ATENDIMENTO HUMANIZADO NA BARBEARIA: IMPACTOS SOBRE AUTOESTIMA, SAÚDE CAPILAR E BEM-ESTAR DO HOMEM URBANO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202512182133


Paulo Dias Júnior


Resumo 

Este artigo analisa como barbearias contemporâneas, hoje reconhecidas como espaços de convivência masculina e cuidado com a aparência, podem atuar como dispositivos complementares de promoção da saúde. A partir de um ensaio teórico baseado em literatura nacional e internacional sobre saúde do homem, tricologia e intervenções em barbearias, bem como em políticas públicas brasileiras como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) e a Política Nacional de Humanização, discute-se a aproximação entre prática do barbeiro, tricologia e cuidado centrado na pessoa. Argumenta-se que a barbearia constitui ponto privilegiado de contato com homens que frequentemente evitam serviços formais de saúde. Experiências em barbearias voltadas ao controle da hipertensão em homens negros, à saúde mental e à educação em autocuidado capilar ilustram o potencial desse ambiente para identificar agravos, reduzir barreiras de acesso e fortalecer vínculos com a rede assistencial. Por fim, são discutidos limites éticos da atuação do barbeiro e do terapeuta capilar, reforçando que a humanização na barbearia não substitui a assistência médica, mas a complementa em um modelo ampliado de cuidado ao homem.

Palavras-chave: barbearia; tricologia; saúde do homem; atendimento humanizado; bem-estar masculino.

Abstract (shorter version)

This article examines how contemporary barbershops, now recognized as spaces of male socialization and appearance care, can act as complementary devices for health promotion. Based on a theoretical essay drawing on national and international literature on men’s health, trichology, and barbershop-based interventions, as well as Brazilian public policies such as the National Policy for Comprehensive Healthcare for Men (PNAISH) and the National Humanization Policy, it discusses the convergence between barbers’ practice, trichology, and person-centered care. The article argues that barbershops are a privileged point of contact with men who often avoid formal health services. Experiences of barbershop programs focused on hypertension control in Black men, mental health support, and education on hair and scalp self-care illustrate the potential of these spaces to identify health problems, reduce access barriers, and strengthen connections with the healthcare network. Finally, it addresses the ethical limits of barbers’ and hair therapists’ roles, emphasizing that humanized care in barbershops does not replace medical assistance but complements it within an expanded model of men’s care.

Keywords: barbershop; trichology; men’s health; humanized care; male well-being.

1. Introdução

Nas últimas duas décadas, barbearias tradicionais e premium têm se multiplicado no Brasil e em diversos países, acompanhando uma reconfiguração dos modos como os homens se relacionam com a própria aparência, com a estética e com o autocuidado. Aquilo que antes era frequentemente classificado como vaidade “excessiva” vem sendo ressignificado em termos de bem-estar, autoexpressão e saúde, em sintonia com transformações culturais mais amplas em torno das masculinidades.

Esse movimento convive com um dado amplamente descrito na saúde pública: homens seguem procurando menos os serviços de saúde, em especial a atenção primária, e costumam chegar mais tarde aos cuidados, com quadros mais graves e maior mortalidade por causas evitáveis. Estudos em diferentes países indicam que os homens utilizam menos consultas de atenção primária do que as mulheres, mesmo quando apresentam perfis comparáveis de adoecimento, o que reforça a existência de uma lacuna de acesso associada a normas de gênero e a modelos tradicionais de masculinidade.

No contexto brasileiro, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) reconhece essa realidade e aponta a necessidade de estratégias específicas para abordar a população masculina em seus territórios de socialização, considerando seus modos de vida e as barreiras subjetivas e objetivas que dificultam o cuidado em saúde.

É nesse cruzamento que a barbearia se destaca como espaço particularmente relevante. Diferentemente de consultórios e unidades de saúde, a barbearia é um ambiente no qual muitos homens se sentem à vontade, circulam com frequência e constroem relações de confiança de longo prazo com o barbeiro. Em paralelo, a tricologia tem se consolidado como área de interface entre a dermatologia e as práticas de cuidado estético, oferecendo instrumentos técnicos para reconhecer e encaminhar disfunções capilares.

Com base em um ensaio teórico de caráter exploratório, fundamentado em revisão narrativa de literatura nacional e internacional sobre saúde masculina, tricologia e intervenções em barbearias, este artigo discute como o atendimento humanizado em barbearias – articulado à tricologia e às políticas de saúde do homem – pode funcionar como dispositivo de promoção de saúde e bem-estar. A análise organiza-se em três eixos: (1) o lugar social da barbearia nas masculinidades contemporâneas; (2) a relevância das disfunções capilares para a saúde física e emocional de homens; e (3) os princípios de humanização do cuidado que podem orientar o trabalho do barbeiro-terapeuta capilar, sem ultrapassar os limites éticos de sua atuação.

2. Masculinidades, saúde do homem e o lugar social da barbearia

2.1 Homens, serviços de saúde e barreiras de acesso

A literatura sobre saúde do homem é consistente ao mostrar que, em média, eles demoram mais a buscar ajuda, tendem a subestimar sintomas e frequentemente só procuram serviços em situações agudas. Estudos com bases de dados de atenção primária evidenciam taxas de consulta significativamente menores entre homens, mesmo após ajuste por idade, renda e condições clínicas.

Entre os fatores associados a esse padrão, destacam-se normas de masculinidade que valorizam autocontrole, força e invulnerabilidade; experiências prévias de atendimento pouco acolhedor; horários de funcionamento dos serviços pouco compatíveis com a jornada de trabalho; e baixa literacia em saúde. Diretrizes internacionais, incluindo documentos da Organização Mundial da Saúde, sublinham que papéis de gênero, expectativas sociais e desigualdades de poder estruturam de forma decisiva a maneira como homens e mulheres se relacionam com o cuidado e com os sistemas de saúde.

Ao ser instituída, a PNAISH reconheceu expressamente que muitos homens entram no sistema de saúde já pela via especializada e hospitalar, quando os agravos se encontram em estágio avançado, gerando maior morbidade e custos mais altos para o sistema. A política propõe, entre outras diretrizes, o fortalecimento da atenção básica, a aproximação de serviços aos territórios masculinos e o diálogo com espaços não tradicionais de cuidado.

2.2 Barbearias como espaços de convivência e cuidado

Barbearias ocupam historicamente um lugar peculiar na cultura masculina: são, ao mesmo tempo, espaços de serviço, convivência e conversa. Em muitos contextos, inclusive no Brasil, o barbeiro acompanha o cliente ao longo de anos, presencia momentos importantes de sua trajetória e se torna uma espécie de confidente informal.

Estudos qualitativos com homens negros nos Estados Unidos mostram como barbearias funcionam como “espaços seguros” (safe spaces) para conversas sobre trabalho, finanças, racismo e saúde, incluindo saúde mental. Pesquisas em barbearias na Inglaterra e no Canadá indicam que muitos clientes abordam espontaneamente temas como ansiedade, depressão e relacionamentos, e que a confiança construída na cadeira facilita esse tipo de diálogo.

Esse papel social da barbearia ganha relevância em um cenário em que homens começam a valorizar mais o bem-estar, sem, contudo, abandonar por completo o peso de normas tradicionais de masculinidade. Relatório recente do Global Wellness Institute destaca que, embora ainda haja resistência, cresce o número de homens que declaram priorizar saúde mental, autocuidado e práticas de bem-estar, e que buscam esses recursos em ambientes nos quais se sentem culturalmente à vontade – entre eles, academias, estúdios esportivos e barbearias.

A partir dessa perspectiva, a barbearia deixa de ser apenas um prestador de serviço estético e se configura como ambiente estratégico para aproximar homens de mensagens, orientações e práticas de cuidado com a saúde – incluindo a saúde capilar, mas não se restringindo a ela.

3. Tricologia e disfunções capilares na rotina da barbearia

3.1 Tricologia como ciência do cabelo e do couro cabeludo

A tricologia é definida como a ciência que estuda a estrutura, a função e as doenças do cabelo e do couro cabeludo, situando-se na interface entre a dermatologia, a biologia capilar e as práticas de cuidado estético. Em sua vertente clínica, envolve a avaliação de padrões de queda de cabelo, inflamações, descamações, alterações de textura e brilho, bem como o exame de fatores sistêmicos – como hormônios, nutrição e estresse – associados a essas disfunções.

Revisões recentes destacam que condições do couro cabeludo, como dermatite seborreica, psoríase, foliculites e alopecias cicatriciais, podem impactar diretamente a retenção de fios e a qualidade de vida, exigindo diagnóstico precoce para prevenir danos permanentes.

3.2  Disfunções capilares mais comuns em homens

Na prática de barbearia, três grupos de alterações aparecem de forma recorrente: (i) a alopecia androgenética, “calvície masculina padrão”, influenciada por fatores genéticos e hormonais e marcada pela miniaturização progressiva dos fios na região frontal e no vértex; (ii) a dermatite seborreica, inflamação crônica que se manifesta com descamação, eritema e prurido, muitas vezes confundida com “caspa comum”; e (iii) os eflúvios telógenos e a queda difusa, frequentemente associados a estresse, doenças sistêmicas, deficiências nutricionais ou uso de medicamentos.

Embora o diagnóstico definitivo seja ato médico, barbeiros e terapeutas capilares, quando devidamente formados, encontram-se em posição privilegiada para reconhecer sinais precoces, registrar padrões e orientar o cliente quanto à necessidade de avaliação especializada. Estudos em tricologia indicam que intervenções precoces em quadros de alopecia e dermatite seborreica tendem a produzir melhores desfechos em termos de retenção de cabelos e controle de sintomas.

3.3 Impacto psicossocial da saúde capilar

O cabelo, especialmente para homens jovens e de meia-idade, funciona como importante marcador de identidade, virilidade e pertencimento a determinados estilos. Pesquisas indicam que a perda capilar significativa está associada a insatisfação com a imagem corporal, redução de autoestima e, em alguns casos, sintomas de ansiedade e depressão.

O processo de corte, barba e cuidados capilares, por sua vez, costuma produzir efeitos imediatos de bem-estar – sensação de renovação, limpeza, organização da imagem e maior confiança. Relatos de homens em diferentes estudos e reportagens enfatizam que um bom corte de cabelo ou uma barba bem desenhada têm impacto real no humor, na forma de se apresentar socialmente e, inclusive, no desempenho em entrevistas de trabalho ou interações profissionais.

Esse conjunto de elementos reforça a ideia de que a barbearia é um ponto de interseção entre estética, saúde capilar e saúde mental, e de que o modo como o atendimento é conduzido pode atenuar ou agravar inseguranças relacionadas ao cabelo e à autoimagem.

4. Atendimento humanizado: do SUS à cadeira da barbearia

4.1 Humanização e cuidado centrado na pessoa

No campo da saúde, o termo “humanização” não se restringe à ideia genérica de gentileza, mas remete a um conjunto de princípios e práticas que valorizam a dignidade, a subjetividade e a participação ativa das pessoas no processo de cuidado. A Política Nacional de Humanização (PNH), no âmbito do SUS, define a humanização como estratégia para qualificar a atenção e a gestão em saúde, articulando dispositivos como acolhimento, vínculo, responsabilização, co-gestão e valorização dos trabalhadores.

Em paralelo, o debate internacional sobre “cuidado centrado na pessoa” (person-centered care) enfatiza a construção de parcerias entre profissionais e usuários, o respeito às preferências e valores individuais e a consideração sistemática de dimensões emocionais, sociais e culturais para além do diagnóstico biomédico.

Ambas as abordagens convergem em pontos-chave que se tornaram referências para a organização do cuidado: escuta qualificada, comunicação clara, compartilhamento de decisões, reconhecimento da singularidade de cada trajetória e corresponsabilização dos sujeitos no processo terapêutico. Esses elementos constituem um arcabouço conceitual que pode ser adaptado a diferentes cenários de cuidado, incluindo espaços não tradicionais, como a barbearia.

4.2 Traduzindo a humanização para o contexto da barbearia

Ao transpor esse referencial para a barbearia, atendimento humanizado não significa “medicalizar” o trabalho do barbeiro, mas qualificar a experiência do cliente em pelo menos quatro dimensões interligadas: acolhimento e escuta ativa; respeito à identidade e às escolhas; oferta de informação qualificada e decisão compartilhada; e construção de um ambiente seguro e não julgador.

Em primeiro lugar, o acolhimento e a escuta ativa indicam que o atendimento começa antes da tesoura ou da navalha. Perguntar o que o cliente deseja, ouvir suas queixas sobre o cabelo, a barba, o couro cabeludo e, muitas vezes, aspectos de sua rotina e preocupações cotidianas, é parte central do processo. Trata-se de criar um espaço em que ele possa falar sem ser interrompido, ridicularizado ou desqualificado, o que contrasta com experiências frequentementes relatadas em serviços formais de saúde.

Em segundo lugar, o respeito à identidade e às escolhas implica considerar a profissão, o estilo de vida, a cultura e a fase da vida do cliente ao sugerir cortes, tratamentos e rotinas de cuidado. Um jovem em início de carreira, um homem maduro em posição de liderança e um cliente inserido em contextos de trabalho informal podem ter necessidades, oportunidades e referências estéticas bastante distintas, que precisam ser levadas em conta na recomendação de estilos e rotinas de autocuidado.

A terceira dimensão envolve a oferta de informação qualificada e a construção de parceria nas decisões. O barbeiro-terapeuta capilar pode explicar, em linguagem acessível, o que observa no couro cabeludo, quais fatores podem estar associados às queixas, que tipo de cuidado domiciliar tende a ajudar e em que situações é recomendável procurar um dermatologista ou outro profissional de saúde. O cliente participa da decisão sobre aderir a um tratamento capilar, modificar hábitos de higiene ou buscar avaliação médica, em um modelo de decisão compartilhada.

Por fim, garantir um ambiente seguro e não julgador é decisivo. Comentários irônicos sobre calvície, envelhecimento ou sobre a “vaidade” de cuidar do cabelo e da pele podem reforçar estigmas de gênero e afastar homens do autocuidado. Um atendimento humanizado evita esse tipo de abordagem, reconhecendo que cuidar da própria aparência é legítimo e pode ser fonte de saúde, autoestima e bem-estar.

Esses elementos podem parecer simples, mas dialogam diretamente com dificuldades amplamente descritas por homens em serviços formais de saúde: sensação de não serem ouvidos, consultas muito rápidas, linguagem técnica inacessível ou experiências marcadas por julgamento moral. Ao oferecer uma experiência oposta, mais próxima e respeitosa, a barbearia pode funcionar como porta de entrada para uma relação mais positiva com o cuidado em geral.

5. Barbearias como cenário de promoção de saúde: evidências e possibilidades

5.1 Evidências internacionais: o caso da hipertensão em barbearias

Um dos exemplos mais conhecidos de intervenção em saúde realizada em barbearias é o ensaio clínico randomizado conduzido em Los Angeles com homens negros com hipertensão arterial. Nesse estudo, barbearias foram agrupadas para receber um programa em que os barbeiros eram treinados para medir a pressão arterial dos clientes, educá-los sobre os riscos da hipertensão e incentivar o acompanhamento com farmacêuticos presentes no próprio salão, habilitados a ajustar a medicação conforme protocolos clínicos predefinidos.

Os resultados evidenciaram reduções significativas da pressão arterial entre os participantes expostos à intervenção baseada na barbearia, superiores às observadas no grupo controle que recebeu apenas orientações para procurar atendimento médico convencional. O estudo tornou-se referência ao demonstrar que, para determinados segmentos da população masculina, a combinação de um ambiente de confiança (a barbearia), um agente de saúde informal (o barbeiro) e um profissional da saúde qualificado (o farmacêutico) pode produzir desfechos clínicos superiores aos obtidos por estratégias tradicionais centradas apenas em serviços formais.

Embora esse modelo não seja diretamente replicável em todos os contextos, ele ilustra o potencial das barbearias como espaços de promoção de saúde, especialmente para grupos que enfrentam barreiras históricas e estruturais de acesso, como homens negros em áreas urbanas periféricas.

5.2 Saúde mental e apoio psicossocial

Pesquisas qualitativas com barbeiros indicam que muitos se percebem, na prática cotidiana, como “conselheiros informais”. Há relatos de clientes que, na cadeira, compartilham dificuldades emocionais, conflitos familiares, luto ou sintomas sugestivos de ansiedade e depressão. Esses relatos apontam para uma função de escuta e apoio psicossocial que emerge de forma espontânea na dinâmica da barbearia (OGBORN et al., 2022). 

Países como o Reino Unido e o Canadá têm testado treinamentos breves de “primeiros socorros em saúde mental” dirigidos a barbeiros, com o objetivo de ensiná-los a reconhecer sinais de sofrimento, escutar sem julgamento e orientar o encaminhamento para serviços especializados quando necessário. A proposta não é transformar o barbeiro em terapeuta, mas capacitá-lo a atuar como ponte, identificando situações que ultrapassam o que pode ser manejado em uma conversa informal e indicando caminhos de cuidado adequados.

No plano individual, a própria experiência de grooming – cortar o cabelo, alinhar a barba, cuidar do couro cabeludo – está associada, em estudos e relatos de usuários, a aumento de autoconfiança, sensação de renovação, percepção de maior controle sobre a própria imagem e redução de estresse em curto prazo. Um atendimento humanizado potencializa esses efeitos ao validar a importância que o cliente atribui à sua aparência e ao oferecer um espaço seguro para que ele nomeie preocupações, receios e expectativas.

5.3  Educação em saúde capilar e hábitos de autocuidado

Do ponto de vista da tricologia, a barbearia constitui um cenário privilegiado para ações de educação em saúde capilar e de fortalecimento de hábitos de autocuidado. O barbeiro-terapeuta capilar pode orientar clientes sobre frequência adequada de lavagem, escolha de shampoos e produtos compatíveis com o tipo de pele e cabelo, bem como sobre técnicas de aplicação e rotina de manutenção.

Além disso, pode explicitar a relação entre fatores como estresse, tabagismo, consumo excessivo de álcool, alimentação pobre em micronutrientes e determinados padrões de queda de cabelo ou inflamação do couro cabeludo, traduzindo evidências científicas em recomendações práticas. Parte desse trabalho envolve desmistificar crenças populares – por exemplo, a ideia de que lavar o cabelo diariamente “faz cair mais” ou de que toda queda masculina é homogênea e inevitavelmente progressiva.

Também é fundamental reforçar a importância de procurar um dermatologista ou outro profissional habilitado em casos de coceira intensa, dor, lesões, queda abrupta ou falhas assimétricas, situações que podem sinalizar quadros inflamatórios ou sistêmicos mais complexos.

Ao realizar essas orientações de forma acessível, respeitosa e coerente com o contexto de vida do cliente, o barbeiro contribui para ampliar a literacia em saúde capilar e, por extensão, a capacidade do homem de tomar decisões informadas sobre o próprio corpo e sua trajetória de cuidado.

6. Limites éticos e responsabilidade profissional

É fundamental, contudo, estabelecer com clareza os limites da atuação do barbeiro e do terapeuta capilar. A tricologia, enquanto disciplina, enfatiza que o diagnóstico de doenças e a prescrição de medicamentos são atos privativos de médicos ou de outros profissionais legalmente habilitados, mesmo quando o acompanhamento do cabelo e do couro cabeludo se dá em parceria com profissionais da beleza.

Do ponto de vista ético, um atendimento humanizado em barbearia implica transparência quanto às competências envolvidas, deixando claro para o cliente o que o barbeiro pode ou não fazer. Avaliar aspectos estéticos, orientar cuidados cotidianos, sugerir rotinas de higiene e encaminhar para avaliação médica, sim; diagnosticar doenças sistêmicas, prescrever fármacos ou prometer cura, não.

Respeitar a autonomia do cliente também é central. Isso significa evitar a imposição de tratamentos, pacotes ou produtos por pressão comercial, optando por discutir prós e contras de forma honesta e permitindo que a decisão final esteja alinhada às prioridades, valores e possibilidades financeiras da pessoa atendida.

Outro princípio ético relevante diz respeito à confidencialidade. Zela-se pela privacidade das informações pessoais e de saúde compartilhadas na cadeira, evitando exposições desnecessárias na frente de outros clientes ou em redes sociais, salvo consentimento explícito e informado.

Por fim, uma postura responsável envolve articular-se, sempre que possível, com a rede de saúde. Estabelecer canais de comunicação com dermatologistas, clínicos e outros profissionais, por meio de parcerias formais ou informais, pode facilitar encaminhamentos e fortalecer uma lógica colaborativa, em vez de competitiva, entre barbearias e serviços de saúde.

Essa postura é coerente com a própria Política Nacional de Humanização, que enfatiza a construção de redes de cuidado, a valorização de diferentes saberes e o protagonismo dos sujeitos na produção de saúde.

7. Implicações para formação profissional, políticas públicas e pesquisa

7.1 Formação de barbeiros e terapeutas capilares

Se a barbearia é reconhecida como potencial parceira na promoção da saúde do homem, a formação de barbeiros e terapeutas capilares precisa ir além do domínio técnico do corte e do acabamento. Conteúdos como noções básicas de tricologia e fisiologia do couro cabeludo; reconhecimento de sinais de alerta que exigem avaliação médica; princípios de comunicação empática e escuta ativa; fundamentos de saúde do homem, incluindo saúde mental e comportamentos de risco; e ética profissional e limites de atuação poderiam compor módulos específicos em cursos de formação inicial e de atualização.

Esses conteúdos não transformam o barbeiro em profissional de saúde, mas o capacitam a exercer seu papel com maior responsabilidade e consciência de contexto, ampliando o potencial de impacto positivo sobre seus clientes e favorecendo práticas de cuidado mais alinhadas a evidências científicas e diretrizes éticas.

7.2 Diálogo com políticas de saúde do homem

Para gestores e formuladores de políticas públicas, reconhecer a barbearia como espaço de promoção de saúde abre possibilidades para parcerias inovadoras em nível territorial. Campanhas de rastreamento de câncer de próstata ou de pele, por exemplo, podem ser potencializadas por materiais educativos, ações breves e abordagens de educação em saúde desenvolvidas em barbearias, desde que construídas em conjunto com os profissionais do local e respeitando sua dinâmica de trabalho.

A PNAISH já indica a necessidade de alcançar os homens em seus espaços de sociabilidade. Incluir barbearias em estratégias territoriais de atenção à saúde do homem – por meio de ações educativas, rodas de conversa com equipes de saúde da família, campanhas temáticas ou programas específicos em bairros com alta concentração de barbearias – seria um desdobramento coerente com essa diretriz e com experiências bem-sucedidas em outros países.

7.3 Agenda de pesquisa

Do ponto de vista acadêmico, há um campo fértil para investigações empíricas envolvendo barbearias, tricologia e saúde do homem. Algumas questões de pesquisa ilustrativas incluem:

  • Em que medida a adoção de práticas de atendimento humanizado em barbearias se associa a maior satisfação dos clientes e a mudanças em seus comportamentos de autocuidado capilar e geral?
  • Programas de educação em saúde desenvolvidos em barbearias conseguem aumentar a procura por serviços de saúde por parte de homens com queixas específicas, como lesões no couro cabeludo ou queda acentuada de cabelos?
  • Quais são os efeitos psicossociais de médio e longo prazo de intervenções baseadas em barbearias, à semelhança dos estudos já realizados com hipertensão arterial e saúde mental em outros países?

Responder a essas questões exige o emprego de metodologias variadas – estudos qualitativos com barbeiros e clientes, inquéritos populacionais, estudos longitudinais e ensaios comunitários – e, idealmente, a construção de parcerias entre instituições de pesquisa, serviços de saúde e coletivos de barbeiros. Uma agenda de pesquisa estruturada nesse campo pode produzir evidências robustas que orientem políticas, formação profissional e práticas em barbearias.

8. Considerações finais

A expansão das barbearias como espaços de convivência, estilo e cuidado com a aparência masculina não é um fenômeno meramente estético ou de consumo. Ela expressa transformações mais amplas nas formas de viver a masculinidade e o autocuidado. Em um contexto em que homens seguem utilizando menos os serviços formais de saúde e chegando, com frequência, mais tarde a diagnósticos e tratamentos, a barbearia aparece como território privilegiado de contato, confiança e construção de vínculos.

Quando o atendimento na barbearia é orientado por princípios de humanização – escuta ativa, respeito à singularidade, informação qualificada, ambiente não julgador – e articulado ao conhecimento técnico da tricologia, ele pode se tornar uma ferramenta potente de promoção de saúde e bem-estar. Isso vale tanto para a saúde capilar, diretamente vinculada ao campo de atuação do barbeiro-terapeuta capilar, quanto para dimensões mais amplas, como autoestima, saúde mental e aproximação gradual dos serviços de saúde.

Ao mesmo tempo, é indispensável preservar os limites éticos da profissão, evitando a confusão entre práticas de cuidado estético e atos médicos. O barbeiro não substitui o médico, o psicólogo ou o nutricionista; ele atua como parceiro, como ponto de escuta e orientação que pode facilitar a entrada do homem em trajetórias de cuidado mais amplas e continuadas.

Para que esse potencial se concretize, são necessários investimentos em formação profissional, em parcerias com a rede de saúde e em pesquisa aplicada que documente, com rigor, os efeitos concretos dessas iniciativas. O diálogo entre barbearias, tricologia e saúde do homem não é apenas uma tendência de mercado, mas uma oportunidade de construir modelos de cuidado mais próximos da vida real dos homens, na fronteira entre estética, saúde e subjetividade.

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