e garantiria a proteção dos direitos sucessórios dos filhos socioafetivos.

Além disso, outro fator determinante seria a incentivação da mediação familiar e dos acordos extrajudiciais, a fim de evitar litígios prolongados e proporcionar soluções consensuais que respeitem os vínculos afetivos estabelecidos.

Por fim, a ampliação de jurisprudências garantistas reforçariam o princípio da igualdade entre filhos. O fortalecimento de decisões judiciais que reconheçam a igualdade de direitos sucessórios entre filhos biológicos e socioafetivos é fundamental para consolidar a proteção jurídica dessas relações.

Diante da complexidade e da relevância dos desafios apresentados durante o presente artigo, torna-se evidente a necessidade de um olhar jurídico sensível à realidade da paternidade socioafetiva no contexto do direito sucessório. A busca por soluções que garantam a equidade, a segurança jurídica e a proteção integral da família exige um esforço conjunto de legisladores, juristas e da sociedade como um todo. 

Logo, ao priorizar o princípio da dignidade da pessoa humana e a valorização das relações familiares, o ordenamento jurídico brasileiro estará contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, onde o afeto e o respeito prevaleçam sobre as meras formalidades biológicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo demonstrou que a paternidade socioafetiva tem sido gradualmente reconhecida no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no âmbito do Direito das Famílias e Sucessório. Partiu-se da premissa de que a filiação baseada no afeto deve ser equiparada à biológica, garantindo segurança jurídica e proteção aos filhos socioafetivos.

Ao longo do tempo, as transformações sociais e jurídicas consolidaram a paternidade socioafetiva como um dos pilares essenciais da identidade familiar contemporânea. O princípio da afetividade, cada vez mais valorizado no ordenamento jurídico, reforça que o vínculo entre pais e filhos vai além da relação biológica, sendo construído pelo cuidado, pela convivência e pela intenção genuína de estabelecer um laço parental duradouro.

Nesse contexto, o reconhecimento da paternidade socioafetiva é fruto de um longo processo legislativo e jurisprudencial, que acompanha a evolução da própria concepção de família. Desde suas primeiras discussões no meio acadêmico até sua afirmação pelo Supremo Tribunal Federal, observa-se um avanço significativo na valorização dessas relações. A segurança jurídica conferida a esse vínculo tem sido fundamental para sua efetivação e para a proteção dos laços familiares baseados no afeto.

Além disso, verificou-se que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu o princípio da igualdade entre os filhos, independentemente da origem da filiação, assegurando-lhes os mesmos direitos sucessórios. No entanto, a aplicação desse princípio no contexto sucessório ainda enfrenta desafios, sobretudo no que diz respeito à necessidade de comprovação do vínculo socioafetivo e à coexistência entre filiação biológica e afetiva.

Diante desse cenário, o estudo buscou responder às seguintes questões: De que forma o Direito brasileiro tem incorporado e validado a paternidade socioafetiva na sucessão hereditária? O atual modelo normativo é suficiente para garantir aos filhos socioafetivos os mesmos direitos sucessórios dos filhos biológicos? Como o Poder Judiciário tem resolvido eventuais conflitos entre filiação biológica e socioafetiva na partilha de bens?

A pesquisa confirmou a hipótese inicial de que a evolução doutrinária e jurisprudencial tem caminhado no sentido de equiparar a paternidade socioafetiva à biológica. A jurisprudência recente reafirma essa legitimidade, reconhecendo a igualdade de direitos sucessórios para os filhos socioafetivos. Assim, fica claro que a família não deve ser compreendida apenas como uma estrutura baseada em laços genéticos, mas como um espaço de afeto, cuidado e compromisso.

O papel do Poder Judiciário tem sido determinante nesse processo. Tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça têm contribuído com avanços importantes, como o reconhecimento da multiparentalidade. No entanto, as decisões judiciais ainda oscilam entre uma abordagem mais garantista e uma exigência excessiva na comprovação da relação socioafetiva, o que pode gerar insegurança jurídica.

A pesquisa também reforçou que, embora a paternidade socioafetiva possa ser reconhecida juridicamente em igualdade com a biológica, isso depende da comprovação da posse do estado de filho. Esse requisito tem sido fundamental para a validação desse vínculo no contexto sucessório.

Por fim, destaca-se a necessidade de avanços legislativos que tragam maior previsibilidade e proteção aos filhos socioafetivos na sucessão hereditária. A criação de dispositivos normativos específicos e o fortalecimento da mediação familiar podem contribuir para a harmonização desse tema, garantindo que a sucessão respeite não apenas a ordem jurídica, mas também os laços afetivos que verdadeiramente constituem a família.

Portanto, conclui-se que a paternidade vai além da biologia, devendo ser compreendida como uma relação baseada no amor, na dedicação, na afetividade e na responsabilidade. O fortalecimento da socioafetividade no Direito não só garante segurança jurídica a essas relações, mas também contribui para uma sociedade mais justa e inclusiva. Assim, ao reconhecer e valorizar os laços formados pelo afeto, o ordenamento jurídico reafirma seu compromisso com a dignidade humana e com a proteção das diversas formas de constituição familiar.


3FUJITA, Jorge Siguemitsu. Filiação, 2ª ed., 2011, p. 71.

4DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. Pg. 631.

5FUJITA, Jorge Siguemitsu. Filiação, 2ª ed., 2011, p. 110.

6LÔBO, Paulo Luiz Netto, renomado jurista brasileiro especializado em direito de família. 

7BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, arts. 227, caput e §6º, 229 e 230. Brasília, DF: Senado Federal, 1988

8BRASIL. Lei n.º 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, arts. 233 e 234. Rio de Janeiro, 1º jan. 1916.

9BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, arts. 5º, I e 226. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

10BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Senado Federal, 2002

11STJ – REsp: 1078285 MS 2008/0169039-0, Relator.: Ministro MASSAMI UYEDA, Data de Julgamento: 13/10/2009, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/08/2010

12MADALENO, Rolf. Sucessão Legítima, 2ª ed., 2020, p. 257.

13BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Art. 1.845. Brasília, DF: Senado Federal, 2002

14MADALENO, Rolf. Sucessão Legítima, 2ª ed., 2020, p. 257.

15BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 227, §6º. Brasília, DF: Senado Federal, 1988

16LÔBO, Paulo. Direito civil: sucessões., 10ª ed., v. 6, 2024, p. 113.

17BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 898.060. Relator: Ministro Luiz Fux. Tema 622 da repercussão geral. Brasília, DF, 2016

18LÔBO, Paulo. Direito civil: sucessões., 10ª ed., v. 6, 2024, p. 83

19LÔBO, Paulo. Direito civil: sucessões., 10ª ed., v. 6, 2024, p. 114.

20BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. AgInt no AREsp 2367165/SP, Rel. Min. Humberto Martins, 3ª Turma, julgada em 19 ago. 2024, DJe 22 ago. 2024.

21BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. REsp 1487596/MG, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgada em 28 set. 2021, DJe 01 out. 2021.

22GOIÁS. Tribunal de Justiça. Ementa. Apelação Cível 02776445420168090032, Rel. Des. Eudélcio Machado Fagundes, 3ª Câmara Cível, julgado em 11 fev. 2019, DJ 11 fev. 2019.

23GOIÁS. Tribunal de Justiça. Ementa. Apelação Cível 03927955020118090127, Rel. Des. Fábio Cristovão de Campos Faria, 3ª Câmara Cível, julgado em 27 jul. 2020, DJ 27 jul. 2020.

24RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ementa. Apelação Cível n.º 50013008920208210020, Rel. Des.: Carlos Eduardo Zietlow Duro, 7º Câmara Cível, Julgado em 30 mar. 2022, DJ 30 mar. 2022.

25RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ementa. Apelação Cível n.º 50014303820228210011, Rel. Des.: Vera Lucia Deboni, 7º Câmara Cível, Julgado em 24 abr. 2024, DJ 24 abr. 2024.

26MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Ementa. Apelação Cível n.o 5015710-60.2021.8.13.00791.0000.24.168089-1/001, Rel. Des. Francisco Ricardo Sales Costa (JD Convocado), Câmara Justiça 4.0 – Especial, Julgado em 14 jun. 2024, DJ 19 jun. 2024.

27BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. AgInt no AREsp 2367165/SP, Rel. Min. Humberto Martins, 3ª Turma, julgada em 19 ago. 2024, DJe 22 ago. 2024

28BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. REsp 1487596/MG, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgada em 28 set. 2021, DJe 01 out. 2021

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002.

BRASIL. Lei n.º 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Coleção de Leis da República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, v. 1, p. 1-454, 1916.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. AgInt no AREsp 2367165/SP, Rel. Min. Humberto Martins, 3ª Turma, julgada em 19 ago. 2024, DJe 22 ago. 2024.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa. REsp 1078285/MS, Rel. Min. Massami Uyeda, 3ª Turma, julgada em 13 out. 2009, DJe 18 ago. 2010.

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1Docente pela Faculdade Católica de Rondônia. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2018). Doutor em Ciências Jurídicas pela UNIVALI/SC. Defensor Público pela Defensoria Pública do Estado de Rondônia. E-mail: jose.machado@fcr.edu.br

2Acadêmica do curso de Direito da Faculdade Católica de Rondônia. E-mail: sofia.maia@sou.fcr.edu.br