LAND CREDIT POLICY IN THE BOLSONARO AND LULA GOVERNMENTS: A COMPARATIVE ANALYSIS
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202506271015
Maria Raimunda Belchior dos Santos1
Maria Dione Carvalho de Moraes2
RESUMO
Este trabalho analisa o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) nos governos de Jair Bolsonaro (2019–2022) e Luiz Inácio Lula da Silva (2023–2025), focando nas permanências e mudanças nas diretrizes e na execução desta política de compra e venda de terra, incluída na política de reforma agrária, desde os anos 1990. A pesquisa justifica-se pela ênfase dada ao PNCF como medida de distribuição de terras para famílias rurais. O problema investigado é: qual o desempenho do PNCF em cada um dos dois governos, em termos de volume de crédito negociado, número de contratos assinados e quantidade de famílias usuárias? Partimos do pressuposto de que contextos políticos e abordagens ideológicas distintas entre os mandatos resultam em desfechos diferentes para o programa. Metodologicamente, adotamos uma abordagem qualitativa, combinando revisão bibliográfica sobre o PNCF, em fontes que abordam o tema, e pesquisa documental em relatórios de instituições como INCRA e Ministério do Desenvolvimento Agrário. Constatamos que o governo Bolsonaro, sob diretrizes econômicas neoliberais, reduziu o orçamento, restringiu condições de financiamento e priorizou agenda de mercado, provocando queda no número de concessões de crédito e no volume de recursos para famílias rurais. Em contraste, o governo Lula, com foco declarado na justiça social e na diminuição das desigualdades, ampliou os índices de acesso de famílias ao crédito fundiário, apesar de limitações orçamentárias em contexto de crise fiscal. A conclusão é que, por um lado, o governo Bolsonaro reduziu as concessões de crédito; por outro, o governo Lula implementou ações para revertê-las, evidenciando que, mesmo com abordagens ideológicas distintas, o PNCF permanece como instrumento estratégico na política de reforma agrária brasileira.
Palavras-chave: Programa Nacional de Crédito Fundiário. Governo Bolsonaro. Governo Lula.
ABSTRACT
This paper analyzes the National Land Credit Program (PNCF) under the governments of Jair Bolsonaro (2019–2022) and Luiz Inácio Lula da Silva (2023–2025), focusing on the continuation and changes in the guidelines and implementation of this land purchase and sale policy, included in the agrarian reform policy since the 1990s. The research is justified by the emphasis given to the PNCF as a measure of land distribution to rural families. The problem investigated is: what is the performance of the PNCF in each of the two governments, in terms of volume of credit negotiated, number of contracts signed and number of user families? We assume that different political contexts and ideological approaches between terms result in different outcomes for the program. Methodologically, we adopted a qualitative approach, combining a bibliographic review on the PNCF, in sources that address the topic, and documentary research in reports from institutions such as INCRA and the Ministry of Agrarian Development. We found that the Bolsonaro government, under neoliberal economic guidelines, reduced the budget, restricted financing conditions and prioritized the market agenda, causing a drop in the number of credit concessions and in the volume of resources for rural families. In contrast, the Lula government, with a declared focus on social justice and reducing inequalities, increased the rates of access of families to land credit, despite budgetary limitations in the context of a fiscal crisis. The conclusion is that, on the one hand, the Bolsonaro government reduced credit concessions; on the other, the Lula government implemented actions to reverse them, showing that, despite different ideological approaches, the PNCF remains a strategic instrument in the Brazilian agrarian reform policy.
Keywords: National Land Credit Program. Bolsonaro government. Lula government.
1. INTRODUÇÃO
A luta pela terra no Brasil insere-se em um contexto histórico de profundas desigualdades estruturais e marcado pela concentração fundiária e pela exclusão secular do campesinato. A reforma agrária, enquanto política pública, tradicionalmente fundamentada na desapropriação de latifúndios improdutivos, e como principal instrumento do Estado para promover a democratização da terra, teve uma trajetória marcada por disputas entre setores que defendiam tal democratização e setores que lutavam pelo controle da propriedade privada e da concentração fundiária.
Nessa trajetória, ao final da década de 1950, com a industrialização e urbanização do país, ganharia corpo na sociedade brasileira a questão da terra, com destaque para posicionamento de alguns intelectuais e para o surgimento das Ligas Camponesas e, mesmo, para criação de algumas instituições, ainda nos governos militares, a partir do golpe de 1964, quando um Plano Nacional de Reforma Agrária foi criado, mas não implementado. A pauta da reforma agrária alcançaria maior vigor a partir da redemocratização, quando seria lançado um novo Plano Nacional de Reforma Agrária, na chamada Nova República. A Constituição de 1988 assegurou o direito por parte da União à desapropriação de terras particulares para fins de reforma agrária. A desapropriação, portanto, seria a tônica da política de reforma agrária, até os anos 1990, quando foi instituída a política de compra e venda de terras, que ficaria conhecida como “reforma agrária de mercado” (Sauer e Pereira, (2006, p. 174) De fato, no final da década de 1990, no governo de Fernando Henrique Cardoso, ou FHC, ocorreria uma inflexão na condução da política agrária brasileira, sob a égide do Banco Mundial. Em 1998, foi implementado o Programa Cédula da Terra, com financiamento deste banco, o qual funcionou como projeto piloto de uma nova abordagem política, no acesso à terra, baseada na lógica de mercado. Sucessivos programas integraram a reforma agrária de mercado como parte de uma proposta governamental mais ampla, nomeada “Novo Mundo Rural”. (Oliveira, 2014, p.61). Nos anos 2000, essa estratégia de financiamento de terras foi institucionalizada com a criação do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), que manteve a linha de oferta de crédito para famílias agricultoras sem-terra ou com pouca terra, para aquisição de imóveis rurais por meio da negociação direta com proprietários.
Na mudança de ênfase de uma reforma agrária estatal e redistributiva para uma política dita de reforma agrária com base no mercado, o papel do Estado restringe-se à mediação financeira, deixando de atuar como agente expropriador de terras improdutivas. A iniciativa e a responsabilidade pela aquisição da terra passavam, assim, aos/as então denominados/as agricultores/as familiares3 que enfrentavam tanto a precariedade de acesso à terra, quanto dificuldades estruturais para negociar em igualdade de condições com proprietários, no contexto de desigualdades existentes.
A política de crédito fundiário persistiria nos governos de Luís Inácio Lula da Silva de Dilma Rousseff, sendo o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) instituído em 2003, com a criação de subprogramas como o Crédito Fundiário – Nossa Primeira Terra, voltado para jovens rurais, e o PNCF Social, voltado para agricultores/as em situação de vulnerabilidade. A lógica da política fundiária centrada na compra voluntária foi mantida. As diferentes modalidades do PNCF expressam tentativas do Estado brasileiro de diversificar esta política de acesso à terra, adaptando-a a especificidades regionais, sociais e geracionais de usuários/as. A criação de linhas como o PNCF Jovem, voltado para jovens de 16 a 29 anos, e o PNCF Social, direcionado a famílias de baixa renda inscritas no Cadastro Único e residentes nas áreas da Sudene e da Região Norte, revela um esforço de segmentação da política, buscando alcançar contingentes excluídos das ações fundiárias. Da mesma forma, o PNCF Mais, que atende famílias com renda anual de até R$ 55.551,98, e o Terra Negra Brasil, que prioriza pessoas negras com recursos adicionais para projetos coletivos, indicam uma tentativa de incorporar elementos de justiça social e racial à política de crédito fundiário. No entanto, como destacam Fernandes (2004), Sauer (2006) e Heredia et al. (2010), essas iniciativas continuam subordinadas à lógica da reforma agrária de mercado, na qual a terra é tratada como mercadoria e o papel do Estado é o de financiador, não o de garantidor do direito à terra. Assim, mesmo com a retórica da inclusão, o modelo mantém as famílias vulneráveis expostas ao endividamento, à insegurança produtiva e à fragilidade de formas coletivas de organização, sobretudo, quando se trata de juventudes e populações negras, historicamente marginalizadas nas políticas agrárias brasileiras.
As críticas à estratégia do crédito fundiário, acima referidas, consideram que o Estado não enfrenta a concentração fundiária de maneira estrutural, ao tratar o acesso à terra como uma política individualizada que, em vez de promover uma transformação no padrão de acesso à terra, acaba por restringir-se à inclusão de determinados grupos nos marcos do mercado, esvaziando o caráter social e coletivo da reforma agrária. Além do mais, tal política tem sido marcada, em muitos casos, pelo endividamento de famílias usuárias.
De fato, a lógica do PNCF fundamenta-se na concessão de financiamento para trabalhadores/as rurais sem-terra, pequenos/as produtores/as rurais sem terra ou com acesso precário a ela, arrendatários/as, parceiros/as, meeiros/as, agregados/as e posseiros/as, com experiência comprovada na atividade rural. Esses/as agricultores/as familiares podem acessar o PNCF para adquirir terras, assim como para financiar projetos de infraestrutura e produção. Mas essa política de crédito fundiário, embora represente um mecanismo de acesso à terra, também levanta questionamentos sobre sua efetividade enquanto instrumento de justiça social. O endividamento de usuários/as, a elevação do preço da terra devido à inserção do crédito como variável de mercado, e dificuldades no acesso à assistência técnica são desafios frequentemente apontados em análises críticas sobre o programa (Sauer, 2006; Leite, et al., 2013).
Além disso, transformações no PNCF ao longo de diferentes governos evidenciam como a política de crédito fundiário é diretamente influenciada por diretrizes ideológicas, diretrizes de política econômica, e prioridades de gestão, afetando seu alcance e impacto.
De fato, como nos propomos a demonstrar, a condução do PNCF, nos últimos anos, reflete abordagens governamentais distintas, casos dos governos de Jair Bolsonaro e de Luís Inácio Lula da Silva. No governo Bolsonaro (2019-2022), o programa foi reconfigurado com uma perspectiva ainda mais alinhada ao mercado, reduzindo a participação estatal na mediação e no suporte técnico a usuários/as, e concentrando-se no processo de entrega de títulos de terra. Já no governo de Lula (2023-2025), em curso, há uma proposta de ampliação do papel do Estado, com maior ênfase na agricultura familiar e no fortalecimento de políticas de apoio a assentados/as. Nesse cenário, torna-se essencial compreender em que medida essas mudanças afetam a ampliação do acesso à terra por famílias agricultoras. Nessa direção, este estudo objetiva analisar indicadores do PNCF nos dois governos referidos, examinando a continuidade da inserção do programa na política agrária brasileira e suas implicações para agricultores/as sem-terra. A natureza desta pesquisa é de caráter analítico e comparativo, centrada na implementação da política de crédito fundiário. A investigação busca identificar continuidades, rupturas e reformulações no PNCF a partir das diretrizes políticas, institucionais e orçamentárias adotadas por cada gestão. Para isso, são utilizados dados quantitativos, como volume de recursos destinados, número de contratos efetivados e distribuição territorial dos financiamentos, e dados qualitativos, obtidos por meio de análise bibliográfica e documental. A abordagem permite identificar mudanças operacionais e normativas do programa, avaliando aspectos como volume de recursos destinados, número de usuários/as, distribuição territorial e aspectos socioeconômicos do programa. Dessa forma, buscamos compreender limites e potencialidades da política de crédito fundiário, considerando seus efeitos na dinâmica fundiária e na estrutura agrária brasileira.
2. REVISÃO DA LITERATURA: TRAJETÓRIA DA POLÍTICA NACIONAL DE CRÉDITO FUNDIÁRIO NO BRASIL
As discussões sobre a questão agrária no Brasil ganharam força a partir da década de 1950, quando o meio rural passou a ser visto como central para o desenvolvimento do país. A concentração fundiária era considerada um entrave ao avanço econômico, e os debates sobre reforma agrária destacavam a necessidade de redistribuição de terras para promover justiça social (Nunes et al., 2006). No entanto, já na década de 1940, havia propostas para uma renovação estrutural no campo, visando a transformar o acesso à terra e reduzir as desigualdades. Carvalho (1987) enfatiza que “as questões distributivas e sociais emergiram especialmente na figura da Reforma Agrária, com alterações na estrutura da propriedade rural”4.
A análise da política nacional de crédito fundiário, expressa por meio do PNCF, nesta pesquisa, parte do entendimento da terra como um bem social, e da reforma agrária como uma política pública que envolve disputas de poder, projetos de Estado e interesses de classe. Nesta abordagem, consideramos aportes como os de Fernandes (2004), que interpreta a reforma agrária como um campo de conflito entre o capital e o campesinato, portanto, não redutível ao crédito fundiário, e de Sauer (2006), em sua crítica à política, do Banco Mundial, de Reforma Agrária Assistida pelo Mercado (RAAM)5. São críticas direcionadas à política de crédito fundiário concebida pelo governo como alternativa às declaradas dificuldades e ineficiências atribuídas à chamada “reforma agrária conduzida pelo Estado” (state-led land reform) a qual se baseava no instrumento da desapropriação” (Pereira, 2015, p.42). Nessa estratégia de acesso à terra mediada pelas dinâmicas de mercado, este atua como financiador, e camponeses/assumem a responsabilidade pela negociação e aquisição dos imóveis, individual ou coletivamente, em um processo subsidiado pelo Estado.
A trajetória da política nacional de crédito fundiário no Brasil tem início na passagem do primeiro ao segundo mandato, consecutivos, do governo FHC (1995-1998 e 1999-2002), com a criação do referido Programa Cédula da Terra em 1998, financiado pelo Banco Mundial. Esse projeto-piloto daria início a uma nova lógica na política de acesso à terra, no país, baseada na compra e venda, tidas como voluntárias, de imóveis rurais, o que marcou uma inflexão em relação à política de reforma agrária via desapropriação. Nos anos 2000, essa experiência foi consolidada na forma do PNCF, com compra e venda de imóveis por meio de crédito público, com pagamento em longo prazo.
O PNCF foi implementado no Brasil em 2003, no primeiro mandato (2003-2007) do segundo governo Lula (2007-2010), como parte de um conjunto de políticas públicas voltadas à reforma agrária. Desde sua criação, o programa passou por diversas alterações. Inicialmente, seu foco era proporcionar acesso à terra e crédito para famílias agricultoras de baixa renda, facilitando a aquisição de imóveis rurais para produção agrícola. Depois, foi expandido para incluir a regularização fundiária e o incentivo a projetos produtivos. (Fernandes, 2023).
Até os anos 1990, a reforma agrária no Brasil esteve predominantemente atrelada a processos de desapropriação de terras improdutivas, conforme estabelecido pelo Estatuto da Terra de 1964. Devido aos interesses em disputa, a distribuição de terras ocorria de forma lenta e frequentemente enfrentava resistência política e econômica, conflitos, violência e a mobilização dos movimentos sociais, em especial, do MST. No contexto, a nova proposta influenciada pela política do Banco Mundial para “países em desenvolvimento”, especialmente para áreas rurais, baseava-se no crédito fundiário, permitindo que agricultores/as sem-terra ou com pouca terra adquirissem propriedades rurais por meio de financiamento público (Sauer; Pereira, 2006).
Rosset (2004) aponta três razões principais pelas quais o Banco Mundial passou a priorizar a questão agrária em suas políticas. Primeiro, estudos comparativos conduzidos por economistas desse banco, demonstrando que uma distribuição desigual de terras impactava negativamente o crescimento econômico. Segundo o baixo nível de investimentos privados nas áreas rurais da América Latina, África e Ásia. Terceiro, a instituição justificava a reforma agrária de mercado como uma estratégia para reduzir a pobreza, ainda que esse argumento fosse considerado retórico e questionável.
Assim, na década de 1990, com o propósito declarado de reduzir desigualdades na estrutura fundiária brasileira, foi implementada uma nova estratégia de redistribuição de terras por meio de uma política de crédito fundiário, embasada nos preceitos neoliberais do Banco Mundial e financiada por essa instituição.
Sob o argumento de que era necessário “reformar a reforma agrária” (Cardoso, 1995, p. 88 ) e com a referida proposta de um “novo mundo rural”, a política de crédito fundiário no governo FHC (1995-2002) instituiu programas como o Cédula da Terra6, criado em 1997, voltado à aquisição de terras por meio de financiamentos subsidiados, e o Banco da Terra, em 19987, um fundo nacional para financiamento da compra de terras para assentamentos rurais, como alternativa à tradicional desapropriação da terra por interesse social. As diretrizes da política, nessa fase, estavam centradas no estímulo à organização produtiva, no acesso ao crédito e na regularização fundiária. Em 2003, no governo Lula, o MDA integrou o crédito fundiário ao Fundo de Terras8, resultando na criação do PNCF. Essa reformulação ampliou as possibilidades de financiamento, oferecendo três principais linhas de crédito: 1/ Consolidação da Agricultura Familiar (CAF), voltada para pequenos/as agricultores/as já estabelecidos/as; 2/ Combate à Pobreza Rural (CPR), destinada a trabalhadores/as rurais de baixa renda; e 3/ Nossa Primeira Terra (NPT), direcionada a jovens agricultores/as (Lima, 2011).
Embora tenha sido regulamentado em 2003, o crédito fundiário foi instituído no Brasil pela Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998, como Banco da Terra, vindo a ser regulamentado, como PNCF, pelo Decreto nº 4.892, de 25 de novembro de 2003. Sua formulação teve como base as experiências do Banco da Terra e do Programa Célula da Terra dos anos 1990, mas com revisões quanto à atuação. Desde sua oficialização, consolidou-se como uma política pública declarada como voltada ao acesso à terra e à promoção do desenvolvimento econômico e social de famílias rurais.
O Quadro 1, abaixo, apresenta dados sobre os orçamentos aplicados, o número de famílias usuárias e os contratos firmados para aquisição de terras por meio do PNCF entre 2003 e 2018, abrangendo os governos Lula (2003-2010), Dilma Rousseff (2011-2016) e Michel Temer (2016-2018).
Quadro 1 – Indicadores do PNCF nos governos federais no período de 2003 a 2018

A análise de indicadores nos governos federais entre 2003 e 2018, com foco no PNCF, aponta para o comportamento do PNCF no período assinalado. No governo Lula (2003-2010), o programa passou por um processo de dinamização, incluindo aumento no número de famílias usuárias e maior disponibilidade de recursos.
No processo, instituíram-se medidas voltadas ao aperfeiçoamento dos mecanismos de acesso ao crédito e à assistência técnica, com o objetivo declarado de garantir a sustentabilidade dos projetos. Novas parcerias foram estabelecidas com entidades da sociedade civil e instituições de pesquisa, com vistas à inovação e ao aprimoramento do programa. Houve ampliação das linhas de crédito, a exemplo dos programas Nossa Primeira Terra (NPT) e Combate à Pobreza Rural (CPR).
No governo de Dilma Rousseff (2011-2016), o PNCF continuou sua trajetória, por meio de financiamentos para a aquisição de terras. Contudo, algumas mudanças nas prioridades e nas estratégias de implementação foram observadas, com maior ênfase posta na regularização fundiária e nas parcerias com estados e municípios com o objetivo declarado de fortalecer a atuação local do programa. Apesar da continuidade, o programa viveu um período com desafios significativos, como cortes orçamentários e desaceleração econômica, que impactaram a eficácia e o alcance das políticas de reforma agrária, por meio da formalização dos títulos de propriedade, passo fundamental para o acesso a outras políticas públicas, como crédito rural, assistência técnica e programas de infraestrutura (Brasil, 2013).
Apesar de sua curta duração, o governo de Michel Temer (2016-2018) promoveu mudanças importantes nas políticas públicas voltadas ao meio rural, com reflexos diretos sobre o PNCF. Em um contexto de forte ajuste fiscal e de reorientação neoliberal do papel do Estado, o programa sofreu significativa redução orçamentária, o que comprometeu sua capacidade de ampliar o acesso à terra por meio do crédito, especialmente entre os segmentos mais vulneráveis da agricultura familiar (Grisa; Schneider, 2021). Essa diminuição de recursos impactou seu alcance e efetividade, limitando o número de projetos aprovados e a capacidade de acompanhamento técnico dos/as usuários/as.
Além do corte de verbas, o período foi marcado por revisões nos critérios de elegibilidade e pela imposição de novas exigências administrativas, que tornaram mais burocrático e restritivo o acesso ao crédito fundiário. Entre as alterações, destacam-se a adoção de critérios mais rigorosos de renda, comprovação de experiência rural e documentação fundiária, o que gerou barreiras adicionais para potenciais usuários/as, sobretudo jovens e mulheres rurais. Tais mudanças configuram um processo de enfraquecimento institucional do programa, refletindo uma orientação política que priorizou a contenção de gastos públicos em detrimento do fortalecimento das políticas de inclusão social no campo (Sauer; Stoeckli, 2020).
Desse modo, os governos Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer, no que diz respeito ao PNCF, revelam diferenças significativas quanto à abordagem e implementação do programa. Durante o governo Lula, o foco recaiu na expansão do acesso ao crédito fundiário, com aumento significativo no número de famílias atendidas e na criação de novas linhas de crédito, como referidas. Além disso, o governo estabeleceu parcerias com instituições de pesquisa e organizações da sociedade civil, com o objetivo de melhorar a sustentabilidade dos projetos e otimizar a assistência técnica e a capacitação dos/as usuários/as, contribuindo para uma maior articulação entre a política de crédito fundiário e outras políticas de desenvolvimento rural (Grisa; Schneider, 2009; Brasil, 2013).
Importante considerar, ainda, que apesar do impacto do PNCF, e sua aceitação por possíveis usuários/as, assim como por parte de movimentos social e sindical, a eficácia de suas estratégias precisa ser avaliada com base em uma análise mais detalhada dos dados de execução do programa, das mudanças legislativas, das críticas à sua implementação a qual tem sido objeto de críticas por parte de pesquisadores/as, movimentos sociais do campo, como o MST, e de órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU). Entre os principais pontos questionados estão o endividamento de famílias usuárias, a fragilidade da assistência técnica, a ausência de controle social efetivo e a tendência à mercantilização da terra, o que afasta o programa dos princípios da reforma agrária clássica (Oliveira, 2004; TCU, 2010).
2. METODOLOGIA
Neste estudo voltado a analisar o PNCF, sobretudo, comparando índices dos governos Bolsonaro (2019-2022) e Lula (2023-2025), adotamos uma abordagem qualitativa, com características descritivas. Visamos a compreender desempenhos governamentais, com base em indicadores do PNCF, sob duas diferentes gestões, apontando para as consequências possíveis desse desempenho.
Na pesquisa, utilizamos fontes documentais (May, 2004) e bibliográficas (Lima e Mioto, 2007), com análise de dados secundários oficiais e da literatura especializada sobre reforma agrária, políticas públicas para a agricultura familiar e financiamento fundiário. A revisão bibliográfica envolveu o levantamento de estudos como os de Sauer (2006), Leite et al. (2013) e Fernandes (2010), que discutem as características e contradições da reforma agrária de mercado no Brasil; o de Moraes (1998), que reflete sobre a emergência da categoria agricultura familiar nos anos 1990, o de Santos (2024), que traz uma uma revisão bibliográfica sobre o tema, apontando os principais caminhos e enfoques analíticos adotados nas produções acadêmicas que tratam da política de crédito fundiário no Brasil, dentre outros.
Na pesquisa documental, analisamos documentos institucionais de órgãos governamentais, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); relatórios técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com destaque para materiais publicados entre 2019 e 2024.
Assim, pudemos contextualizar historicamente o PNCF, identificando reformulações ao longo dos anos dos dois governos, desde as origens da política de crédito fundiário, nos anos 1990, até os dias atuais, assim como desafios enfrentados na sua implementação. Também constou da análise documental, para identificação de índices, a consulta, em 2024, a dados quantitativos obtidos no Portal da Transparência do Governo Federal. E para dados pregressos, foram consultados bem como em relatórios oficiais do MDA (2003, 2008, 2013) e do INCRA (2006, 2010, 2015).
Dados que compõem a análise foram organizados em gráficos e quadros para permitir a comparação entre os dois governos, foco deste estudo, e visualizar as variações na aplicação dos recursos, alcance territorial e índices de contratos/ usuários/as. A partir da sistematização das informações, buscamos identificar padrões e possíveis consequências das diretrizes políticas do PNCF, considerando fatores como ampliação ou restrição do acesso ao crédito, mudanças nos critérios de financiamento e assistência técnica ofertada a agricultores/as.
A combinação das análises bibliográfica e documental possibilitou compreender como a política de crédito fundiário tem sido conduzida em diferentes contextos políticos e econômicos, evidenciando seus limites e potencialidades enquanto instrumento de redistribuição da terra. Dessa forma, a pesquisa busca contribuir para o debate sobre políticas de acesso à terra no Brasil, fornecendo elementos para uma avaliação crítica do modelo de reforma agrária de mercado adotado no país.
3. RESULTADOS E DISCUSSÕES: O PNCF NOS GOVERNOS DE JAIR BOLSONARO (2019-2022) E DE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA (2023-2025)
3.1 No governo Bolsonaro (2019-2022)
O PNCF, durante o governo Bolsonaro (2019-2022), passou por modificações significativas, influenciadas por uma agenda de austeridade fiscal e pela ênfase posta nas políticas voltadas ao agronegócio. Analisamos o desempenho do PNCF, no período, considerando indicadores de alocação de recursos financeiros, da evolução do número de usuários/as. Assim, apresentamos inferências quanto à adequação da política aos princípios de inclusão social e desenvolvimento sustentável.
Nesse governo, quando foi desativado o MDA e instituído o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), com ênfase na política voltada ao agronegócio, os recursos destinados ao PNCF sofreram uma redução significativa. Em 2018, o programa contava com uma alocação de R$900 milhões, enquanto, em 2022, esse valor foi reduzido para R$585 milhões, representando uma diminuição de cerca de 35% no orçamento (Contag, 2022). Essa redução impactou diretamente o número de famílias usuárias do programa, que passou de 4.500 em 2018 para 1.200 em 2022 (Ipea, 2023). O corte orçamentário comprometeu a expansão do programa, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, que dependem de políticas públicas para o fortalecimento da agricultura familiar e para a redução das desigualdades no campo (Brasil, 2025).
Além disso, a concessão de crédito para a agricultura familiar, uma estratégia essencial para fortalecer a base econômica das pequenas propriedades rurais, foi progressivamente reduzida. O governo Bolsonaro priorizou o financiamento para o agronegócio e, como consequência, a distribuição de terras e o apoio a pequenos/ agricultores/ ficaram em segundo plano. Em 2020, por exemplo, menos de 15% dos recursos do PNCF foram direcionados a esses/as agricultores/as familiares sem-terra, um percentual significativamente inferior ao registrado em anos anteriores (Ipea, 2023).
Outro aspecto crítico do PNCF, nesse governo, foi a redução do serviço de acompanhamento técnico e do apoio à implementação dos projetos financiados, o que dificultou a sustentabilidade das famílias usuárias. A ausência de assistência técnica especializada, que constituía um componente essencial do programa, contribuiu para o aumento significativo da taxa de inadimplência de usuários/as que enfrentaram dificuldades para cumprir os compromissos financeiros assumidos (Silva, 2023).
Paralelamente, a política de acesso à terra por meio do PNCF priorizou a certificação fundiária em detrimento da ampliação efetiva das áreas financiadas. Essa ênfase na regularização documental da terra, em vez de também focar na aquisição de imóveis rurais para novos/as usuários, revela uma mudança de direcionamento que compromete o alcance social do programa. Durante esse governo, essa tendência consolidou-se com a reformulação do programa, que passou a se chamar “PNCF Terra Brasil”, sinalizando uma nova abordagem marcada por uma lógica mais cartorial e menos redistributiva. Essa alteração no nome e no foco traduz uma inflexão em seu propósito original, aproximando o programa mais de uma estratégia de ordenamento territorial do que de uma política de reforma agrária Brasil, 2020).
3.2 No governo Lula (2023-2025)
No terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, iniciado em 2023, ainda em curso, o PNCF foi reposicionado como uma das principais estratégias de governo, declarada como voltada ao avanço na política de reforma agrária e no desenvolvimento rural sustentável (Brasil, 2024). Contudo, sua implementação ocorreu em um contexto complexo, marcado pela concentração fundiária persistente e pela expansão do agronegócio sobre territórios tradicionais, que impõem limites significativos à ampliação do acesso à terra pela agricultura familiar (Martins, 2023; Oliveira, 2022).
Apesar dos declarados esforços governamentais para fortalecer o apoio financeiro e técnico às famílias rurais, não houve uma retomada expressiva das desapropriações de terras para fins de reforma agrária. Assim, mantém-se o foco na aquisição de terras disponíveis no mercado, o que restringe o potencial redistributivo e a transformação estrutural da propriedade rural no Brasil (Brasil, 2024).
Em 2023, o Congresso Nacional aprovou uma alteração legislativa que ampliou o teto de financiamento para a compra de terras no âmbito da reforma agrária, com a correção anual baseada na inflação (Câmara, 2023). Embora tal dispositivo legal possa parecer um avanço, ele também reflete a dependência da política agrária de mecanismos de mercado, favorecendo, em certa medida, a valorização econômica da terra e a consequente ampliação do seu preço, beneficiando proprietários privados. Dessa forma, o alargamento do acesso ao crédito pode não ser suficiente para enfrentar os desafios da estrutura fundiária desigual, especialmente se não for acompanhada de um processo mais amplo de desapropriação de terras improdutivas e de fortalecimento das comunidades camponesas.
Outro ponto central foi a sanção, em 2024, de uma nova lei permitindo o uso do Fundo Garantidor9 de financiamentos para a agricultura familiar, medida que, segundo o governo, fortalece a sustentabilidade do crédito rural (Senado, 2024). No entanto, a dependência de garantias financeiras e da lógica bancária pode aprofundar a vulnerabilidade desses/as agricultores/as, especialmente em um contexto de juros elevados e de riscos climáticos cada vez mais frequentes. Sem mecanismos complementares de assistência técnica e políticas de fortalecimento da produção, essa expansão do crédito pode acabar resultando no endividamento de agricultores/as ao invés de consolidar sua autonomia produtiva.
Em termos quantitativos, o MDA (2023) anunciou que o governo aumentou a concessão de crédito fundiário em 2023, totalizando R$1,2 bilhão em financiamentos direcionados para cerca de 40.000 famílias. O valor médio dos contratos ficou em torno de R$30.000 por família, um montante que, apesar de representar um avanço em relação a anos anteriores, ainda é insuficiente para garantir infraestrutura adequada e condições de produção sustentáveis. Em 2024, o governo projetou um aumento dos financiamentos para R$1,5 bilhão, com a meta de alcançar 50.000 famílias. Contudo, a eficácia desses investimentos dependerá de uma articulação mais ampla com políticas de assistência técnica, comercialização e infraestrutura, sem as quais o crédito pode-se tornar, cada vez mais, apenas uma solução paliativa, sem romper com as desigualdades históricas do campo.
3.3 Análise comparativa
A análise comparativa entre o desempenho do PNCF nos governos Bolsonaro (2019- 2022) e Lula (2023-2025) revela disparidades significativas em termos de alocação de recursos, áreas financiadas e número de contratos e usuários/as. Durante o governo Bolsonaro, o programa sofreu uma redução expressiva no orçamento, refletindo a orientação neoliberal da gestão, que priorizou a diminuição da intervenção estatal no setor agrícola familiar e incentivou a expansão do agronegócio.
A agricultura familiar sofreu cortes orçamentários e restrições no acesso a recursos. As políticas direcionadas ao agronegócio visavam a expandir a produção e a exportação, enquanto a agricultura familiar enfrentou dificuldades para obter suporte na produção sustentável e na comercialização de seus produtos (Lerrer, 2024).
O investimento na agricultura familiar durante o governo Bolsonaro foi alvo de críticas devido à redução dos recursos destinados a programas de incentivo. Segundo o IBGE (2020), houve uma queda de 15% nos investimentos nesse setor em 2019, se comparado ao ano anterior. Além disso, cortes orçamentários em programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) impactaram negativamente a produção e a renda de agricultores/as familiares/as. Essa diminuição no financiamento comprometeu não apenas a segurança alimentar, mas também a geração de empregos e o desenvolvimento socioeconômico de comunidades rurais.
Em 2020, o total de recursos liberados para o crédito fundiário foi de aproximadamente R$350 milhões, representando uma redução de 40% em comparação aos anos anteriores. Houve também uma queda de 30% no número de contratos firmados, conforme os dados do Ministério da Agricultura (Brasil, 2020).
Nos dois primeiros anos do governo Lula, o PNCF passou por uma reformulação, com a revisão de metas e um aumento expressivo no orçamento destinado a financiamento. Como parte dos esforços para fortalecer o crédito fundiário, foi sancionada, em 2024, a criação do referido fundo garantidor, ampliando as possibilidades de acesso a crédito pela agricultura familiar, especialmente em regiões mais vulneráveis.
Brasil, (2023) reportou que o valor destinado ao PNCF para 2023 foi de R$1,2 bilhão, representando um aumento de 50% nos recursos para a política de reforma agrária em comparação ao período anterior. Esse acréscimo resultou em um crescimento de 60% no número de contratos firmados, atingindo cerca de 8.000 novas concessões de financiamento para famílias rurais. No Quadro 2, a seguir, apresentamos índices dos dois governos em análise, relativos a recursos liberados, número de contratos/famílias e área financiada.
Quadro 2– Comparação de índices entre os dois governos em análise

A análise dos dados apresentados no Quadro 2 permite observar diferenças significativas entre os dois governos no que se refere à execução do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), especialmente quanto aos recursos liberados, número de contratos firmados/famílias e área financiada.
Durante o governo Bolsonaro (2019–2022), percebe-se uma tendência de crescimento gradual nos três indicadores. Os recursos liberados saltaram de aproximadamente R$41,5 milhões em 2019 para R$145,7 milhões em 2022, representando um aumento de 251%. O número de contratos também cresceu, passando de 725 em 2019 para 1.178 em 2021, com uma leve queda em 2022 (1.159 contratos). A área financiada acompanhou esse crescimento, aumentando de 13.368 hectares em 2019 para 21.839 hectares em 2022.
No início do governo Lula (2023–2025), observa-se uma intensificação dos investimentos no programa. Em 2023, os recursos liberados atingiram R$ 236,6 milhões, o maior valor da série histórica, seguido por R$251 milhões em 2024. O número de contratos também foi significativamente maior em 2023 (1.659), refletindo uma retomada mais robusta dessa política de acesso à terra. A área financiada chegou a 32.260 hectares nesse mesmo ano, evidenciando o maior alcance do programa.
Além disso, conforme dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2022), indicam um aumento significativo no número de contratos e na área financiada pelo PNCF durante os dois primeiros anos do governo Lula. Comparado aos últimos anos da gestão Bolsonaro, houve um crescimento de mais de 200% no total de contratos firmados. Em 2023, foram entregues 1.542 novas áreas de terra a agricultores/as familiares, superando a meta inicial de 1.500 títulos estabelecida para o período. Esse desempenho representa o melhor resultado do programa nos últimos oito anos, refletindo uma priorização da ampliação dos índices da política nacional de crédito fundiário. O gráfico a seguir representa o desempenho dos dois governos, no que tange ao número de contratos efetivados.
PNCF: governos Bolsonaro vs Lula – 2019-2025

Esses dados demonstram diferenças no tratamento do PNCF nos dois períodos, evidenciando uma expressa mudança de enfoque, com o governo Lula priorizando um modelo mais inclusivo e voltado para a agricultura familiar, em oposição à política restritiva de Bolsonaro. O gráfico comparativo entre os governos de Jair Bolsonaro (2019–2022) e Luiz Inácio Lula da Silva (2023-2025) evidencia diferenças marcantes na condução da política de acesso à terra via Crédito Fundiário. Durante o governo Bolsonaro, observa-se uma redução contínua no número de contratos firmados, passando de aproximadamente 2.500 em 2019 para apenas 1.000 em 2022. Esse declínio reflete o esvaziamento institucional e orçamentário da política agrária nesse período, bem como o distanciamento do governo federal em relação aos movimentos sociais do campo e à pauta da reforma agrária. Em contraposição, a partir de 2023, com o retorno de Lula à presidência, percebe-se uma retomada da política de crédito fundiário, saltando para cerca de 8.000 contratos em 2023, e alcançando 9.000 em 2024. A projeção para 2025 é ainda mais significativa, com expectativa, segundo Brasil (2024), de 9.500 contratos firmados.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O PNCF consolidou-se como um instrumento na política de reforma agrária no Brasil, desde a implantação da política de crédito fundiário nos anos 1990. No entanto, sua implementação variou significativamente conforme as diretrizes políticas de cada um dos governos, influenciando diretamente o alcance e a efetividade do programa.
A análise comparativa entre os governos Bolsonaro e Lula, a partir de 2019 e 2025 (em curso), revelou abordagens distintas em relação ao Programa de Crédito Fundiário. Durante a gestão de Bolsonaro, observou-se uma redução no volume de recursos destinados ao programa, o que redundou na redução do número de usuários/as. A priorização do agronegócio em detrimento da agricultura familiar resultou em cortes significativos em programas complementares, como assistência técnica e financiamento de infraestrutura, dificultando a sustentabilidade das famílias assentadas. Além do mais, a Ênfase foi posta na regularização de lotes de terras.
Em contrapartida, o governo Lula tem adotado uma abordagem voltada para a ampliação do crédito fundiário, com aumento no volume de recursos, novas estratégias de financiamento e maior integração com outras políticas públicas voltadas à agricultura familiar. Essa mudança tem permitido um crescimento no número de contratos/famílias e maior suporte às famílias usuárias.
Os dados analisados indicam que a efetividade do PNCF está diretamente relacionada ao compromisso governamental com esta política concebida como de reforma agrária, orientada pelo mercado, cuja trajetória indica significativa continuidade no âmbito da política agrária no país, em detrimento de uma política de desapropriação de terras, o que revela a correlação de forças entre projetos de sociedade.
Mesmo no âmbito da política de crédito fundiário, demonstramos como diferentes governos, em seus diferentes ideários e compromissos políticos relativos a sociedades mais democráticas ou menos democráticas, operam uma política que se realiza nos marcos do mercado de terras e cujo futuro dependerá da continuidade das políticas não só de financiamento, mas também de suporte técnico a agricultores/as, extrapolando o limite de apenas o acesso à terra. Tudo isso aponta para o fato de que a reforma agrária continua sendo um desafio da ordem do dia no Brasil.
3Sobre a emergência política e analítica da categoria agricultura familiar, nos anos 1990, para significar o que denominava campesinato e pequena produção, ver Moraes (1998).
4Para melhor compreensão a respeito da questão agrária no Brasil, ver Carvalho (2010), sobre concentração fundiária e políticas agrárias recentes, e Delgado (2005), sobre evolução da questão agrária entre 1950 e 2003.
5Sobre os princípios da RAAM, ver Pereira (2012)
6O “projeto-piloto de reforma agrária e alívio da pobreza”, conhecido como projeto Cédula da Terra (PCT), originou-se do modelo de Reforma Agrária Assistida pelo Mercado (RAAM) do Banco Mundial (Bird), implementado a partir de 1994, em países como Colômbia, África do Sul, Guatemala e Filipinas. No Brasil, o PCT foi implantado em cinco Estados da federação (PE, BA, CE, MA e norte de MG), pela via da transação mercantil privada mediante financiamento público. Desse projeto-piloto derivaram-se outros como Banco da Terra e o Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural, criados em 1998 e 2002, e o Programa Nacional de Crédito Fundiário, criado em 2003 e que continua em vigência. (Pereira, 2012, p. 111).
7Criado pela Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998, o Fundo de Terras e da Reforma Agrária, conhecido como Banco da Terra.
8Integração formalizada pela Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998, que criou o Fundo de Terras e da Reforma Agrária e estabeleceu bases legais para a concessão de financiamentos a agricultores/as familiares sem acesso à terra ou com pouca terra. Em 2003, essa política foi ampliada pelo MDA, resultando na criação do PNCF, que passou a operacionalizar o acesso à terra com apoio técnico e financiamento subsidiado para aquisição, investimento e assistência técnica rural (Brasil, 1998)
9Fundo sancionado em 2024, pela Lei nº 15.034, de 27 de novembro de 2024. É um mecanismo financeiro criado para dar suporte ao PNCF e para facilitar o acesso ao crédito por parte de pequenos/as agricultores/as rurais. Nos termos governamentais, o fundo é uma das medidas para tornar o PNCF mais eficiente, buscando equilibrar o acesso à terra com a segurança econômica tanto para mutuários/as quanto para credores/as. Ver: www12.senado.leg.br
10As operações de crédito referem-se a um único beneficiário (família), dada a vedação de contratação de operações, coletivas desde 2013. https://lookerstudio.google.com/reporting/9f520911-f750-4b08-9a7d 9b87c2cf1273/page/tOjwD?s=jYRc_xrdep8. Acessado em: 20/06/2025.
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1Mestranda do Curso de Pôs Graduação em Política Públicas (PGPP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
E-mail: mariaraimundaana@hotmail.com
2Doutora em Ciências Sociais com Pós-doutorado em Sociologia, Mestrado em Sociologia e Especialização em Gestão da Cultura. Prof.ª: Associada da Universidade Federal do Piauí (UFPI) Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas/CCHL/UFPI (Doutorado e Mestrado). E-mail: mdione@uol.com.br