PONDERAÇÃO DO INÍCIO AO FIM DO PROCESSO CIVIL. BREVE CRÍTICA À SUPREMACIA DA TÉCNICA HERMENÊUTICA.

BALANCING FROM START TO THE END OF PROCESS. BRIEF CRITICISM TO THE HERMENEUTIC TECHNIQUE SUPREMACY.

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202508312301


Jonas Matias Fagundes1


Resumo:

O presente trabalho aborda a técnica da ponderação de princípios no contexto da constitucionalização do Direito Civil, destacando sua centralidade e os desafios que acarreta na aplicação das normas constitucionais. Embora essa técnica busque otimizar a aplicação de princípios constitucionais, ela também pode conduzir a interpretações subjetivas e arbitrárias, o que gera preocupações quanto à sua racionalidade e objetividade, ameaçando a clareza e previsibilidade jurídicas. Empregou-se a revisão bibliográfica, pesquisa empírica de jurisprudência e método dedutivo.

Palavras-Chave: ponderação; constitucionalização; direito privado; direitos fundamentais; função social.

Abstract:

This paper addresses the technique of balancing principles within the context of the constitutionalization of Private Law, highlighting its centrality and the challenges it presents in the application of constitutional norms. Although this technique aims to optimize the application of constitutional principles, it can also lead to subjective and arbitrary interpretations, which raises concerns about its rationality and objectivity, thereby threatening legal clarity and predictability. A literature review, empirical case law research, and the deductive method were employed.

Key-Words: balancing; constitutionalisation; private law; fundamental rights; social function.

Introdução

A ponderação de princípios, embora seja uma ferramenta jurídica essencial no processo de constitucionalização do Direito Civil, apresenta desafios significativos e não isentos de críticas. Esta técnica, que visa equilibrar princípios potencialmente conflitantes dentro do sistema jurídico, tem sido cada vez mais central na aplicação das normas constitucionais em contextos variados, moldando a interpretação e a aplicação do direito infraconstitucional. No entanto, a dependência crescente dessa abordagem tem suscitado preocupações quanto à sua racionalidade e objetividade, colocando em xeque a clareza e a previsibilidade das decisões judiciais.

Ao longo do debate sobre a constitucionalização do Direito Civil, emergem vozes críticas que questionam a eficácia da ponderação como método de resolução de disputas legais. Críticos argumentam que, apesar de sua intenção de otimizar a aplicação de princípios constitucionais, a ponderação pode, paradoxalmente, conduzir a interpretações excessivamente subjetivas e, por vezes, arbitrárias. Essa abordagem, embora busque maximizar a eficácia dos princípios envolvidos, frequentemente se depara com o desafio de traduzir valores abstratos em diretrizes concretas de atuação legal, o que pode resultar em uma aplicação inconsistente das leis.

O presente trabalho se propõe a explorar essas tensões e desafios associados à ponderação dentro do processo de constitucionalização do Direito Civil. Ao examinar a interação entre a normatividade dos princípios constitucionais e as normas infraconstitucionais, destacaremos como essa prática impacta as relações privadas e sociais, inserindo um elemento de incerteza no coração do sistema jurídico. Ao mesmo tempo, busca-se refletir sobre as implicações práticas dessas críticas para a construção de uma ordem jurídica que, idealmente, deveria ser tanto justa quanto previsível.

2. Constitucionalização do direito civil, princípios e ponderação

Dos possíveis conceitos de constitucionalização do direito, adota-se para fins do presente trabalho aquele explorado por Luís Roberto Barroso em seu artigo “Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil)” 2:

“A idéia de constitucionalização do Direito aqui explorada está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas suas relações com os particulares. Porém, mais original ainda: repercute, também, nas relações entre particulares.”

Trata-se um fenômeno que reflete a expansão e a eficácia das normas constitucionais em todos os ramos do direito. Este processo implica uma irradiação do conteúdo material e axiológico da Constituição pelo sistema jurídico, condicionando a validade e a interpretação das normas infraconstitucionais.

A constitucionalização do direito contribui para a construção de uma ordem jurídica em que os princípios e valores constitucionais, especialmente os direitos fundamentais, orientam a aplicação e interpretação das leis. Este processo tem o efeito de integrar a Constituição ao direito privado que a legislação e as práticas judiciárias estejam alinhadas aos princípios constitucionais​​. Portanto, a constitucionalização do direito é um processo pelo qual a Constituição se torna a norma fundamental e orientadora de todo o sistema jurídico, influenciando não apenas a legislação e a atuação do Poder Público, mas também as relações privadas e sociais.

A força normativa dos princípios leva à sua conceituação como espécie de norma, ao lado das regras. Este é o conceito adotado por Robert Alexy, autor alemão muito estudado no Brasil e citado em diversas decisões do Supremo Tribunal Federal3.

Robert Alexy estabelece uma distinção qualitativa – e não meramente de grau – entre regras e princípios jurídicos. Enquanto as regras operam sob uma lógica binária, sendo aplicadas segundo o modelo do “tudo ou nada”, os princípios comportam graus de realização. Para o autor, princípios são mandamentos de otimização, isto é, normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, respeitando as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto4. Essa característica torna os princípios aptos a admitir soluções variadas, pois a medida de sua satisfação depende do contexto normativo e empírico, em contraste com as regras, que determinam de modo fechado o conteúdo da conduta exigida ou proibida.

A caracterização dos princípios como mandamentos de otimização conduz, segundo Alexy, à necessidade de ponderação quando há colisão entre normas de mesma natureza. Em tais situações, não se trata de declarar a invalidade de uma das normas envolvidas, mas de estabelecer qual delas deverá prevalecer na hipótese concreta. A escolha não é arbitrária: deve seguir um juízo racional fundado na lei de colisão de princípios, pela qual um princípio só pode ceder diante de outro se este apresentar peso maior no caso específico. A ponderação, portanto, torna-se o instrumento lógico-jurídico imprescindível para a aplicação simultânea dos princípios constitucionais, sem que haja exclusão definitiva de nenhum deles5.

A conexão entre os princípios e a máxima da proporcionalidade é central na teoria alexyana. O autor sustenta que a proporcionalidade, com suas três máximas parciais – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito –, decorre logicamente da própria natureza dos princípios6. A máxima da proporcionalidade em sentido estrito consiste na exigência de ponderar entre os interesses e direitos em colisão, com vistas a maximizar a realização dos bens jurídicos envolvidos. Essa exigência não é contingente, mas extrai-se necessariamente da estrutura normativa dos princípios, que estão abertos à realização em graus variáveis e sujeitos a limites internos e externos impostos por outras normas de igual hierarquia.

Se Alexy afirma que a ponderação deriva da própria natureza dos direitos fundamentais como princípios e se estamos diante de um sistema em que prevalece a força normativa da Constituição, pode-se dizer que a ponderação tornou-se o instrumento necessário para se resolver os conflitos envolvendo direitos fundamentais.7

3. Primeiro, princípios, depois, direito civil

A evolução da principiologia ao longo das últimas décadas é extenuante. De norma de colmatação, de eficácia subsidiária, a norma de eficácia indireta, interpretativa, axiológica, a norma de aplicação direta e, finalmente, a norma absoluta.

O art. 4º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro traduz a primeira e já antiquada aplicação dos princípios, com um papel secundário em caso de omissão da lei. A segurança jurídica era prestigiada ante a vagueza e abstração àqueles inerentes. Tão pequena era a força dos princípios, que prevalecia o entendimento que a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, deveriam ser aplicados nesta ordem, ou seja, os princípios apenas seriam invocados pelo juiz para decidir um caso concreto se: 1) não houvesse regra específica; 2) não houvesse regra para situações análogas; 3) não houvesse práticas reiteradas entendidas como obrigatórias.

De fato, a concepção tradicional do positivismo jurídico, especialmente em sua vertente normativista mais rígida, centrada na separação entre Direito e moral, sofreu profundas críticas e revisões a partir do século XX. O modelo que priorizava a previsibilidade e a estabilidade normativa – características essenciais ao Estado liberal e ao ideal burguês de segurança jurídica – começou a revelar limitações diante da crescente complexidade das relações sociais e da demanda por justiça material nas decisões jurídicas. Nesse contexto, o Direito já não podia mais ser reduzido a um sistema fechado de normas validamente postas.

Esse modelo tradicional atribuía primazia à legalidade formal, concebendo o Direito como um conjunto de normas hierarquicamente organizadas, cuja aplicação se daria por meio de uma subsunção lógica. Tal estrutura foi suficiente por certo tempo para garantir a segurança necessária ao desenvolvimento das atividades econômicas da burguesia ascendente, que dependia da previsibilidade institucional para a expansão dos mercados e da propriedade. No entanto, a rigidez dessa estrutura mostrou-se insuficiente frente a situações que exigiam ponderação de valores, superando a lógica da simples aplicação mecânica da norma.

A crítica contemporânea ao positivismo estrito levou à emergência de modelos jurídicos que reconhecem o papel dos princípios e dos valores na aplicação do Direito, ainda que sem romper completamente com a legalidade. Trata-se da transição para um paradigma pós-positivista, no qual a normatividade jurídica continua sendo reconhecida, mas é temperada por elementos axiológicos e argumentativos. Autores como Ronald Dworkin, Robert Alexy e mesmo Norberto Bobbio, cada um a seu modo, apontaram para a insuficiência do positivismo normativista clássico e para a necessidade de considerar aspectos morais e interpretativos na prática jurídica.8

Com o entendimento de que os princípios são fundamento do ordenamento jurídico e sobre ele irradiam seus efeitos, eles deixam de ser subsidiários e passam a ter efeito indireto, atuando como filtro axiológico, iluminando todas as regras, as quais passam a ser interpretadas segundo aqueles. Havendo duas interpretações possíveis, deve-se adotar aquela que maximiza a eficácia dos princípios envolvidos.

Porém isso não é suficiente. Ainda que não haja mais de uma interpretação possível, se a regra é clara e cristalina, somente sendo possível uma única aplicação, ela não será adotada se for contrária ao princípio. Passa-se então ao efeito direto de superar as regras aplicáveis.

Por fim, já se percebe, como se verá, o último estágio nessa evolução, que é a aplicação direta dos princípios independentemente da existência de regras. Parece ter havido, enfim, a superação definitiva da subsunção como forma interpretativa do direito. Como aponta Anderson Schreider 9:

“No Direito Civil brasileiro, essa linguagem bem sintetiza o processo de alteração metódica, uma vez que efetivamente parece ter ocorrido uma virada de Copérnico. Primeiro, procura-se a resposta em princípios constitucionais, sendo a ponderação ferramenta de conciliação entre eventuais conflitos desses princípios. Só depois de atendidas essas demandas é que se tende a olhar para o Direito Civil. Antes partia-se do Direito Civil e seus institutos; agora, parte-se dos princípios constitucionais. No lugar da visão patrimonialista, aposta-se no aspecto existencial; para superar a metódica formalista, reivindica-se a metódica substancial; para eliminar uma aproximação individualista, privilegia-se o elemento social. Trata-se de uma grande virada, tal qual a proposta por Copérnico e Kant. Decerto esse é o motivo pelo qual, por exemplo, o grupo de estudos coordenado por Luiz Edson Fachin na UFPR levava o nome de ‘Virada de Copérnico’, o qual mantinha grandes afinidades com a “a escola de direito civil-constitucional do Rio de Janeiro”

No cenário contemporâneo do Direito Civil brasileiro, a metáfora da “Virada de Copérnico” serve como síntese expressiva da profunda reestruturação metodológica operada nas últimas décadas. Essa virada reflete a inversão do ponto de partida da interpretação jurídica: antes orientada pelos institutos tradicionais do Direito Civil, ela passou a ser conduzida prioritariamente pelos princípios constitucionais. Em vez de se buscar, inicialmente, a solução em normas codificadas e técnicas formalistas, privilegia-se hoje a identificação dos valores fundamentais consagrados pela Constituição, com destaque para a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a função social dos direitos subjetivos.

Esse movimento corresponde a uma transição de paradigmas. A centralidade que outrora cabia à lógica patrimonialista cede lugar a uma perspectiva existencial e relacional do Direito, que valoriza o indivíduo em sua dimensão concreta e inserida no tecido social. A estrutura formal e hierarquizada das normas é substituída por uma abordagem substancialista, capaz de admitir ponderações entre princípios em situações de colisão. Essa metodologia interpretativa, que se distancia de uma subsunção automática, exige do intérprete sensibilidade institucional, comprometimento com os fins constitucionais e abertura argumentativa. Assim, o método jurídico passa a comportar a ponderação como instrumento legítimo de harmonização entre princípios, superando dicotomias estanques entre norma e valor.

A imagem da “Virada de Copérnico” foi resgatada no Brasil por grupos de estudo como o coordenado por Luiz Edson Fachin na Universidade Federal do Paraná, que compreendia essa transformação como uma autêntica revolução epistemológica na teoria e na prática do Direito Privado. Essa proposta guardava afinidade com a chamada Escola de Direito Civil-Constitucional do Rio de Janeiro, que também buscava fundar uma nova racionalidade jurídica a partir da centralidade da Constituição. Trata-se, portanto, de uma guinada comparável àquela promovida por Kant em sua filosofia crítica, na medida em que inverte os polos da reflexão jurídica: já não se parte da norma em direção ao fato, mas dos princípios constitucionais em direção à solução jurídica justa e adequada ao caso concreto.

3.1. O problema com princípios

Alexy desenvolve sua teoria dos princípios e apresenta sua concepção de princípios jurídicos como mandamentos de otimização, estabelecendo a distinção entre princípios e regras com base em sua estrutura normativa. Ralf Poscher, outro jurista alemão, trava com Alexy um debate ao longo de 20 anos, por meio de seis artigos científicos, discutindo a própria essência do conceito de princípios e suas aplicações.10 Para fins deste trabalho, busca-se apontar apenas as críticas mais incisivas e iniciais11 de Ralf Poscher ao conceito de princípio adotado por Alexy e como isto prejudica a aplicação prática de sua teoria. Trata-se de revisão fundamental diante da adoção pela jurisprudência dos tribunais superiores da teoria alexyana sem maiores ressalvas.

Ralf Poscher, sustenta que a distinção lógica e ontológica entre regras e princípios é falha e que, em última instância, a teoria de Alexy não se sustenta nem como teoria geral do Direito, nem como teoria metodológica dos direitos fundamentais.

Em seu primeiro artigo, inicialmente, esclarece que a teoria dos princípios surgiu como uma reação importante contra a desvinculação de direito e valores das teorias positivistas, especialmente destacando a contribuição inicial de Josef Esser e mais tarde de Ronald Dworkin e Robert Alexy, que ampliaram e aplicaram a ideia no direito constitucional e além.12

Segundo Poscher, a primeira grande fragilidade da teoria está em sua pretensão de estabelecer uma distinção estrutural entre regras e princípios. Para ele, não há uma forma lógica que permita classificar certas normas como princípios e outras como regras. Ambos os tipos de normas podem apresentar generalidade, abstração ou importância, mas essas características não são exclusivas nem definidoras. A tentativa de Alexy de sustentar que princípios são comandos a serem otimizados falha conceitualmente, pois nada impede que se otimize objetos não normativos (como temperatura ou pressão de pneus), sem que isso envolva comandos normativos a serem otimizados.13 A teoria acaba simplificando excessivamente a prática jurídica ao reduzir o julgamento a um processo de subsunção ou ponderação (balanceamento ou sopesamento), não capturando a complexidade das decisões jurídicas que frequentemente envolvem uma combinação de interpretações normativas e ponderações contextuais. A técnica aplicada está atrelada à complexidade do caso e não à natureza da norma a ser aplicada.14

Além disso, a crítica de Poscher se volta para a metodologia que Alexy atribui à aplicação dos princípios, vinculando-os de maneira necessária à ponderação. O ponto crucial aqui é a inversão da lógica interpretativa: em vez de identificar os princípios a partir de sua função ou conteúdo, Alexy os identifica a partir da técnica de aplicação (otimização), confundindo método com ontologia normativa. Isso gera, segundo Poscher, uma categoria normativa sem objeto: não há normas com estrutura própria que possam ser chamadas de “princípios” com base nessa definição.15

Essa confusão leva à consequência de que, sob a teoria dos princípios, todas as normas que não se ajustam ao modelo de subsunção passam a ser interpretadas como princípios. Poscher mostra que esse critério classificatório é falho, pois as dificuldades interpretativas de uma norma não derivam de sua estrutura, mas das características do caso concreto a ser julgado. A aplicação de qualquer norma pode envolver desde subsunção até raciocínio analógico, histórico, teleológico ou axiológico, sem que isso implique que a norma seja “uma regra” ou “um princípio” ontologicamente distinto.16

Se a própria delimitação conceitual sobre o que é princípio demonstra-se tão complexa, tão mais complexa será a ponderação entre princípios.

3.2. O problema com a ponderação

A ponderação de princípios no direito é frequentemente criticada por seu suposto déficit de racionalidade. Fernando Leal argumenta que as críticas mais significativas não estão na afirmação da irracionalidade da ponderação, mas nas possíveis pretensões hiper-racionalistas dos métodos propostos para guiá-la17, especialmente os desenvolvidos por Robert Alexy.

Leal discute a racionalidade da ponderação ao considerar as críticas de que a aplicação de princípios é, por vezes, vista como hiper-racionalista ou sub-racional. Habermas18 e Schlink19, por exemplo, argumentam que a ponderação pode ser subjetiva e arbitrária, dependendo excessivamente de juízos normativos e funcionais. A teoria de Alexy busca oferecer um método de justificação de decisões jurídicas, mesmo admitindo que a ponderação não necessariamente conduz a um único resultado correto, mas oferece um quadro racional para a tomada de decisão.

Prossegue o autor, a teoria dos princípios pode ser criticada por sua aparente permissividade na justificação das decisões. A teoria, porém, não busca prescrever resultados específicos, mas oferecer um método para argumentar racionalmente em favor de uma decisão. Assim, a ponderação pode ser vista tanto como uma técnica útil quanto problemática devido à sua flexibilidade e ao potencial de interpretação subjetiva.

Fernando Leal conclui que o papel da ponderação não é simplesmente resolver colisões entre princípios de forma mecanicamente racional, mas permitir uma justificação das decisões que seja compreensível e aceitável dentro de um quadro de racionalidade jurídica. Apesar das críticas, a ponderação oferece uma abordagem valiosa para lidar com a complexidade das decisões jurídicas, equilibrando entre objetividade metodológica e a necessidade de adaptar os princípios às circunstâncias variadas.

4. A negligenciada função social dos institutos de direito infraconstitucional e o caso Porta dos Fundos

O debate sobre a função social dos institutos de direito infraconstitucional é especialmente significativo quando consideramos casos como o emblemático especial de Natal do Porta dos Fundos julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF)20. Este caso exemplifica a questão de como a negligência na aplicação de institutos infraconstitucionais específicos, pode comprometer a função social do direito.

Como visto, segundo a teoria dos princípios de Robert Alexy, os princípios devem ser cumpridos na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas, o que implica uma ponderação cuidadosa em cada caso. No entanto, no caso Porta dos Fundos, percebe-se uma centralização excessiva na discussão de princípios constitucionais, como a liberdade de expressão e liberdade religiosa, em detrimento de uma análise mais aprofundada das normas infraconstitucionais aplicáveis. Essa abordagem pode levar a uma aplicação incompleta do direito, falhando em abordar adequadamente questões de danos morais coletivos ou de infrações específicas como o vilipêndio religioso.

O autor da ação, entidade religiosa, apesar de ter indicado na petição inicial o ataque à honra e à dignidade de milhões de católicos, manteve sua causa de pedir em sede constitucional. Focou imediatamente toda sua fundamentação em princípios constitucionais, invocando desde logo o fundamento da República dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF/88), o direito fundamental à liberdade religiosa (art. 5º, VI) e o princípio de respeito aos valores éticos e sociais da família (art. 221, IV), para requerer a suspensão da exibição do programa televisivo.

A partir daí, a aplicação direta da técnica da ponderação demonstra em primeiro lugar a falta de técnica jurídica, por não delimitar o objeto dos direitos alegados. Em segundo lugar, o desprezo pelos institutos de direito infraconstitucional, como se fossem irrelevantes para o deslinde. A jurisprudência apressa-se em utilizar a ponderação, especialmente quando o tema é “delicado” ou “capaz de gerar grandes polêmicas”, como se extrai do inteiro teor do acórdão da referida Reclamação 38.782:

“o direito às liberdades de expressão, imprensa e artística, que não são absolutos, não poderiam servir de respaldo para toda e qualquer manifestação, quando há dúvidas sobre se tratar de crítica, debate ou achincalhe, sendo necessária a ponderação dos direitos para evitar a ocorrência de excessos”

“Isso porque a ponderação acerca dos limites entre liberdade de expressão artística e liberdade religiosa é, por certo, temática delicada, que faz com que o julgador, ao analisar o caso concreto, necessite sopesar direitos essenciais ao Estado democrático de Direito, em hipóteses que podem, muitas vezes, gerar
grandes polêmicas.”

William Galle Dietrich e Abrahan Lincoln Dorea Silva demonstram que sequer há conflito de direitos fundamentais quando contrapostas a liberdade de expressão e a liberdade religiosa.21 Isso porque, segundo os autores, a atuação do Porta dos Fundos qualifica-se como sátira religiosa, e a liberdade religiosa não confere proteção contra a sátira.

A delimitação do âmbito de proteção da liberdade religiosa e a caracterização da produção artística como sátira ou vilipêndio não são discutidas. O debate limita-se, fundamentalmente, ao conflito (aparente) de princípios. A correta identificação da arte como sátira excluiria a violação à liberdade religiosa, eis que essa não impede nem mesmo o proselitismo por outras religiões, quanto menos a piada, a recriação jocosa de fatos religiosos.22 Por outro lado, a correta identificação de existência de crime de vilipêndio religioso, ao se considerar Jesus como objeto de culto religioso, poderia afastar a liberdade de expressão artística, pois essa não pode subsidiar atividade criminosa.23

Percebe-se o enfraquecimento de institutos consolidados de direito, que são aptos a resolver o caso concreto, quando os operadores do direito resolvem simplesmente ignorá-los, em nome de uma legitimação por meio da aplicação da ponderação dos princípios supostamente envolvidos. Até mesmo a teoria dos direitos fundamentais resta prejudicada quando existe o anseio de aplicar a teoria de Alexy independentemente de o âmbito de proteção alcançar ou não os fatos analisados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ponderação de princípios, frequentemente laudada como uma poderosa ferramenta na hermenêutica jurídica, é concebida para equilibrar direitos fundamentais e resolver colisões de valores no complexo cenário legal moderno. No entanto, essa ferramenta não está isenta de críticas, especialmente no que diz respeito ao seu potencial de arbitrariedade judicial. Nesse contexto, a opinião de Lenio Luiz Streck24 destaca-se por seu rigor crítico em relação à aplicação e às consequências do uso da ponderação no Direito.

Streck identifica a ponderação não apenas como uma metodologia de concretização de direitos fundamentais, mas também como um veículo potencial de legitimação do poder judiciário que, paradoxalmente, pode minar a própria legitimidade que busca estabelecer. Ao invés de estrita aplicação legal, a ponderação pode levar a decisões que refletem mais a discricionariedade pessoal dos magistrados do que uma verdadeira justiça baseada em princípios preestabelecidos e objetivos. Esse método transforma a jurisprudência em uma “arena de poder”, onde os juízes exercem uma influência quase legislativa, escolhendo quais princípios devem prevalecer com base em critérios subjetivos e circunstanciais.

O aspecto de poder inerente à ponderação é especialmente problemático pois confere aos juízes uma capacidade quase ilimitada de moldar a lei, um cenário que contradiz os princípios da legalidade e da previsibilidade jurídica. A arbitrariedade associada à ponderação surge como uma crítica fundamental ao que se percebe como uma abdicação da responsabilidade judiciária de aderir ao texto e ao espírito das leis, optando por uma interpretação mais fluida e potencialmente caprichosa.

Assim, enquanto muitos veem a ponderação como essencial para a dinâmica contemporânea de direitos e deveres, faz-se necessária a crítica por introduzir uma flexibilidade que, embora destinada a adaptar o direito às realidades sociais mutáveis, frequentemente culmina em decisões que carecem de consistência lógica e legal. Conclama-se por uma abordagem mais estruturada e menos discricionária na interpretação judicial, que mantenha o equilíbrio entre a aplicação adaptativa do direito e a necessidade de resguardar sua previsibilidade e integridade.


2 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, número 9, 2007, p.12.

3 Dentre outros: STF, ADI 7239, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, J. 11.03.2024, DJe 02.05.2024; STF, RE 1210727 (Tema 1056), Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, J. 09.05.2023, DJe 17.05.2023; STF, ADPF 605 MC-Ref, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, J. 13.06.2023, DJe 06.07.2023; STF, ADI 3324, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, J. 16.12.2004, DJe 05.08.2005; STF, ADI 3305, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, J. 13.09.2006, DJe 24.11.2006; STF, ADI 3070, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, J. 29.11.2007, DJe 19.12.2007; STJ, REsp 2170160/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Otávio de Almeida Toledo (Desembargador convocado do TJSP), J. 30.04.2025, DJe 08.05.2025; STJ, HC 712.350/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, J. 07.02.2023, DJe 13.02.2023; STJ, REsp 1.854.874/MG, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, J. 20.10.2020, DJe 29.10.2020; STJ, REsp 1.698.647/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, J. 06.12.2018, DJe 15.02.2019; STJ, REsp 1.657.156/RJ, Primeira Seção, Rel. Min. Benedito Gonçalves, J. 25.04.2018, DJe 04.05.2018; STJ, HC 284.161/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, J. 10.06.2014, DJe 01.07.2014.

4 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p.90-91.

5 Ibidem, p. 117-118.

6 Ibidem, p. 117-118.

7 Esta é a conclusão de William Galle Dietrich e Abrahan Lincoln Dorea Silva, ainda que por outros fundamentos, cf. DIETRICH, William Galle; SILVA, Abrahan Lincoln Dorea. Colisão de direitos fundamentais e ponderação: Metódica jurídica em análise no caso do Especial de Natal do Porta dos Fundos. Revista da AJURIS – Porto Alegre, v. 50, n. 155, Dezembro de 2023.

8 Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002; ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008; BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: UNB, 1999. Para uma análise crítica da evolução do positivismo e a transição ao pós-positivismo, ver também: FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2003.

9 SCHREIBER, Anderson. Direito civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013. p. 10.

10 Esses artigos foram traduzidos e organizados cronologicamente por Rafael Giordio Dalla Barba em: DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Princípios Jurídicos – o debate metodológico entre Robert Alexy e Ralf Poscher. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022.

11 POSCHER, Ralf. Insights, Errors and Self-Misconceptions of the Theory of Principles. Ratio Juris. Vol. 22, No. 4, Dezembro 2009, p. 425-454.

12 Ibidem, p. 425-426.

13 Ibidem, p. 437.

14 Ibidem, p. 439.

15 Ibidem, p. 433-435.

16 Ibidem, p. 439-441.

17 LEAL, Fernando. Irracional ou hiper-racional? A ponderação de princípios entre o ceticismo e o otimismo ingênuo. Revista de Direito Administrativo & Constitucional. Belo Horizonte, ano 14, n. 58, p. 177-209.

18 HABERMAS (1998 apud LEAL, 2014).

19 SHLINK (2001 apud LEAL, 2014).

20 STF, Reclamação 38.782, Min. Rel. Gilmar Mendes, 2ª Turma, J. 03.11.2020. A Reclamação 38.782 foi ajuizada pela Netflix no Supremo Tribunal Federal (STF) contra decisão do desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), que determinou a retirada do ar do especial de Natal do grupo humorístico Porta dos Fundos, intitulado “A Primeira Tentação de Cristo”, veiculado na plataforma de streaming. A decisão do TJ-RJ atendeu a pedido da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, que alegou que o conteúdo ofendia a honra e a dignidade de milhões de católicos brasileiros, retratando Jesus Cristo de maneira desrespeitosa. A causa de pedir da reclamação foi a suposta violação da decisão do STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 130, que declarou a inconstitucionalidade da censura prévia, e a afronta à liberdade de expressão e artística garantida pela Constituição Federal. A Netflix argumentou que a decisão do TJ-RJ configurava censura e que a obra era uma sátira protegida pelo direito à liberdade de expressão. O pedido formulado na reclamação foi a suspensão da decisão do TJ-RJ que proibiu a exibição do especial, permitindo que o conteúdo permanecesse disponível na plataforma. Inicialmente, o então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, concedeu liminar para suspender a decisão do TJ-RJ, restabelecendo a exibição do especial.  Posteriormente, a 2ª Turma do STF, por unanimidade, confirmou a liminar, entendendo que a obra não incitava violência contra grupos religiosos e constituía mera crítica realizada por meio de sátira, elemento característico do grupo Porta dos Fundos. O caso destacou a importância da liberdade de expressão e artística no contexto de uma sociedade democrática e pluralista, reafirmando o entendimento do STF de que a censura prévia é incompatível com a Constituição Federal.

21 DIETRICH, William Galle; SILVA, Abrahan Lincoln Dorea. Colisão de direitos fundamentais e ponderação: Metódica jurídica em análise no caso do Especial de Natal do Porta dos Fundos. Revista da AJURIS – Porto Alegre, v. 50, n. 155, Dezembro de 2023, p.328-329.

22 Ibidem, p. 326-328.

23 Tema abordado nas aulas do Prof. William G. Dietrich no Mestrado da FADISP-Unialfa-SP, no ano letivo de 2024; tema que pode ser melhor trabalhado em futuro artigo.

24 STRECK, Lenio Luiz. Contra o Neoconstitucionalismo. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2011, vol. 3, n. 4, Jan-Jun. p. 9-27.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

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DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Princípios Jurídicos – o debate metodológico entre Robert Alexy e Ralf Poscher. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022.

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1 Mestrando em Função Social do Direito (FADISP). Tabelião. E-mail: fagundesjonas@yahoo.com.br.