REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202512310858
Marco Aurélio Ceccato
RESUMO
O presente artigo analisa a viabilidade jurídica de o Município indenizar ocupantes de áreas públicas em razão da omissão prolongada no dever de fiscalização do solo urbano. O ponto de partida é o confronto entre o dogma da imprescritibilidade dos bens públicos (que qualifica a ocupação como mera detenção insuscetível de usucapião ou indenização possessória, conforme Súmula 619/STJ) e a realidade das ocupações consolidadas, muitas vezes fomentadas pela prestação de serviços públicos. Propõe-se uma “terceira via” argumentativa que desloca o eixo do debate do Direito das Coisas para a responsabilidade civil do Estado. A tese central sustenta que a inércia administrativa qualificada pelo tempo e pela aparência de tolerância gera no particular uma expectativa legítima, corolário da segurança jurídica. Assim, a retomada do imóvel sem prévia compensação configuraria uma quebra do princípio da proteção da confiança legítima. Diferentemente da indenização possessória, a reparação aqui defendida se refere ao dano de confiança (Vertrauensschaden), sendo necessariamente mitigada. Seu escopo limita-se ao ressarcimento dos custos de desmobilização e auxílio-locação, visando garantir a dignidade da pessoa humana e a função social da cidade sem vulnerar a inalienabilidade do patrimônio público. A fixação do quantum deve observar vetores axiológicos como a longevidade da ocupação, a boa-fé subjetiva induzida por atos estatais e o investimento despendido na moradia mínima. Conclui-se que o Direito Administrativo deve responder por seus silêncios, harmonizando a legalidade urbana com a responsabilidade ética perante o administrado.
Palavras-chave: bens públicos; omissão administrativa; ocupações urbanas; confiança legítima; responsabilidade civil do Estado; indenização.
INTRODUÇÃO
O Direito Administrativo brasileiro, herdeiro de uma tradição estatista e protetiva do patrimônio público, erigiu o dogma da imprescritibilidade de bens públicos como barreira intransponível à apropriação privada de bens estatais. Esse regime de blindagem, fundado na premissa de que o interesse público é indisponível e que o tempo não corre contra o Estado (art. 183, § 3º1, e art. 191, parágrafo único2, da CF/88), encontra-se em rota de colisão frontal com o fenômeno das ocupações urbanas informais consolidadas.
A realidade das cidades brasileiras revela um cenário em que a norma jurídica e o fato social habitam universos paralelos. De um lado, o ordenamento qualifica a ocupação de bens públicos como mera detenção, de natureza precária e insuscetível de proteção possessória; de outro, comunidades inteiras estabelecem-se sobre solo público por décadas, sob o olhar absenteísta (ou até complacente) da Administração Pública. Essa consolidação fática de moradias, muitas vezes dotadas de infraestrutura básica provida pelo próprio ente público, desafia a rigidez do conceito jurídico de detenção e impõe a reflexão sobre o limite da inércia estatal.
Nesse contexto, a tensão reside na dificuldade de reconciliar a natureza inalienável do domínio público com a legítima expectativa de estabilidade gerada no particular que, por gerações, residiu em área jamais reclamada. A aplicação mecânica da Súmula 619 do Superior Tribunal de Justiça (STJ)3, embora tecnicamente alinhada ao regime dos bens públicos, parece ignorar o fenômeno da surrectio4 de direitos ou, ao menos, a responsabilidade decorrente do descumprimento do dever de polícia urbana.
A relevância deste trabalho justifica-se pela obsolescência das soluções puramente binárias (“reintegração sumária sem indenização” versus “reconhecimento de domínio”), que têm se mostrado ineficazes e socialmente explosivas. O impasse jurídico atual reside na incapacidade do sistema de oferecer uma via intermediária que não fira a Constituição, mas que também não ignore a falha do serviço público de fiscalização.
A necessidade de harmonização entre a supremacia do interesse público e os direitos fundamentais à moradia e à dignidade da pessoa humana não é apenas um exercício retórico, mas um imperativo do Estado Democrático de Direito. A retomada de áreas de risco ou necessárias à expansão viária, embora legítima e urgente, não pode ser operada como se a Administração fosse uma terceira alheia ao processo de ocupação que ela própria permitiu florescer por omissão.
Academicamente, o debate propõe-se a deslocar o foco da posse para a conduta estatal omissiva. Se o particular não pode ser “dono” por força constitucional, o Estado, por sua vez, não pode ser juridicamente irresponsável por força do princípio da legalidade e do dever-poder de agir.
O objetivo geral deste estudo é analisar a viabilidade jurídica de se imputar ao Município o dever de indenizar ocupantes de bens públicos quando a retomada do imóvel decorrer de um cenário de omissão administrativa prolongada. Pretende-se, especificamente:
- Diferenciar a indenização por benfeitorias possessórias (rejeitada pela jurisprudência) da indenização por quebra da confiança legítima;
- Investigar o nexo de causalidade entre a inação fiscalizatória e o dano experimentado pelo particular no momento da desocupação;
- Propor critérios jurídicos para essa reparação, visando à dignidade na transição habitacional.
A tese que ora se submete à crítica acadêmica sustenta que a omissão persistente do Município no dever de controle do uso do solo (art. 30, VIII, CF/88)5 transmuda a natureza da relação entre Estado e ocupante. Ainda que a ocupação permaneça precária no plano da propriedade, a inércia administrativa qualificada pelo tempo gera no particular uma expectativa legítima, corolário da segurança jurídica.
Propõe-se que a indenização devida não se confunde com o valor da posse ou das acessões (o que seria uma burla à vedação de usucapião), mas constitui uma reparação pelo dano de confiança (Vertrauensschaden). O Município, ao falhar no dever de obstar a ocupação e, por vezes, ao fomentála indiretamente com serviços públicos, vincula-se ao estado de coisas criado. A indenização mitigada, portanto, serviria como um instrumento de justiça distributiva e de responsabilidade civil por omissão, focada exclusivamente nos custos de desmobilização e realocação, garantindo que a retomada da legalidade não se faça à custa do aniquilamento existencial do administrado que confiou na aparência de tolerância estatal.
1. FUNDAMENTOS DO REGIME JURÍDICO DOS BENS PÚBLICOS E AS EXCEÇÕES À USUCAPIÃO
O sistema jurídico brasileiro, ao disciplinar o patrimônio estatal, optou por um modelo de superproteção que retira tais bens do comércio jurídico ordinário, conferindo-lhes prerrogativas de indisponibilidade que se manifestam, primordialmente, pela inalienabilidade, impenhorabilidade e imprescritibilidade (DI PIETRO, 2022)6. Esta última, núcleo do debate ora proposto, atua como um óbice intransponível à prescrição aquisitiva por particulares.
1.1 O princípio da imprescritibilidade dos bens públicos no ordenamento jurídico brasileiro
A imprescritibilidade não é apenas uma regra técnica, mas um postulado destinado a salvaguardar o patrimônio da coletividade contra a inércia, dolosa ou culposa, dos gestores de plantão. No Direito brasileiro, essa proteção goza de assento constitucional e reforço infraconstitucional, consolidando um regime de “imunidade” contra o tempo, isto é, os bens públicos são insuscetíveis de aquisição por usucapião (CARVALHO FILHO, 2020)7.
A Constituição Federal de 1988 é taxativa ao declarar, no parágrafo 3º do art. 183 e no parágrafo único do art. 191, que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião, seja em zonas urbanas ou rurais. A literalidade do texto constitucional não deixa margem para distinções fundadas na categoria do bem, estabelecendo uma proibição absoluta que o Código Civil de 2002 veio a reiterar em seu art. 1028. Essa opção política do constituinte visa impedir que o patrimônio público seja esvaziado pela negligência administrativa, garantindo que o interesse público primário prevaleça sobre a pretensão individual de apropriação do solo estatal.
A despeito da unidade do regime de imprescritibilidade, o Código Civil (art. 99) classifica os bens em três categorias: os de uso comum do povo (p. ex. logradouros), os de uso especial (p. ex. prédios administrativos) e os dominicais (patrimônio disponível)9.
Embora os bens dominicais possuam uma natureza mais próxima aos bens privados (por serem alienáveis), o ordenamento não os excluiu da proteção contra a usucapião. Historicamente, a Súmula 340 do Supremo Tribunal Federal (STF) já havia sedimentado que, desde a vigência do Código de 1916, mesmo os bens dominicais são insuscetíveis de prescrição aquisitiva.10 Portanto, a afetação ou desafetação do bem altera sua disponibilidade para alienação, mas não retira sua proteção contra a usurpação pelo decurso temporal.
1.2 A ocupação de área pública sob a ótica do Direito Civil e Administrativo
A qualificação jurídica da relação entre o particular e o solo público é o ponto de clivagem que impede a aplicação das proteções possessórias típicas do Direito Privado, ao menos em sua plenitude.
No regime administrativo, quem ocupa área pública sem título legítimo não exerce posse, mas sim mera detenção. Conforme os arts. 1.19811 e 1.20812 do Código Civil, a detenção caracteriza-se por uma relação de subordinação ou pela prática de atos de mera permissão ou tolerância. No caso do bem público, a ausência de jus possidendi pelo particular torna sua ocupação intrinsecamente precária.
Dessa forma, o ocupante é um intruso ou detentor a título precário, o que aniquila qualquer pretensão de invocar os interditos possessórios contra o Poder Público, uma vez que a posse do Estado é considerada permanente e insuscetível de esbulho por particular13.
O Superior Tribunal de Justiça, ao editar a Súmula nº 619, cristalizou o entendimento de que a ocupação indevida de bem público configura mera detenção, o que afasta o direito à retenção ou à indenização por benfeitorias, ainda que úteis ou necessárias. Conforme a literalidade do Enunciado, “a ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias”.
Essa diretriz jurisprudencial é o maior obstáculo prático à pretensão dos ocupantes. O fundamento é ético-jurídico: admitir o dever de indenizar benfeitorias em solo público equivaleria a premiar a ilicitude da invasão e onerar o erário para recuperar o que já lhe pertence, criando uma espécie de posse privada por via transversa, não se podendo admitir a aquisição de direito em desconformidade com o próprio Direito (MEIRELLES, 2016, p. 660).14
Aprofundando o rigor do regime, o STJ tem avançado para reconhecer que o ocupante, longe de ser credor, é devedor do Estado. No paradigmático REsp 1.755.340/RJ, a Corte reafirmou que a ocupação irregular gera o dever de o invasor pagar pela “privação da posse” sofrida pela Administração, e não o contrário, para além de outras sanções severas relacionadas à tutela dos imóveis públicos15.
Utilizando-se, por analogia, do art. 10 da Lei 9.636/98, sustenta-se que o ocupante deve indenizar o Estado pelo uso indevido, o que reforça a tese do “risco integral” assumido por quem edifica em solo alheio de natureza pública. O ato ilícito, para o infrator, não deve gerar vantagens, mas obrigações.
1.3 O contraponto doutrinário: a tese da relativização da imprescritibilidade
Apesar da solidez da barreira normativa e jurisprudencial exposta, vozes doutrinárias contemporâneas buscam flexibilizar esse rigor com base em princípios de estatura constitucional.
A corrente minoritária sustenta que a função social da propriedade (art. 5º, XXIII, CF) deve ser aplicada também ao Estado. Argumenta-se que um bem dominical, deixado ao abandono por décadas e cumprindo função de moradia para famílias de baixa renda, não poderia ser protegido de forma absoluta pela imprescritibilidade. Nessa visão, o direito à moradia e a dignidade humana deveriam ser ponderados contra o interesse patrimonial (secundário) do Estado.
Esta teoria distingue o bem que está efetivamente servindo a uma finalidade pública (materialmente público) daquele que apenas consta no patrimônio estatal sem destinação (formalmente público). Segundo autores dessa corrente minoritária, a usucapião poderia incidir sobre os bens formalmente públicos (dominicais), pois estes não estariam exercendo a função social que justifica sua blindagem (OLIVEIRA, 2021, e TARTUCE, 2021)16.
Contudo, como reconhece a própria doutrina de vanguarda, tal tese esbarra na literalidade intransigente da Constituição Federal, o que demandaria, para sua plena aceitação, uma reforma do texto maior ou, ao menos, uma mutação constitucional, mantendo-se, por ora, como uma provocação acadêmica que serve de base para o desenvolvimento da tese aqui proposta de indenização mitigada pela quebra de confiança17.
2. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MUNICÍPIO PELA OMISSÃO E O DANO DA CONFIANÇA LEGÍTIMA
A construção de uma tese que viabilize a indenização mitigada em favor de ocupantes de áreas públicas exige o deslocamento do eixo analítico do Direito das coisas para o Direito da responsabilidade civil e dos princípios administrativos. O foco não reside no “ter” (posse), mas no “agir” (ou não agir) estatal e nas legítimas expectativas dele decorrentes.
2.1 O poder-dever de fiscalização municipal como elemento da responsabilidade
A responsabilidade administrativa pressupõe o descumprimento de uma obrigação jurídica preexistente. No caso do ordenamento territorial, o Município não é apenas um proprietário, mas um gestor do espaço urbano, detentor de competências que são, em verdade, deveres-poderes.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 30, VIII, atribuiu aos Municípios a competência exclusiva para promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Esta norma não encerra uma faculdade política, mas uma imposição funcional. O Município é o guardião da cidade e, como tal, deve zelar para que o solo seja ocupado em conformidade com o Plano Diretor e as normas ambientais.
Diferentemente de outras escolhas administrativas, a fiscalização de invasões em áreas públicas ou de risco não se submete à conveniência e oportunidade do administrador. Trata-se de atividade vinculada. A omissão na repressão imediata de ocupações indevidas constitui uma ilegalidade omissiva, uma vez que a inação compromete o próprio desenvolvimento das funções sociais da cidade (art. 182, CF/88)18, ainda mais havendo sistemas de monitoramento georreferenciado em tempo real para obstar o início de novas ocupações. Entendemos que, ao quedar-se inerte, o Município abdica de sua função de autoridade urbana, gerando um vácuo de legalidade que o próprio Estado tem o dever de impedir.
2.2 A responsabilidade objetiva do Estado por ato omissivo específico
A dogmática da responsabilidade civil do Estado evoluiu para distinguir as formas de omissão. Enquanto a omissão genérica reclama a prova da culpa do serviço (faute du service), a omissão específica atrai a responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º, da CF/8819, sempre que o Estado tinha o dever legal de agir para evitar o dano e não o fez20.
A tese ora defendida sustenta que a inação administrativa prolongada (por vezes estendendo-se por décadas) atua como concausa na consolidação do prejuízo sofrido pelo particular no momento da desocupação. Não se trata de uma omissão instantânea, mas de uma conduta omissiva continuada que permite que o particular invista recursos, tempo e vida em uma área que o Município deveria ter resguardado ab initio. O nexo causal estabelece-se entre a falta de fiscalização e a ampliação do dano decorrente da remoção tardia.
A responsabilidade torna-se inafastável quando o Município possui conhecimento inequívoco da ocupação, seja pela prestação de serviços públicos no local, seja por notificações ou cadastros, e, ainda assim, permite sua perpetuação. Neste cenário, a omissão deixa de ser anônima e passa a ser específica. O Estado torna-se garante de uma situação de fato que ele próprio consentiu pelo silêncio, o que atrai o dever de reparação pelos danos acessórios causados àqueles que ali se estabeleceram.
2.3 O princípio da proteção da confiança legítima no direito administrativo
O princípio da proteção da confiança legítima, desdobramento subjetivo da segurança jurídica, impede que a Administração Pública adote comportamentos contraditórios que surpreendam o administrado de forma gravosa, após ter gerado nele uma fundada expectativa de estabilidade21.
O Estado não pode se comportar de forma contraditória (venire contra factum proprium)22. Se o Município tolera uma ocupação pelo decorrer dos anos, dota a rua de asfalto e iluminação, e permite a instalação de equipamentos públicos no entorno, ele emite sinais contraditórios ao sistema jurídico. Por um lado, a lei diz que o bem é imprescritível; por outro, a conduta material do Estado sinaliza uma integração daquela comunidade à malha urbana oficial. A confiança gerada por esses atos materiais deve ser protegida pelo Direito Administrativo.
A prestação de serviços públicos essenciais na área ocupada é o “fato gerador” máximo da confiança. Quando o Estado tributa ou fornece infraestrutura a um núcleo informal, ele “urbaniza a irregularidade” na consciência do ocupante. Embora tais atos não tenham o condão de transmitir a propriedade (limite constitucional), eles são suficientes para gerar uma expectativa legítima de que aquela moradia, se removida, o será mediante uma compensação que viabilize a continuidade da dignidade humana em outro local.
2.4 Indenização não-possessória: o dano de confiança (Vertrauensschaden) como objeto da reparação
Aqui reside o cerne deste artigo de opinião: a natureza jurídica da indenização. Não se defende o pagamento pela perda da posse ou pelo valor do imóvel (teses repelidas pela Súmula 619/STJ), mas sim o ressarcimento pelo dano de confiança (Vertrauensschaden) ou violação a um dever anexo de conduta, o que pode vir a ser desenvolvido tanto pelo legislador positivo (preferencialmente) quanto pelos tribunais brasileiros23.
Enquanto a indenização possessória visa recompor o patrimônio imobiliário (vedado em bens públicos), a indenização pela confiança visa recompor o dano sofrido por ter o particular acreditado na estabilidade daquela situação tolerada pelo Estado. O objeto da reparação é a frustração da legítima expectativa e os prejuízos decorrentes da necessidade súbita de rearranjo existencial após décadas de inércia estatal.
Defendemos que esta indenização deve ser mitigada. Ela não deve corresponder ao valor de mercado do bem, sob pena de enriquecimento sem causa do particular contra o erário. O foco deve ser o ressarcimento dos custos de desmobilização (mudança, perda de materiais não reaproveitáveis) e auxílio-locação provisório. Trata-se de uma verba de transição que garanta o direito fundamental à moradia, sem violar a regra da inalienabilidade do solo público.
A fixação do quantum indenizatório, no cenário de ocupações consolidadas em solo público por omissão estatal, deve ser regida pelo postulado da proporcionalidade24. Diferente da desapropriação comum, em que se busca o valor de mercado para a “justa indenização”, aqui a reparação volta-se à mitigação de um dano decorrente da frustração de uma expectativa que o próprio Estado ajudou a construir. Entendemos, pois, que o arbitramento deve ser norteado por três vetores axiológicos fundamentais: (i) tempo de ocupação; (ii) boa-fé subjetiva e (iii) investimento realizado.
O primeiro vetor é temporal. O tempo, no Direito Administrativo, possui o condão de estabilizar relações jurídicas, ainda que precárias em sua origem. A indenização deve ser diretamente proporcional ao tempo de ocupação. Uma permanência de três décadas, tolerada e incontrastada, gera uma camada de confiança muito mais densa do que uma ocupação recente. A omissão administrativa continuada atua como um fator de agravamento da responsabilidade civil, pois quanto maior o tempo de inação, maior é o dever do Estado de suavizar o impacto da remoção tardia.
O segundo vetor é a confiança em sentido estrito. A modulação deve aferir o grau de induzimento ao erro. Quando o particular é contemplado com serviços públicos essenciais (como o recebimento de contas de água, energia e IPTU em seu nome ou a matrícula de filhos em escolas adjacentes), o Município emite sinais claros de “urbanização da irregularidade”. Esses atos materiais funcionam como elementos indutores de uma crença na perenidade da situação fática. O quantum deve refletir essa aparência de direito: quanto mais o Estado agiu como se a área fosse regular, maior deve ser a compensação pela quebra abrupta dessa confiança.
Por fim, o terceiro vetor é econômico-social. Deve-se considerar o esforço financeiro empregado pelo detentor na construção da moradia familiar mínima. Note-se que não se trata de indenizar o “valor venal” do imóvel para fins de mercado, mas de quantificar o prejuízo material direto para fins de reassentamento digno. A indenização, portanto, assume um caráter compensatório mitigado, voltado a cobrir os custos de desmobilização e o aporte necessário para que a família não seja lançada ao desabrigo absoluto. A função social da cidade exige que a retomada do bem público não se converta em uma fábrica de novos problemas sociais.
Em suma, a opinião acadêmica aqui sustentada é a de que a justiça da decisão reside na análise casuística desses critérios, de modo que a indenização seja suficiente para honrar a dignidade da pessoa humana, mas contida o bastante para não vulnerar o princípio da indisponibilidade do patrimônio público.
3. CONCLUSÃO
O estudo buscou descortinar as insuficiências de uma aplicação puramente mecânica e isolada do regime jurídico dos bens públicos face à complexidade das patologias urbanas brasileiras. Ao cabo desta análise, é possível traçar as conclusões que sustentam a viabilidade de uma terceira via entre a expropriação sumária e a aquisição originária da propriedade.
Ao longo deste trabalho, demonstrou-se que o dogma da imprescritibilidade, embora fundamental para a salvaguarda do patrimônio coletivo, não pode servir de salvo-conduto para a irresponsabilidade estatal. A tensão entre a supremacia do interesse público (materializada na inalienabilidade do solo) e a dignidade da pessoa humana (concretizada no direito à moradia) não se resolve pela aniquilação de um polo pelo outro, mas pela técnica da ponderação.
Argumentou-se que a inércia do Município no exercício do seu poder-dever de fiscalização urbana (art. 30, VIII, CF/88) transmuda uma situação de ilegalidade em um estado de confiança induzida. O silêncio administrativo qualificado pelo tempo e pela prestação de serviços públicos na área ocupada não outorga a posse jurídica ao particular, mas retira do ente público o direito de retomar a área sem assumir as consequências de sua própria omissão. A “culpa do serviço” (faute du service) revela-se no vácuo de autoridade que permitiu a consolidação de núcleos urbanos sobre o patrimônio estatal.
A tese central aqui defendida, e que ora se reafirma, é a de que a indenização devida em casos de desocupação forçada de bens públicos consolidados não possui natureza possessória, mas natureza reparatória da confiança.
É imperativo distinguir: enquanto a Súmula 619 do STJ veda o pagamento por benfeitorias fundado na posse (inexistente), o art. 37, § 6º, da Constituição Federal impõe a responsabilidade civil objetiva por danos decorrentes da omissão específica. O dano, no caso, é a quebra da legítima confiança (Vertrauensschaden) de que aquela ocupação era, se não legal, ao menos tolerada em caráter permanente.
Essa indenização, contudo, deve ser necessariamente mitigada. Ela não visa o enriquecimento do infrator nem o reembolso do valor venal do imóvel, mas sim a garantia de uma transição habitacional digna. O foco reside no ressarcimento dos custos de desmobilização e no auxílio para realocação, servindo como um corretivo à desídia administrativa e um anteparo ao aniquilamento social das famílias afetadas.
Em última análise, o que se propõe é um Direito Administrativo que não apenas vigia, mas que responde pelos seus silêncios. A retomada da legalidade urbana é necessária, mas não pode ser operada sob o manto da injustiça contra aqueles que o próprio Estado, em sua omissão, ensinou a confiar.
1CF/1988, art. 183, § 3º. “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”.
2CF/1988, art. 191, parágrafo único. “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”.
3STJ, Súmula n. 619 (2018): “A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias”.
4“Por outro lado, e em direção oposta à supressio, mas com ela intimamente ligada, tem-se a teoria da surrectio, cujo desdobramento é a aquisição de um direito pelo decurso do tempo, pela expectativa legitimamente despertada por ação ou comportamento” (STJ, REsp 1338432/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 24/10/2017, Quarta Turma).
5CF/1988, art. 30. “Compete aos Municípios: (…) VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”.
6“São, portanto, características dos bens das duas modalidades integrantes do domínio público do Estado a inalienabilidade e, como decorrência desta, a imprescritibilidade, a impenhorabilidade e a impossibilidade de oneração” (DI PIETRO, 2022).
7“A imprescritibilidade significa que os bens públicos são insuscetíveis de aquisição por usucapião, e isso independentemente da categoria a que pertençam. Houve, é bem verdade, inúmeros questionamentos a respeito dessa característica especial dos bens públicos. Contudo, o Direito brasileiro sempre dispensou aos bens públicos essa proteção, evitando que, por meio do (sic) usucapião, pudessem ser alienados como o são os bens privados, quando o possuidor mantém a posse dos bens por determinado período. A propósito, cabe lembrar que desde o Brasil Colônia já era acolhida essa proteção. A Lei nº 601, de 1850, a primeira lei de terras, também fixou a imprescritibilidade. Posteriormente, os Decretos nºs 19.924, de 27.4.1931, 22.785, de 31.5.1933, e 710, de 17.9.1938, confirmaram a garantia. Mais recentemente, o STF, em sua Súmula 340, assentou: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”. A matéria, pois, está sedimentada” (CARVALHO FILHO, 2020).
8Código Civil, art. 102. “Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”.
9“Os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial sujeitam-se a um regime jurídico peculiar: “Com relação aos bens de uso comum e de uso especial, nenhuma lei estabelece a possibilidade de alienação; por estarem afetados a fins públicos, estão fora do comércio jurídico de direito privado, não podendo ser objeto de relações jurídicas regidas pelo Direito Civil (…). No entanto, é possível a alienação por meio de institutos publicísticos (…)”. Portanto, os bens públicos afetados ao uso comum e ao uso especial não podem ser alienados. Eles apenas poderão ser alienados após desafetação, caso em que se tornarão bens dominicais” (NERY, 2019). 10 STF, Súmula n. 340 (1963). “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”.
10A despeito de prevalecer o entendimento jurisprudencial de que a ocupação de área pública configura mera “detenção”, há divergência acadêmica no campo civilista quanto a esse entendimento. Flávio Tartuce, por exemplo, sustenta que tal ocupação seria modalidade de “posse precária” (injusta), e não de detenção: “Partindo para as concretizações jurisprudenciais, o STJ vinha julgando reiteradamente que a ocupação irregular de área pública não induziria posse, mas ato de mera detenção (por todos: STJ, REsp 556.721/DF, 2.ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, data da decisão: 15.09.2005). O objetivo dessa forma de julgar era o de afastar qualquer pretensão de usucapião de bens públicos, presente a citada ocupação irregular. Com o devido respeito, sempre entendi que o caso seria não de detenção, mas de uma posse precária que, por ser injusta, não geraria a usucapião. Todavia, em havendo posse, o ocupante-invasor poderia propor ações possessórias contra terceiros. Em 2016, surgiu decisão do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido, corrigindo aquele equívoco anterior. (…) Porém, seguindo o primeiro entendimento e contrariando o último acórdão da Terceira Turma, a Corte Especial do STJ aprovou, em outubro de 2018, a Súmula n. 619, segundo a qual, “a ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias”. Assim, a questão estabilizou-se no Tribunal Superior, sendo esse o entendimento a ser considerado, para os devidos fins teóricos e práticos” (TARTUCE, 2021).
11Código Civil, art. 1.198. “Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas”.
12Código Civil, art. 1.208. “Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”.
13“A ocupação ilegítima em área do domínio público, ainda que por longo período, permite que o Estado formule a respectiva pretensão reintegratória, sendo incabível a alegação de omissão administrativa” (CARVALHO FILHO, 2020).
14“A imprescritibilidade dos bens públicos decorre como consequência lógica de sua inalienabilidade originária. E é fácil demonstrar a assertiva: se os bens públicos são originariamente inalienáveis, segue-se que ninguém os pode adquirir enquanto guardarem essa condição. Daí não ser possível a invocação de usucapião sobre eles. E princípio jurídico, de aceitação universal, que não há direito contra Direito, ou, por outras palavras, não se adquire direito em desconformidade com o Direito” (MEIRELLES, 2016, p. 660). No mesmo sentido é o entendimento do STJ: “Representa despropósito pretender, sob o pálio do art. 43 do Código Civil, transmudar o particular que esbulha imóvel público em vítima de dano causado pelo Estado que, sem liberdade alguma, precisa atuar no exercício legítimo do direito de reavê-lo, administrativa ou judicialmente, de quem o ocupa, usa, aproveita ou explora ilegalmente. Se a apropriação do bem público opera contra legem, intuitivo que gere multiplicidade de obrigações contra o esbulhador, mas não direitos exercitáveis contra a vítima, mormente efeitos possessórios. Postulado nuclear do Estado de Direito é que ninguém adquira direitos passando por cima do Direito e que o ato ilícito, para o infrator, não gere vantagens, só obrigações, ressalvadas hipóteses excepcionais, ética e socialmente justificadas, de enfraquecimento da antijuridicidade, como a prescrição e a boa-fé de terceiro inocente” (STJ, REsp 1755340/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 10/03/2020, Segunda Turma).
15“O legislador atribui ao Administrador inafastável obrigação de agir, dever-poder não discricionário de zelar pelo patrimônio público, cujo descumprimento provoca reações de várias ordens para o funcionário relapso, desidioso, medroso, ímprobo ou corrupto. Entre as medidas de tutela de imóveis públicos, incluem-se: a) despejo sumário e imissão imediata na posse (art. 10, caput, da Lei 9.636/1998 e art. 71, caput, do Decreto-Lei 9.760/1946); b) “demolição e/ou remoção do aterro, construção, obra, cercas ou demais benfeitorias, bem como dos equipamentos instalados, à conta de quem os houver efetuado” (art. 6º, § 4º, IV, do Decreto-Lei 22.398/1987); c) perda, “sem direito a qualquer indenização”, de eventuais acessões e benfeitorias realizadas (art. 71, caput, do Decreto-Lei 9.760/1946), exceto as necessárias, desde que com notificação prévia e inequívoca ao Estado; d) ressarcimento-piso tarifado pela mera privação da posse da União (art. 10, parágrafo único, da Lei 9.636/1998); e) pagamento complementar por benefícios econômicos auferidos, apurados em perícia, sobretudo se houver exploração comercial do bem (vedação de enriquecimento sem causa, art. 884, caput, do Código Civil); f) restauração integral do imóvel ao seu estado original, g) indenização por danos morais coletivos, nomeadamente quando o imóvel estiver afetado a uso comum do povo ou a uso especial; h) cancelamento imediato de anotações imobiliárias existentes (art. 10, caput, da Lei 9.636/1998), inclusive “registro de posse”, inoponível à União; i) impossibilidade de alegar direito de retenção” (STJ, REsp 1755340/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 10/03/2020, Segunda Turma).
16“Apesar do entendimento amplamente dominante da doutrina e na jurisprudência, que afirmam a imprescritibilidade de todos os bens públicos, entendemos que a prescrição aquisitiva (usucapião) poderia abranger os bens públicos dominicais ou formalmente públicos, tendo em vista os seguintes argumentos: a) esses bens não atendem à função social da propriedade pública, qual seja, o atendimento das necessidades coletivas (interesses públicos primários), satisfazendo apenas o denominado interesse público secundário (patrimonial) do Estado; b) em razão da relativização do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado por meio do processo de ponderação de interesses, pautado pela proporcionalidade, a solução do conflito resultaria na preponderância concreta dos direitos fundamentais do particular (dignidade da pessoa humana e direito à moradia) em detrimento do interesse público secundário do Estado (o bem dominical, por estar desafetado, não atende às necessidades coletivas, mas possui potencial econômico em caso de eventual alienação)” (OLIVEIRA, 2021). Em sentido similar: “Apesar da literalidade da norma, há juristas que defendem a possibilidade de usucapião de bens públicos. Entre os clássicos, Sílvio Rodrigues sustentava a sua viabilidade, desde que a usucapião atingisse os bens públicos dominicais, caso das terras devolutas. O argumento utilizado era no sentido de que, sendo alienáveis, tais bens seriam prescritíveis e usucapíveis. Entre os doutrinadores contemporâneos, a tese de usucapião dos bens públicos é amplamente defendida por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (…). A tese da usucapião de bens públicos é sedutora, merecendo a adesão parcial deste autor. Para tanto, deve-se levar em conta o princípio da função social da propriedade, plenamente aplicável aos bens públicos, como bem defendeu Silvio Ferreira da Rocha, em sua tese de livre-docência perante a PUCSP” (TARTUCE, 2021).
18“Clama-se pela alteração do Texto Maior, até porque, muitas vezes, o Estado não atende a tal regramento fundamental ao exercer o seu domínio. Como passo inicial para essa mudança de paradigmas, é importante flexibilizar o que consta da CF/1988. (…) Em suma, cabe à doutrina e à jurisprudência a tarefa de rever esse antigo paradigma, alterando-se a legislação superior. Olhando para o futuro, baseada na funcionalização dos institutos, essa parece ser a tendência. É o que se espera, pelo menos” (TARTUCE, 2021).
CF/1988, art. 182. “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.
19CF/1988, art. 37, § 6º. “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
20“1. A responsabilidade civil estatal é, em regra, objetiva, uma vez que decorre do risco administrativo, em que não se exige perquirir sobre existência de culpa, conforme disciplinado pelos arts. 14 do Código de Defesa do Consumidor; 186, 192 e 927 do Código Civil; e 37, § 6º, da Constituição Federal. 2 . O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se ao entendimento do Excelso Pretório, firmou compreensão de que o Poder Público, inclusive por atos omissivos, responde de forma objetiva quando constatada a precariedade/vício no serviço decorrente da falha no dever legal e específico de agir” (STJ, REsp 1708325/RS, j. 24/05/2022, Segunda Turma).
21“Uma das principais inovações do direito administrativo brasileiro recente, nos moldes do Estado de Direito consagrado pela Constituição Federal de 1988, reside na afirmação entre nós do princípio da proteção da confiança na relação entre a Administração Pública e os administrados. A recepção do princípio resultante da influência decisiva do direito alemão sobre o direito público brasileiro recente, assim como seu desenvolvimento, deve-se especialmente aos trabalhos divulgados pelo eminente Professor Almiro do Couto e Silva. O princípio da proteção da confiança subsume-se no direito brasileiro, a partir de uma compreensão atualizada do princípio da segurança jurídica (…).No que se refere exclusivamente às relações jurídico-administrativas, a proteção da confiança desempenha eficácia reconhecida na redefinição de uma série de enquadramentos da atuação estatal. A rigor, como se vê, a proteção da confiança constitui limite à atuação administrativa, em especial, ao exigir do exercício do poder pelo Estado-Administração, a consideração não apenas das razões de interesse público implicadas em determinada conduta administrativa, mas, igualmente, o respeito às situações havidas, constituídas regularmente ou – eventualmente – que padeçam de eventual irregularidade, mas que de algum modo (em especial em razão do decurso do tempo e a boa fé), se consolidaram, representando sua retirada do mundo jurídico, a frustração de expectativas legítimas e prejuízos àquele que originalmente beneficiado” (MIRAGEM, 2017).
22“A proteção da confiança no direito administrativo, como decorrência do princípio do Estado de Direito, resulta na proteção das expectativas legítimas dos administrados em relação à ação administrativa, e na medida em que confiam no comportamento do Poder Público, decorre de eventual frustração deste comportamento a responsabilidade da Administração. Assim se dá nas situações típicas que, informadas pelo princípio da boa-fé objetiva, resultam paralisar ou mitigar os efeitos da conduta contrária à confiança despertada, como é o caso da proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium), a supresssio, a surrectio e a tu quoque” (MIRAGEM, 2017). No mesmo sentido é a jurisprudência do STJ: “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme quanto à aplicação dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, bem como da vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium), a impedir que a parte, após praticar ato em determinado sentido, venha a adotar comportamento posterior e contraditório” (STJ, AgInt no AREsp 1981356/MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 22/08/2022, Terceira Turma).
23“Considera-se a confiança uma expressão da solidariedade, juntamente com a boa-fé objetiva, com vistas à efetiva função social do contrato e à consecução final deste. Sua violação enseja, para o direito alemão atual, “dano de confiança” (Vertrauensschaden); e no Brasil, “por enquanto”, representa a violação de um dever anexo de conduta, sem maiores consequências – embora um grande passo tenha sido dado com a evolução doutrinária pátria e com o emblemático julgado do STJ (AgInt no AgRg no Agravo em Recurso Especial 267.726-SP , de outubro de 2016, mencionado no Capítulo 5, item 5.5) que admitiu a natureza contratual da responsabilidade civil derivada do não cumprimento de deveres anexos” (MORAIS, 2024).
24“Em razão da relativização do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado por meio do processo de ponderação de interesses, pautado pela proporcionalidade, a solução do conflito resultaria na preponderância concreta dos direitos fundamentais do particular (dignidade da pessoa humana e direito à moradia) em detrimento do interesse público secundário do Estado” (OLIVEIRA, 2021, p. 732).
REFERÊNCIAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2020. Livro eletrônico.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 35. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. Livro eletrônico.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
MIRAGEM, Bruno. Direito administrativo aplicado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. Livro eletrônico.
MORAIS, Ezequiel. A Boa-Fé Objetiva Pré-Contratual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2024. Livro eletrônico.
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de Direito Civil: Direitos Patrimoniais, Reais e Registrários. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019. Livro eletrônico.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2021. Livro eletrônico.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2021. Livro eletrônico.
