ENCONTRO COM O CURUPIRA: UMA ANÁLISE PÓS-COLONIALISTA DA NARRATIVA DE JOSÉ ARTHUR BOGÉA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202510311048


João Jorge Pereira dos Reis
Renilda Rodrigues-Bastos


RESUMO

Este artigo propõe uma análise da narrativa “O Curupira”, de José Arthur Bogéa, sob a lente da teoria pós-colonialista. O foco recai sobre a figura do Curupira e do Caçador, interpretados como representações do subalterno e do sujeito hegemônico, respectivamente. Utilizando os arcabouços teóricos de Bhabha (1998), Spivak (2010), Cascudo (2012) e Loureiro (2015), o estudo investiga como o mito amazônico opera como um espaço de resistência cultural, hibridismo e desestabilização da lógica colonial. A desorientação do Caçador na floresta, provocada pelas “artes do Curupira”, é examinada como uma metáfora para a falência da epistemologia ocidental em face do conhecimento local e da cosmovisão amazônica. A análise busca demonstrar que a narrativa de Bogéa, ao reencenar o encontro entre o homem da cidade e o encantado da mata, oferece um campo fértil para a discussão sobre a voz do subalterno e a emergência de identidades culturais híbridas no “entre-lugar” da cultura.

Palavras-chave: Pós-colonialismo; Curupira; José Arthur Bogéa; Subalternidade.

ABSTRACT

This article proposes an analysis of the narrative “O Curupira”, by José Arthur Bogéa, through the lens of postcolonial theory. The focus is on the figures of the Curupira and the Hunter, interpreted as representations of the subaltern and the hegemonic subject, respectively. Utilizing the theoretical frameworks of Bhabha (1998), Spivak (2010), Cascudo (2012) and Loureiro (2015), the study investigates how the amazonian myth operates as a space for cultural resistance, hybridity and the destabilization of colonial logic. The Hunter’s disorientation in the forest, caused by the “Curupira’s Arts”, is examined as a metaphor for the failure of Western epistemology in the face of local knowledge and the amazonian worldview. The analysis seeks to demonstrate that Bogéa’s narrative, by re-enacting the encounter between the city man and the forest’s enchanted being, offers fertile ground for discussing the voice of the subaltern and the emergence of hybrid cultural identities in the cultural “in-between space”.

Keywords: Post-colonialism; Curupira; José Arthur Bogéa; Subalternity.

1. INTRODUÇÃO

A literatura brasileira, em especial aquela que se debruça sobre o imaginário amazônico, constitui um corpus privilegiado para a investigação das tensões e negociações culturais que emergem do legado colonial. A narrativa “O Curupira”, de José Arthur Bogéa, ao colocar um Caçador, representante de uma lógica extrativista e racional, em confronto direto com o mítico protetor da floresta, o Curupira, oferece um microcosmo potente para uma análise pós-colonialista. O encontro, que se manifesta como uma jornada de desorientação e perda de controle para o Caçador, é o ponto fulcral em que a epistemologia ocidental, baseada no senso de direção e na certeira pontaria, colapsa diante da sabedoria da mata e de seus encantados.

Este trabalho tem como objetivo central analisar a narrativa de Bogéa à luz de conceitos-chave do pós-colonialismo, como o hibridismo e a ambivalência de Homi K. Bhabha, a violência epistêmica e a questão da voz subalterna de Gayatri Chakravorty Spivak e a importância da cosmovisão amazônica e do mito como resistência, conforme postulado por João de Jesus Paes Loureiro e Luís da Câmara Cascudo. A escolha desta abordagem teórica justifica-se pela capacidade de desvelar as estruturas de poder implícitas no conflito entre o Caçador e o Curupira, interpretando o mito não apenas como folclore, mas como um mecanismo ativo de contrapoder e afirmação identitária.

A obra de Bogéa, portanto, será lida como um texto de insurgência, onde o Curupira, com seus pés virados para trás, subverte a lógica da perseguição e do domínio. O Caçador, que “tem feito pouco-caso da recomendação da Maria Mucuim” (BOGÉA: 2002, 18), representa a cegueira do projeto colonial que desvaloriza o conhecimento local em favor de uma racionalidade importada. A análise se desenvolverá em três eixos principais: (1) O Curupira como Estereótipo Ambivalente e Híbrido (Bhabha); (2) O Silenciamento da Razão e a Voz do Subalterno (Spivak); e (3) O Mito Amazônico como Poética da Resistência (Loureiro e Cascudo).

A narrativa ao descrever o Caçador como alguém que “acredita é no senso de direção” (Bogéa: 2002, 18) e que se guia pela “posição de Cêuci no horizonte” (BOGÉA: 2002, 10), remete a uma confiança inabalável na racionalidade e na ciência ocidental, em contraste com o saber local e mitológico. A constelação Cêuci, que é o “nome de uma índia que um dia sobe ao céu pelas sete voltas do arco-íris e não quer mais voltar à terra” (BOGÉA: 2002, 10), já anuncia a presença de um sincretismo cultural, mas que o Caçador tenta reduzir a um mero instrumento de navegação – “essa constelação que outros nomeiam Sete-Estrelo” (BOGÉA: 2002, 10) –. Essa tentativa de domesticação do mito pela razão é o primeiro sinal da falência epistemológica que se concretiza com a intervenção do Curupira.

O Curupira, ao prender o Caçador em um “círculo invisível” (BOGÉA: 2002, 12) onde ele “Roda que roda. Roda e ronda. Rondando em torno de uma árvore” (BOGÉA: 2002, 12), expõe a fragilidade da lógica do colonizador. A mata, que deveria ser um espaço a ser explorado e mapeado, transforma-se em um labirinto de desorientação, onde as categorias de tempo e espaço se dissolvem: “Seria dia? Noite?” (BOGÉA: 2002, 6/9). É nesse espaço de incerteza que a teoria pós-colonial encontra seu ponto de aplicação mais fértil, pois é no colapso da autoridade hegemônica que a voz e a tática do subalterno se manifestam com maior potência.

Figura 1

Capa da 1ª edição

1.1 O Curupira como Estereótipo Ambivalente e Híbrido

A figura do Curupira, na narrativa de Bogéa, emerge como uma entidade que desafia a classificação e a fixidez, características centrais na análise do estereótipo colonial proposta por Bhabha (1998). A descrição do Curupira é marcada pela contradição e pela grotesca justaposição de elementos: “tamanho de um menino de dez anos, mas com barriga de velho e todo o corpo coberto de pêlos cinzentos” (BOGÉA: 2002, 28). Ele é um ser que se manifesta no limiar do compreensível, no “entre-lugar” da cultura, onde as categorias fixas do Caçador se dissolvem.

Bhabha (1998) argumenta que o estereótipo não é uma falha de representação, mas uma forma de representação complexa e ambivalente. O Curupira é, simultaneamente, o “ser tão espantoso” (BOGÉA: 2002, 28) que provoca terror e a figura sobre a qual circulam histórias que misturam “admiração e medo” (BOGÉA: 2002, 15). Essa dualidade é a marca do estereótipo pós-colonial, que revela a ansiedade do colonizador em face do Outro que ele tenta fixar e controlar. A fixidez do estereótipo, paradoxalmente, é o que o torna ambivalente, pois a repetição da imagem do “selvagem” nunca consegue eliminar a ameaça de sua diferença.

A ambivalência do Curupira é crucial para a análise. Ele é o protetor da floresta, mas também o autor de travessuras. Ele é o encantado que se manifesta em um mundo de mistérios, encarnando a “hibridez” que desafia a pureza cultural. A própria descrição de sua família, fornecida pelo Barranqueiro, demonstra a complexidade desse universo mítico:

a mulher Caci, que é a mãe do mato, e os filhos, o Curupira Pitanga, a Acauã, que enlouquece as mulheres com um canto agourento e faz os homens chocarem pedras, a Matinta Perera, uma velha que anda pelas encruzilhadas da noite e pede fumo para pitar. E tem ainda o Uirapuru, um pássaro que ninguém vê, só ouve o canto. (BOGÉA: 2002, 15)

Este é um sistema cultural completo, que o Caçador, em sua racionalidade simplificadora, não consegue apreender.

A aparição do Curupira, com seus “cabelos vermelhos, como se tivesse a cabeça incendiada” (BOGÉA:2002, 28) e o “cheiro repugnante” (BOGÉA: 2002, 30), é a materialização do Outro. O Curupira é a projeção do medo e do fascínio do Caçador pelo “selvagem” que não pode ser totalmente apreendido pela sua lógica. Bhabha elucida a natureza desse mecanismo,

O estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do Outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e sociais. (BHABHA, 1998, 117)

O Curupira, com sua aparência de “menino de dez anos, mas com barriga de velho” (BOGÉA: 2002, 28), é a própria imagem da desestabilização da autoridade. Ele é o conhecimento que se desvia de sua norma, a diferença que se impõe. O Caçador, que confia na sua experiência, é confrontado com um ser que o faz girar “como um pião” (BOGÉA: 2002, 28), perdendo o controle de seu corpo e de sua mente.

Este hibridismo se manifesta de forma mais aguda na desorientação do Caçador, que se vê preso em um “círculo invisível” (BOGÉA: 2002, 12) e perde seu senso de direção. O Curupira transforma a mata em uma fronteira, um espaço onde a lógica do colonizador falha. O Caçador, que acredita é no senso de direção, é forçado a um estado de desorientação. A fronteira, neste sentido, não é apenas o fim de um território, mas o local onde algo novo começa a se fazer presente. A cultura é um espaço de negociação e tradução:

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade. (BHABHA: 1998, 20)

A mata, sob o domínio do Curupira, é esse “entre-lugar” da cultura, onde a identidade do Caçador, baseada na pureza da razão e da técnica, é desafiada. A perda do senso de direção e a incapacidade de distinguir dia e noite são a tradução da falência da epistemologia ocidental no território amazônico. A emergência do Curupira no limite da percepção do Caçador é o início de um novo conhecimento, fora da lógica binária e dominadora.

A cultura local (amazônica) se impõe, utilizando a mímica como tática de resistência. Os pés virados para trás do Curupira – “assim engana quem segue as pegadas” (BOGÉA: 2002, 31) – são a manifestação perfeita da mímica colonial de Bhabha. O Curupira imita a forma humana, mas a distorce, produzindo um efeito de quase/não exatamente que desestabiliza a autoridade do Caçador, representante da ordem e do conhecimento ocidental. A mímica é, portanto, um signo de dupla ameaça:

[…] então a mímica colonial é o desejo de um Outro reformado, reconhecível, como sujeito de uma diferença que é quase a mesma, mas não exatamente. […] A mímica é, assim, o signo de uma articulação dupla, uma estratégia complexa de reforma, regulação e disciplina que se “apropria” do Outro ao visualizar o poder. […] O efeito da mímica sobre a autoridade do discurso colonial é profundo e perturbador. (BHABHA: 1998, 130)

No caso do Curupira, a mímica não força o sujeito colonizado a se tornar um simulacro, mas sim o colonizador (o Caçador) a se tornar o desorientado, o simulacro de si mesmo, girando sem rumo. O Curupira usa a mímica para minar a autoridade do Caçador, tornando inútil seu conhecimento de rastreamento. A desorientação é a arma do subalterno, e a fronteira é o local onde essa arma se torna mais eficaz.

1.2 O Silenciamento da Razão e a Voz do Subalterno

A experiência do Caçador na narrativa de Bogéa pode ser lida como uma alegoria da violência epistêmica do imperialismo, um conceito central na obra de Spivak (2010). O Caçador, com sua certeira pontaria e seu senso de direção, representa a racionalidade ocidental que tenta impor sua ordem sobre o mundo natural e cultural da Amazônia. Essa racionalidade, no entanto, é posta em xeque pela “sabedoria tirada da experiência da vida vivida” (BOGÉA: 2002, 21) de Maria Mucuim e pelo Curupira.

O Caçador, ao fazer pouco caso das palavras de Maria Mucuim – “Ao entrar na mata, deixa logo um pedaço de fumo para agradar o Curupira…” (BOGÉA: 2002, 18) –demonstra a desvalorização do conhecimento local pelo sujeito hegemônico. Maria Mucuim, uma figura feminina, marginalizada – “Dizem mais: sexta-feira também vira encantada” (BOGÉA: 2002, 22) – e detentora do saber ancestral – “Cura bicheira no rastro do animal doente. Sabe das plantas que curam e das ervas que alucinam” (BOGÉA: 2002, 21) –, encarna o sujeito subalterno cuja voz é obliterada pela lógica do colonizador.

Spivak (2010) questiona a possibilidade de o subalterno falar, argumentando que a produção intelectual ocidental é, muitas vezes, cúmplice dos interesses econômicos e políticos do Ocidente. O Caçador, ao entrar na mata para caçar (extrativismo), está alinhado a essa lógica. Sua desorientação e a “panemice” que o ameaça são a punição pela sua arrogância epistêmica, pela sua recusa em ouvir a voz do subalterno e em reconhecer o valor da cosmovisão local. A violência epistêmica do imperialismo se manifesta na tentativa de anular o saber de Maria Mucuim e de reduzir o Curupira a uma superstição.

A crítica de Spivak (2010) à cumplicidade do intelectual ocidental na manutenção das estruturas de poder é pertinente à figura do Caçador, que, por sua presunção de saber, se torna cego para a realidade da mata. A autora argumenta que:

Este texto se deslocará, por uma rota necessariamente tortuosa, a partir de uma crítica aos esforços atuais do Ocidente para problematizar o sujeito, em direção à questão de como o sujeito do Terceiro Mundo é representado no discurso ocidental. Ao longo deste percurso, terei a oportunidade de sugerir que uma descentralização ainda mais radical do sujeito é, de fato, implícita tanto em Marx quanto em Derrida. E recorrerei, talvez de maneira surpreendente, ao argumento de que a produção intelectual ocidental é, de muitas maneiras, cúmplice dos interesses econômicos internacionais do Ocidente. (SPIVAK: 2010, 24)

O Caçador, como representante da racionalidade técnica e extrativista, é cúmplice dos “interesses econômicos internacionais do Ocidente”, que buscam a exploração da floresta. Sua falha em reconhecer a Maria Mucuim e o Curupira é a falha do Ocidente em descentralizar seu próprio sujeito e em reconhecer a capacidade de ação do subalterno.

A narrativa, ao dar voz à Maria Mucuim (embora ignorada) e ao Curupira (através de suas “artes”), cria um texto de insurgência que desafia as “[…] sanções narrativas conferidas ao sujeito colonial nos grupos dominantes” (SPIVAK: 2010, 84). O Curupira, o encantado que protege a mata, é o sujeito inferido que resiste à dominação. A falha do Caçador em “achar pessoas perdidas na mata” (arte de Maria Mucuim) e em “acertar o tiro” (arte do Curupira) é a falha do conhecimento ocidental em mapear e controlar o território e o saber amazônico.

A desorientação do Caçador, que não consegue distinguir “se é dia” ou “se é noite”, e que perde a capacidade de se guiar pelas estrelas, é a perda de sua própria epistemologia. Ele é forçado a confrontar “A restrita violência epistêmica do imperialismo” (SPIVAK, 2010, 85) que ele próprio representa. A narrativa de Bogéa, ao inverter a relação de poder e fazer o Caçador girar “como um pião”, sugere que o subalterno, embora não possa falar nos termos do colonizador, pode agir e desestabilizar a ordem imposta, criando um espaço onde sua própria lógica – a lógica do mito e do mistério – se torna a dominante.

A resistência do subalterno, no entanto, é marcada pelo paradoxo. Spivak (2010) argumenta que o sujeito insurgente serve como uma “contrá possibilidade”:

“O sujeito”, inferido pelos textos de insurgência, pode servir apenas como uma contra possibilidade para as sansões narrativas conferidas ao sujeito colonial nos grupos dominantes. Os intelectuais pós-colonialistas aprendem que seu privilégio é sua perda. (SPIVAK: 2010, 84)

O Curupira é essa “contra possibilidade”. Ele é a narrativa alternativa que se impõe à narrativa do Caçador. A Maria Mucuim, por sua vez, é a intelectual pós-colonial que, em sua sabedoria, carrega o privilégio do saber ancestral e a perda de ser ignorada pelo hegemônico. O Caçador, ao final, é o único que perde, pois sua arrogância o leva à “panemice”, à perda da sorte e do poder de caçar, que é, em última instância, a perda de sua capacidade de dominar.

1.3 O Mito Amazônico Como Poética da Resistência

A figura do Curupira e o contexto da narrativa de Bogéa estão profundamente enraizados na cosmovisão amazônica, que, segundo João de Jesus Paes Loureiro, opera em uma cultura dissonante dos cânones urbanos e ocidentais. Loureiro (2015: 52) destaca que o homem amazônico, o caboclo, recorre aos mitos e à estetização para “desvendar os segredos de seu mundo”, em um espaço que é uma “verdadeira planície de mitos”.

O Curupira, ao ser um segredo revelado pelo Barranqueiro e ter suas “Histórias […] na boca de todos” (BOGÉA: 2002, 15), é um elemento central dessa cosmovisão, transmitido pela oralidade, uma forma de conhecimento que se contrapõe à escrita e à lógica do Caçador. Loureiro valoriza essa forma de transmissão:

Este é um aspecto particularmente notável da narrativa, na poética de Paes Loureiro; é uma escritura fluindo como se fosse oralidade, a despeito das exigências da literalidade; nascendo de estórias e lendas, causos e mitos, assombrações e alucinações. A beleza da escritura leva consigo o encanto da oralidade, o que conta, canta e encanta, conferindo outras luzes ao que se lê, como se olhasse e ouvisse. (LOUREIRO: 2015, 27-8)

Essa valorização do conhecimento não-escrito é um ato de decolonialidade, que prioriza as formas locais de saber. O Caçador, que busca o conhecimento técnico e a precisão da pontaria, falha onde a oralidade e o mito triunfam. A própria Maria Mucuim, com sua capacidade de “prosear com o Jurupari e os outros seres que se escondem no meio da mata e no fundo das águas” (BOGÉA: 2002, 22), é a encarnação dessa oralidade e desse saber que o Caçador despreza.

A desorientação do Caçador e sua “panemice” podem ser interpretadas como a punição pela adoção da ideologia da colonização. Loureiro (2015: 54) aponta que o período colonial “[…] cunharam certas matrizes tendentes à desvalorização dessa sociedade […]”, concebida como “[…] incapaz de sobressair no campo mais alto do pensamento”. O Caçador, ao desrespeitar o Curupira e a Maria Mucuim, age sob essa lógica extrativista e desrespeitosa. A “panemice”, portanto, é a resistência da mata, a afirmação de que a lógica da dominação não prevalece nesse território.

O Caçador, ao se guiar pelo senso de direção e pela marcha batida, ignora a complexidade do meio, que Loureiro descreve como um lugar onde o homem amazônico busca desvendar os segredos de seu mundo:

Nesse contexto, isto é, no âmbito de uma cultura dissonante dos cânones urbanos, o homem amazônico, o caboclo, busca desvendar os segredos de seu mundo, recorrendo dominantemente aos mitos e à estetização. Uma região que é verdadeira planície de mitos, na expressão de Vianna Moog, onde o homem da terra viveu e ainda vive habitando isoladamente em algumas áreas, alimentando-se de pratos típicos, celebrando a vida nas festividades e danças originais, banhando-se prazerosamente nas águas do rio e da chuva e imprimindo “este ritmo fracionado e múltiplo, indefinidamente enraizado na chance de uma evasão na imensidade amazônica”. Essas características se transportam para as condições em que se exercem o trabalho do caboclo […] A visão que eles têm do meio, sua cosmovisão, “não se contenta em exprimir, não importa qual realidade objetiva. Ela traduz também um certo número de sonhos que, enviando-os sem cessar a dois pólos de seus universos contraditórios, lhes ditam a linha de conduta”. (LOUREIRO: 2015, 51-2)

A visão do Caçador, que busca apenas a realidade objetiva da caça, é confrontada com a cosmovisão que traduz um certo número de sonhos e universos contraditórios. A falha do Caçador é a falha em reconhecer essa complexidade e em adotar a linha de conduta ditada pelo mito, que é a de respeito e negociação (deixar o fumo).

A resistência, no entanto, é ativa e tática. Luís da Câmara Cascudo, no livro “Geografia dos Mitos Brasileiros”, oferece uma contribuição interpretativa crucial para a compreensão do Curupira. A característica mais marcante do encantado – os pés virados para trás – é, na verdade, uma tática de resistência indígena contra o colonizador, o “cristão”. Cascudo relata o uso de um calçado que inverte a pegada para despistar o perseguidor:

Vimos entre eles um certo calçado, muito próximo de alpercatas, feito de palha entrançada, de forma que a parte da frente servia de descanso ao calcâneo; o rastro era, pois, impresso no solo em sentido inverso da marcha. Inquerido do motivo, responderam-no: “É para cristão não saber da viagem”. Edificamos-nos com a resposta (CASCUDO: 2012, 99)

Essa citação de Cascudo transforma o Curupira de Bogéa de uma mera figura folclórica em um símbolo de contrapoder. O mito, nesse sentido, é a estratégia do subalterno para subverter a lógica do opressor. O Curupira, ao inverter a direção, inverte a lógica do Caçador, que confia em seu senso de direção. O “cristão” (o colonizador, o homem da cidade, o Caçador) é enganado por sua própria presunção de que o mundo opera de forma linear e previsível.

O Curupira de Bogéa é a materialização dessa tática de resistência. Ele não apenas protege a mata, mas desorganiza a mente do invasor. O risco medonho do Curupira, com seus dentes verdes, é o riso do subalterno que, ao ser estereotipado, usa essa mesma representação distorcida para minar a autoridade do colonizador.

1.4 A Inversão do Sujeito e a Emergência do Novo Conhecimento

A análise da obra “O Curupira” sob a perspectiva pós-colonialista revela um movimento de inversão do sujeito hegemônico e a emergência de um novo conhecimento, enraizado na cosmovisão amazônica. O Caçador, que se inicia na narrativa como o sujeito ativo, dotado de senso de direção e certeira pontaria, transforma-se no objeto passivo, girando como um pião em um círculo invisível. Sua identidade, antes definida pela capacidade de dominar a natureza, é desfeita pelas artes do Curupira.

Essa inversão é a concretização da ameaça que o hibridismo e a mímica representam para a autoridade colonial, conforme Bhabha. O Curupira, ao se manifestar como o “quase-mas-não-exatamente” humano, impõe uma realidade que o Caçador não pode categorizar nem controlar. A falha do Caçador em se defender, lembrando-se das recomendações de Maria Mucuim – “Para se defender […], faça um arco com folhas da palmeira do açaí e coloque no caminho” (BOGÉA: 2002, 31) –, sublinha a incapacidade da razão ocidental em lidar com o mistério e o mito. O conhecimento de defesa, que poderia ter salvado o Caçador, reside no saber local, no subalterno que ele desprezou.

A narrativa de Bogéa, ao concluir com a incerteza do Caçador – “Fica panema! Será?” –, não oferece um final fechado, mas uma interrogação sobre a permanência da ordem colonial. A “panemice” é a possibilidade de que a lógica extrativista e dominadora foi, de fato, neutralizada. É a vitória da resistência, que se manifesta não pela força bruta, mas pela desorientação epistemológica. A mata, através de seus encantados e de suas vozes subalternas (Maria Mucuim), afirma sua soberania e impõe sua própria “[…] linha de conduta” (LOUREIRO: 2015, 52).

O artigo demonstra que a literatura, ao revisitar e reencenar o mito, torna-se um campo de batalha onde as narrativas coloniais são desmanteladas. O Curupira de Bogéa é mais do que um guardião da floresta; ele é um agente de descolonização, cujos pés virados para trás simbolizam a inversão da marcha da história e a emergência de um saber que se recusa a ser mapeado e dominado.

2. CONCLUSÃO

A obra “O Curupira”, de José Arthur Bogéa, sob a perspectiva pós-colonialista, revela-se um texto complexo que reencena o conflito entre o conhecimento hegemônico e o saber local amazônico. A figura do Curupira, analisada à luz de Homi Bhabha, é o estereótipo ambivalente e híbrido que reside no “entre-lugar” da cultura, desestabilizando a lógica binária do Caçador. Seus pés virados para trás são a mímica que subverte a autoridade colonial, transformando a mata em uma fronteira onde a epistemologia ocidental falha.

A desorientação do Caçador é a metáfora da falência da razão extrativista e dominadora, que, como postulado por Gayatri Spivak, representa a violência epistêmica do imperialismo. O desprezo do Caçador pelo saber de Maria Mucuim, a subalterna, é a causa de sua “panemice”, a punição pela recusa em ouvir a voz da resistência.

Finalmente, a análise demonstrou, com o apoio de Paes Loureiro e Câmara Cascudo, que o mito do Curupira é um mecanismo ativo de resistência cultural. Não é uma lenda passiva, mas uma poética do imaginário que, através da oralidade e da tática de inverter a pegada, afirma a soberania do saber amazônico sobre a lógica do “cristão”. A narrativa de Bogéa, ao concluir com a incerteza do Caçador – “Será?” –, deixa em aberto a possibilidade de que a ordem colonial foi, de fato, subvertida, e que o subalterno, em suas “artes”, pode e consegue falar.

3. REFERÊNCIAS

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

BOGÉA, José Arthur. O curupira. São Paulo: FTD, 2002. (Coleção histórias do Rio Moju: reconto de narrativas amazônicas)

CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2012.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. 4ª ed. Belém: Cultural Brasil, 2015.

MIRANDA, Vicente Chermont de. Glossário paraense. Belém: Editora da UFPA, 1968.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.


1Mestre Profissional em Ensino de Língua Portuguesa e Suas Respectivas Literaturas pelo PPGELL-UEPA. Professor de Língua Portuguesa e Suas Literaturas na rede estadual de ensino do Pará. Email: joao.reis@escola.seduc.pa.gov.br. ORCID: 0009-0006-0390-7152.
2Professora Adjunto VI da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professora do Mestrado Profissional em Letras e Graduação em Letras. Doutora em Ciências Sociais-Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Estágio Pós-Doutoral em Educação – UEPA. Mestre em Teoria Literária – UFPA.