THE INFLUENCE OF MEDIA IN THE CONTEXT OF THE BRAZILIAN CRIMINAL PROCESS
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202511301840
Russell Lello de Miranda1
Everson Rodrigues de Castro2
RESUMO
O presente trabalho visa analisar a influência dos meios de comunicação no processo penal brasileiro, com ênfase no Tribunal do Júri, ou seja, o instituto jurídico responsável pelo julgamento de crimes dolosos contra a vida. Nesse prumo, reconhece-se que os veículos de comunicação desempenham papel central na sociedade contemporânea, funcionando como instrumentos essenciais de circulação de informações, formação da opinião pública e fortalecimento da cidadania. Entretanto, tem-se que a cobertura midiática de casos criminais de grande repercussão pode impactar diretamente a imparcialidade dos jurados, influenciando a percepção sobre acusados e vítimas e, consequentemente, comprometendo a efetividade e a justiça do julgamento. Com base na análise jurisprudencial, doutrinária e em casos de grande repercussão, conclui-se que, embora os meios de comunicação sejam instrumentos essenciais à liberdade de expressão e ao direito à informação, é necessário equilibrar essa função com a preservação dos direitos dos acusados e das vítimas. Destaca-se que cabe ao magistrado ponderar valores constitucionais, adotando medidas que assegurem julgamentos justos e equilibrados, incluindo o desaforamento em situações de intensa repercussão midiática. Há necessidade da adoção de análises individuais, além da ponderação de valores, direitos e princípios ali existentes. Quanto à metodologia, a pesquisa fundamenta-se em revisão bibliográfica, análise doutrinária e jurisprudencial, caracterizando-se como estudo de natureza qualitativa, alinhado ao campo teórico e à reflexão crítica sobre a interação entre mídia, sociedade e Justiça Penal.
Palavras-chave: Influência dos meios de comunicação. Tribunal do Júri. Processo Penal Brasileiro. Liberdade de expressão. Clamor público.
ABSTRACT
This paper aims to analyze the influence of the media on the Brazilian criminal process, with emphasis on the Jury Court, that is, the legal institution responsible for judging intentional crimes against life. In this context, it is recognized that the media plays a central role in contemporary society, functioning as essential instruments for the circulation of information, the formation of public opinion, and the strengthening of citizenship. However, it is observed that media coverage of high-profile criminal cases can directly impact the impartiality of jurors, influencing the perception of defendants and victims and, consequently, compromising the effectiveness and justice of the trial. Based on jurisprudential and doctrinal analysis, and on high-profile cases, it is concluded that, although the media are essential instruments for freedom of expression and the right to information, it is necessary to balance this function with the preservation of the rights of the accused and victims. It is noteworthy that it is up to the magistrate to weigh constitutional values, adopting measures that ensure fair and balanced trials, including the transfer of jurisdiction in situations of intense media repercussion. There is a need for individual analysis, in addition to weighing the values, rights, and principals involved. Regarding methodology, the research is based on bibliographic review, doctrinal and jurisprudential analysis, characterizing itself as a qualitative study, aligned with the theoretical field and critical reflection on the interaction between media, society, and criminal justice.
Keywords: Influence of the media. Jury trial. Brazilian Criminal Procedure. Freedom of expression. Public outcry.
1 INTRODUÇÃO
É amplamente reconhecido que os meios de comunicação exercem um papel central na sociedade contemporânea, funcionando como canais primordiais para a circulação de informações e possibilitando que notícias e acontecimentos alcancem um público amplo de maneira célere e eficaz. Além de sua função informativa, tais veículos contribuem significativamente para a formação da opinião pública, o fortalecimento da cidadania e o exercício do controle social, ao disponibilizar dados relevantes sobre política, economia, cultura e segurança pública. Nesse contexto, observa-se que a comunicação social se apresenta como ferramenta essencial para a transparência, democratização da informação e para a construção de uma sociedade mais participativa e crítica.
Entretanto, apesar de seu inegável valor, tem-se verificado um crescente debate doutrinário e jurisprudencial acerca da influência desses meios no âmbito do processo penal, especialmente no que concerne ao Tribunal do Júri, responsável pelo julgamento de crimes dolosos contra a vida. Diante desse panorama, surge uma problemática central: embora os veículos de comunicação desempenhem papel crucial na promoção do direito à informação e da liberdade de expressão, eles podem, simultaneamente, afetar a formação da convicção dos cidadãos e exercer influência sobre o julgamento do Conselho de Sentença?
Para responder a tais questionamentos e alcançar os objetivos gerais e específicos desta pesquisa, o estudo foi estruturado em capítulos. Inicialmente, aborda-se o sistema processual penal brasileiro, com ênfase em suas conceituações e elementos fundamentais. Em seguida, examina-se o Tribunal do Júri, seus princípios norteadores, as bases normativas aplicáveis e os crimes de sua competência, permitindo uma análise aprofundada de seu funcionamento e relevância social.
Posteriormente, a pesquisa se dedica à análise dos meios de comunicação, explorando conceitos contemporâneos, a liberdade de informação jornalística e as transformações ocorridas no século XXI, incluindo o impacto das “Fake News” e das chamadas “Clickbaits”. O capítulo central examina, de maneira crítica, os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca da influência da mídia no processo penal brasileiro, especialmente no contexto do julgamento de crimes dolosos contra a vida.
Além disso, tem-se que o estudo contempla a análise de casos criminais de grande repercussão midiática, evidenciando como a cobertura dos meios de comunicação pode afetar percepções, decisões judiciais e o exercício da imparcialidade no Tribunal do Júri.
Quanto à metodologia, ressalta-se que a pesquisa se fundamenta em uma revisão bibliográfica, análise doutrinária e jurisprudencial, caracterizando-se como estudo de natureza qualitativa, alinhado ao campo teórico e à reflexão crítica sobre a interação entre a mídia, a sociedade e a Justiça Penal.
2 O SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO: ANÁLISE CONCEITUAL E ELEMENTOS PREPONDERANTES
Compreende-se, inicialmente, que o denominado “sistema processual penal brasileiro” se refere a um acervo de normas que regulamentam e determinam todos os atos de um processo legal, além das penas que podem ser impostas e também as modalidades de responsabilização penal do agente infrator (Nucci, 2023). Nesse prumo, consoante Campos (2019), o Processo Penal se trata de um ramo autônomo, oriundo do Direito Público, que possui como finalidade precípua a regulamentação e definição dos meios punitivos que podem ser utilizados pelo ente público, em prol da manutenção da ordem pública e da incolumidade de pessoas e bens.
Acerca desse assunto, complementa o autor em comento:
Direito processual penal é um complexo de princípios e normas que constituem o instrumento técnico necessário à aplicação do Direito Penal, regulamentando o exercício da jurisdição pelo Estado-juiz, por meio do processo, os institutos da ação e da defesa, além da investigação criminal pela polícia judiciária, através de inquérito policial, ou por outro órgão público, também legitimado em lei, a investigar através de procedimentos investigatórios diversos (Campos, 2019, p. 65).
Nesse aspecto de análise, Rangel (2023) ressalta que o direito processual abarca os denominados “sistemas processuais penais”, com uma atuação desde a fase investigatória até o procedimento de julgamento do acusado. Em resumo há um “conjunto de princípios e regras constitucionais e processuais penais, de acordo com o regime político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do direito penal a cada caso concreto” (Rangel, 2023, p. 154).
Conforme o entendimento de Nucci (2023), existem três sistemas processuais penais que podem ser utilizados por ordenamentos jurídicos, quais sejam o sistema inquisitivo, acusatório e misto. Desse modo, conforme o autor citado, hodiernamente não existe a possibilidade de utilização de apenas um desses sistemas de forma isolada, haja vista que poderiam comprometer todo esse processo penal, bem como mitigar as garantias, direitos e valores atinentes aos acusados (Nucci, 2023).
Em relação ao sistema “inquisitivo”, tem-se que ele é proveniente da Idade Média, durante a monarquia, tendo como fim precípuo o combate aos abusos praticados pela aristocracia em detrimento das classes mais desfavorecidas. Havia, sobremodo, uma transferência da responsabilidade punitiva das mãos dos particulares para o próprio Estado, ou seja, a persecução penal propriamente dita:
O sistema inquisitivo surgiu nos regimes monárquicos e se aperfeiçoou durante o direito canônico, passando a ser adotado em quase todas as legislações europeias dos séculos XVI, XVII e XVIII. O sistema inquisitivo surgiu após o acusatório privado, com sustento na afirmativa de que não se poderia deixar que a defesa social dependesse da boa vontade dos particulares, já que eram estes que iniciavam a persecução penal. O cerne de tal sistema era a reivindicação que o Estado fazia para si do poder de reprimir a prática dos delitos, não sendo mais admissível que tal repressão fosse encomendada ou delegada aos particulares (Rangel, 2023, p. 66).
Conforme a compreensão de Rangel (2023), transferir a responsabilidade da persecução penal para o Estado foi a única alternativa viável na época, uma vez que a aplicação de punições dependia exclusivamente do interesse da vítima. Essa prática resultava, frequentemente, em impunidade ou tornava o acesso à justiça excessivamente custoso. Cabe destacar ainda que esse período foi fortemente marcado pela influência da Igreja Católica na esfera estatal, especialmente no que se refere à repressão de condutas consideradas heréticas. Essa influência contribuiu diretamente para a consolidação do sistema inquisitório. No século XIII, por exemplo, foi criado o Tribunal da Inquisição, também conhecido como Santo Ofício, com o objetivo de combater comportamentos que contrariassem os dogmas da Igreja. Os julgamentos eram realizados por membros da própria comunidade, sob juramento de fidelidade à fé (Rangel, 2023).
De forma complementar ao exposto, aduz Lopes Júnior (2023) acerca da forma de escolha dos julgadores e das comissões destinadas a esse fim:
Inicialmente, eram recrutados os fiéis mais íntegros para que, sob juramento, se comprometessem a comunicar as desordens e manifestações contrárias aos ditames eclesiásticos que tivessem conhecimento. Posteriormente, foram estabelecidas as comissões mistas, encarregadas de investigar e seguir o procedimento (Lopes Júnior, 2023, p. 415).
Salienta-se que Durante esse período, o sistema inquisitivo caracterizava-se pela centralização total do processo penal nas mãos de uma única autoridade: o juiz inquisidor. Ele não apenas proferia a decisão final, como também assumia o papel de acusador e, em muitas situações, o de defensor. Todo o procedimento era conduzido de ofício, sem a participação ativa das partes. A ausência de distinção clara entre acusação e defesa impedia o exercício do contraditório e da ampla defesa. Dessa forma, o acusado não era tratado como sujeito de direitos, mas sim como um objeto do processo, sem qualquer garantia de proteção jurídica (Lopes Júnior, 2023).
É importante destacar que outra característica marcante desse modelo processual era o sigilo absoluto em que se desenvolviam os procedimentos, completamente afastados do conhecimento público. O processo ocorria por meio de registros exclusivamente escritos, sem qualquer possibilidade de debates orais. Essa ausência de transparência acentuava ainda mais a parcialidade do julgamento, já que, além da falta de publicidade, muitos dos acusados eram analfabetos ou sequer tinham acesso ao conteúdo do processo que os envolvia (Rangel, 2023).
No que diz respeito à produção de provas, Rangel (2023) aduz que prevalecia o sistema da prova tarifada, em que o valor das evidências era previamente determinado pela norma. A confissão do réu era tida como a mais importante de todas, sendo chamada de “rainha das provas”. Cabia ao próprio ente público conduzir a colheita probatória, tanto na fase investigativa quanto durante o processo, assumindo simultaneamente o papel de quem buscava os fatos e de quem os julgava.
Acerca desses elementos que permeiam o sistema inquisitivo, preleciona Lopes Júnior (2023):
Isso retrata bem o substancialismo e a ausência de limites do sistema inquisitório, que está por detrás da própria busca da mitológica (e sempre inalcançável) verdade real. No processo penal inquisitório conta o resultado obtido (condenação) a qualquer custo ou de qualquer modo, até porque quem vai atrás da prova e valora sua legalidade é o mesmo agente (que ao final ainda julgará). Não há nenhum exagero ao se afirmar que o sistema inquisitório busca um determinado resultado (condenação). Basta compreender como funciona sua lógica (Lopes Júnior, 2023, p. 425).
Segundo o entendimento de Lopes Júnior (2023), atualmente, embora o modelo inquisitivo ainda esteja presente em diversas etapas da persecução penal ao redor do mundo, no Brasil sua aplicação se limita à fase pré-processual, ou seja, a fase de investigação criminal. Nessa etapa, a atuação é conduzida pela Polícia Judiciária, responsável por reunir indícios e provas iniciais. Trata-se, portanto, de um procedimento de natureza administrativa, voltado à verificação preliminar da autoria, da materialidade e das circunstâncias do fato delituoso. Somente após essa fase é que, se presentes os elementos necessários, a investigação é convertida em peça acusatória e encaminhada ao Poder Judiciário.
Quanto ao denominado “sistema acusatório”, tem-se que ele teve origem no âmbito do direito grego, tendo como característica precípua a participação popular, momento em que os cidadãos atuavam como acusadores e julgadores. Nessa época predominava “[…] o sistema o sistema de ação popular para os delitos graves (qualquer pessoa podia acusar) e acusação privada para os delitos menos graves, em harmonia com os princípios do direito civil.” (Lopes Júnior, 2023, p. 428).
Outrossim, tem-se que o sistema acusatório na seara do direito romano era visto sob duas modalidades, quais sejam, o processo penal “cognitio” e o “acusatio”. Compreende-se que o “cognitio” concedia maiores poderes ao julgador, haja vista que esse poderia compreender os fatos e acontecimentos processuais da sua forma, havendo possibilidade de recurso de anulação por intermédio dos jurisdicionados. Por outro lado, através do “acusatio”, a função de acusar era destinada ao povo. Naquela situação, tem-se que “[…] “eram encomendados a um órgão distinto do juiz, não pertencente ao Estado, senão a um representante voluntário da coletividade (acusador)” (Lopes Júnior, 2023, p. 430). Segundo o autor em comento, o rompimento desse sistema processual deu-se em decorrência da ausência de repressão efetiva aos crimes cometidos, abrindo espaço para atos de vingança e de julgamentos extremamente parciais (Lopes Júnior, 2023).
Segundo o entendimento de Lopes Júnior (2023), com o passar do tempo, o modelo inquisitivo foi gradualmente se consolidando, enquanto o sistema acusatório foi perdendo espaço, em grande parte por influência do processo penal canônico e da Inquisição Espanhola, que apresentou sua faceta mais severa e violenta no final do século XII. Apenas com a Revolução Francesa, no século XVIII, e com a ascensão de ideias que exaltavam a dignidade humana, é que se iniciou o abandono definitivo dos métodos cruéis de punição por parte do Estado (Lopes Júnior, 2023).
É importante ressaltar que o sistema acusatório se distingue profundamente do inquisitório, sobretudo pela clara divisão entre as funções de acusar e julgar. Nesse modelo, assegura-se ao réu o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa. Além disso, a instauração da ação penal deixa de ser promovida de ofício, passando a ser responsabilidade de um órgão específico instituído pelo Estado:
No sistema acusatório é que o processo penal encontra sua expressão autêntica e verdadeira, uma vez que ali há o actus trium personarum que caracteriza a relação processual e o juízo penal: há acusação (pública ou privada), a defesa (exercida pelo réu) e o julgamento, com o juiz penal atuando jurisdicionalmente (Marques apud Nucci, 2023, p. 51).
Acerca das demais características do modelo acusatório, preleciona Lopes Júnior (2023):
O processo penal acusatório caracteriza-se, portanto, pela clara separação entre juiz e partes, que assim deve se manter ao longo de todo o processo (por isso de nada serve a separação inicial das funções se depois permitese que o juiz atue de ofício na gestão da prova, determine a prisão de ofício etc.) para garantia da imparcialidade (juiz que vai atrás da prova está contaminado, prejuízo que decorre dos pré-juízos, como veremos no próximo capítulo) e efetivação do contraditório. A posição do julgador é fundada no ne procedat iudex ex officio, cabendo às partes, portanto, a iniciativa não apenas inicial, mas ao longo de toda a produção da prova. É absolutamente incompatível com o sistema acusatório (também violando o contraditório e fulminando com a imparcialidade) a prática de atos de caráter probatório ou persecutório por parte do juiz (Lopes Júnior, 2023, p. 431).
Por outro lado, tem-se que o modelo processual híbrido é fortemente marcado por elementos tanto do sistema inquisitivo quanto do acusatório. De acordo com Paulo Rangel (2023, p. 70), essa influência decorre das particularidades históricas inerentes a cada um desses sistemas. O autor justifica sua origem apontando que, no sistema acusatório, nem sempre o indivíduo possuía meios para acionar o Estado, seja por falta de interesse, seja por limitações financeiras que impossibilitavam arcar com os custos de um processo judicial. Em outras situações, quando o fazia, era muitas vezes movido por sentimento de vingança pessoal. Ao final, o autor conclui:
Nesse caso, continuava nas mãos do Estado a persecução penal, porém feita na fase anterior à ação penal e levada a cabo pelo Estado-juiz. As investigações criminais eram feitas pelo magistrado com sérios comprometimentos de sua imparcialidade, porém a acusação passava a ser feita, agora, pelo Estado-administração: o Ministério Público (Rangel, 2023, p. 70).
Nesse sentido Lopes Júnior (2023), conhecido por sua posição crítica em relação ao chamado sistema processual misto, defende que, na realidade, todos os sistemas possuem traços híbridos, sendo os modelos “puros”, tanto o acusatório quanto o inquisitório, meras construções históricas de referência. Para o autor em comento, limitar a definição do sistema acusatório apenas à separação formal entre as funções de acusar e julgar é insuficiente. Ele ainda ressalta:
Por ser misto, é crucial analisar qual o núcleo fundante para definir o predomínio da estrutura inquisitória ou acusatória, ou seja, se o princípio informador é o inquisitivo (gestão da prova nas mãos do juiz) ou acusatório (gestão da prova nas mãos das partes);. a noção de que a (mera) separação das funções de acusar e julgar seria suficiente e fundante do sistema acusatório é uma concepção reducionista, na medida em que de nada serve a separação inicial das funções se depois se permite que o juiz tenha iniciativa probatória, determine de ofício a coleta de provas (v.g. art. 156), decrete de ofício a prisão preventiva, ou mesmo condene diante do pedido de absolvição do Ministério Público (problemática do art. 385) (Lopes Júnior, 2023, p. 434).
Outrossim, tem-se que o sistema processual misto não se resume apenas às etapas fixas classificadas pela doutrina; ele se molda conforme a aplicação concreta da legislação processual penal, podendo, por isso, assumir características mais próximas do modelo inquisitivo ou do acusatório, a depender do caso. De modo geral, observa-se uma predominância de traços inquisitivos na fase inicial do procedimento, mas a partir do recebimento da denúncia, a condução do processo pode adotar um perfil distinto. Com as transformações trazidas pela Constituição Federal de 1988 e, mais recentemente, pela Lei nº 13.964/2019, observa-se uma inclinação no sentido de enfraquecer o modelo misto, reforçando elementos típicos do sistema acusatório (Lopes Júnior, 2023).
Do mesmo modo, tem-se que a estrutura e a natureza dos sistemas processuais sempre estiveram diretamente ligadas ao contexto político de sua época. Conforme explica Rangel (2023), quanto mais autoritário é o regime estatal, maiores são as restrições impostas aos direitos dos acusados. Por outro lado, em um Estado Democrático de Direito, as garantias individuais e os direitos fundamentais tendem a ser plenamente reconhecidos e efetivados (Rangel, 2023).
Hodiernamente, ressalta-se que existem conflitos doutrinários e jurisprudenciais acerca do modelo adotado pelo ordenamento jurídico pátrio. Boa parte da doutrina aponta que o modelo atualmente adotado no Brasil é o sistema misto, no qual predominam características inquisitivas na fase pré-processual e elementos do sistema acusatório na fase judicial propriamente dita. No entanto, Lopes Júnior (2023), um dos principais críticos da concepção de um sistema processual misto, sustenta que o processo penal brasileiro ainda permanece essencialmente inquisitório. Por outro lado, para Nucci (2023), o país adota um sistema acusatório atenuado ou mitigado.
Tem-se que esse desacordo doutrinário se intensificou após as alterações trazidas pela Lei nº 13.964/2019, o chamado “Pacote Anticrime”, o que contribuiu ainda mais para a ausência de um consenso definitivo sobre qual sistema processual, de fato, rege o processo penal brasileiro na atualidade (Nucci, 2023).
Consoante o entendimento de Carvalho (2022), o sistema inquisitivo detém predominância na seara judiciária brasileira:
Em síntese, está assegurado constitucionalmente, pelo princípio da dignidade, um direito processual que confira ao acusado o direito a ser julgado de forma legal e justa, um direito a provar, contraprovar, alegar e defender-se de forma ampla, em processo público, com igualdade de tratamento em relação à outra parte da relação processual, bem como que a gestão da prova não seja deferida ao julgador, sob pena de retorno ao sistema inquisitivo. Geraldo Prado também comunga da tese de que o sistema acusatório foi adotado pela Constituição, embora sem explicitação. Mas, como alerta o autor, ainda prevalece no Brasil a teoria da aparência acusatória, diante das práticas judiciais ainda fortemente influenciadas por um sistema inquisitivo que domina o Código de Processo Penal (Carvalho, 2022, p. 71).
Por outro lado, Nucci (2023) assevera que a falta de estipulação acerca do regime acusatório no âmbito da Magna Carta de 1988, possibilita que haja uma utilização mitigada dessa modalidade:
O sistema adotado no Brasil era o misto; hoje, após a reforma realizada pela Lei 13.964/2019, é o acusatório mitigado. Na Constituição Federal de 1988, foram delineados vários princípios processuais penais, que apontam para um sistema acusatório; entretanto, como mencionado, indicam um sistema acusatório, mas não o impõem, pois quem cria, realmente, as regras processuais penais a seguir é o Código de Processo Penal (Nucci, 2023, p. 42).
Destaca-se, nesse contexto, que Lopes Júnior (2023) sustenta não ser viável conceber a existência de um verdadeiro sistema processual “misto”, uma vez que, segundo ele, todos os modelos já nascem com traços híbridos, de acordo com sua estrutura fundamental. Na visão do autor, até o ano de 2020, ou seja, antes da entrada em vigor do Pacote Anticrime, o sistema processual penal brasileiro era predominantemente inquisitório, ou mesmo neoinquisitório.
De outro modo, consoante Nucci (2023), o ordenamento jurídico pátrio distancia-se de um sistema acusatório puro, haja vista que não há possibilidade de se considerar apenas o conteúdo presente no âmago da Magna Carta de 1988:
Por tal motivo, já tivemos a oportunidade de dizer que, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal, em particular, elegendo determinados incisos do art. 5.º, poder-se-ia dizer que o sistema de persecução penal brasileiro seria o acusatório puro algo ainda distante da realidade (Nucci, 2023, p. 43).
Portanto, segundo Nucci (2023), percebe-se que o processo de consolidação de um verdadeiro sistema acusatório no âmbito do direito processual penal brasileiro, conforme previsto pela Magna Carta de 1988, ainda enfrenta um percurso longo e complexo. Isso se deve, em grande medida, ao conservadorismo presente em setores do ordenamento jurídico, incluindo parte da magistratura, da doutrina e da própria sociedade. Há uma resistência significativa, especialmente diante de inovações como a implementação do juiz das garantias, frequentemente criticada sob o argumento de que impõe maiores encargos financeiros ao Estado.
2.1 O Tribunal do Júri: Conceitos essenciais e bases normativas
Inicialmente, entende-se que o Tribunal do Júri, também conhecido como Conselho de Sentença, configura uma instituição permanente dentro do sistema jurídico brasileiro, destinada primordialmente ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida, sejam eles tentados ou consumados, conforme disciplinado nos artigos 121 a 128 do Código Penal (BRASIL, 1940). Nesse cenário, a existência e a garantia desse instituto encontram fundamento no artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal de 1988, que dispõe:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…] XXXVIII – e reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida […] (Brasil, 1988).
Ressalta-se que o Conselho de Sentença possui origem remota, com referências históricas tanto na Grécia quanto em Roma. Além disso, diversos autores, como Jesus (2021) e Lopes Júnior (2023), apontam que sua primeira configuração mais estruturada aparece na Magna Carta inglesa de 1215, sendo a Revolução Francesa de 1789 considerada o marco mais próximo do modelo atual (Távora, 2018).
Embora existam divergências quanto à sua origem exata, prevalece na doutrina o entendimento de que o Tribunal do Júri teve início na Inglaterra. À época, era conhecido como “Tribunal Popular”, formado pelos chamados “homens bons da comunidade”, que se reuniam para julgar seus semelhantes, especialmente aqueles acusados de infrações menores, práticas de bruxaria ou atos ligados ao misticismo:
A doutrina dominante, entretanto, entende que sua origem remonta à época em que o Concílio de Latrão aboliu os ordálias ou Juízos de Deus. Àquela época, enquanto surgia na Europa continental o processo inquisitivo, na Inglaterra passou a florescer o júri, instituição que os ingleses adotaram em substituição às ordálias, e que constituía um velho costume normando: os homens bons da comunidade se reuniam para, sob juramento, julgar o cidadão acusado de cometer um crime (Tourinho Filho, 2018, p. 409).
Nesse cenário, conforme explica Nucci (2023), o Tribunal do Júri teve sua primeira regulamentação no Brasil com a Lei de 18 de junho de 1822, sendo mais tarde incorporado à Constituição do Império. Inicialmente, sua competência restringia-se ao julgamento de delitos relacionados à imprensa. Com o passar do tempo, contudo, o âmbito de atuação da instituição foi ampliado, passando a incluir tanto matéria criminal quanto questões de natureza cível.
Atualmente, conforme observa Nucci (2023), o Tribunal do Júri assume papel de destaque, especialmente por representar uma garantia essencial do devido processo legal e por funcionar como o instrumento legítimo para a eventual retirada da liberdade de quem pratica homicídio. Além disso, o Júri oferece à sociedade a oportunidade de participar diretamente da atividade jurisdicional, permitindo que o cidadão comum integre o processo de julgamento:
Trata-se de uma garantia ao devido processo legal, este sim, uma garantia ao direito de liberdade. Assim, temos a instituição do Júri, no Brasil, para constituir o meio adequado de, em sendo o caso, retirar a liberdade do homicida. Nada impede a existência de garantia da garantia, o que é perfeitamente admissível, bastando ver, a título de exemplo, que o contraditório é também garantia do devido processo legal. […] as pessoas têm direito a um julgamento justo feito por um tribunal imparcial, assegurada a ampla defesa […]. Por outro lado, não deixamos de visualizar no júri, em segundo plano, um direito individual, consistente na possibilidade que o cidadão de bem possui de participar, diretamente, dos julgamentos do Poder Judiciário (Nucci, 2023, p. 759).
No que se refere à natureza jurídica do Tribunal do Júri, Silva (2004 apud Campos, 2019) aponta que essa instituição possui caráter dual. Em outras palavras, o Conselho de Sentença funciona, ao mesmo tempo, como um instrumento, já que detém o poder de decidir sobre a liberdade de um indivíduo, e como um direito coletivo, por meio do qual os cidadãos participam ativamente da administração da justiça e da preservação da ordem social. Complementando essa visão, Campos (2019) afirma que “ […] sem júri o Brasil teria uma democracia incompleta, manca, aleijada, uma meia democracia, em que o povo teria sua vontade representada no Legislativo e no Executivo, mas esquecida no Judiciário” (Campos, 2019, p. 06).
Adicionalmente, Nucci (2023) salienta que o Tribunal do Júri configura um procedimento de natureza especial, na medida em que o julgamento e a valoração dos elementos do processo são realizados por membros da comunidade, e não por um juiz togado, como ocorre nas demais infrações previstas na legislação brasileira. Assim, ao confiar tal responsabilidade aos cidadãos, o legislador buscou ampliar a participação popular no sistema de justiça e garantir decisões mais legítimas e democráticas nos casos que envolvem crimes dolosos contra a vida.
2.1.1 Princípios norteadores
No âmbito da análise constitucional, observa-se que diversos princípios fundamentais orientam o funcionamento do Tribunal do Júri. Nesse sentido, Bulos (2023) destaca que os princípios desempenham papel indispensável na estrutura jurídica contemporânea, funcionando como verdadeiros mandamentos de otimização, capazes de orientar a aplicação das normas e suprir as lacunas existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Da mesma forma, Plácido e Silva (2016) afirmam que tais princípios se encontram implícitos nas próprias normas, servindo como bases estruturantes para a atuação dos operadores do Direito.
Considerando que os princípios constituem pilares essenciais da ordem jurídica, destacam-se, no contexto do Tribunal do Júri, aqueles que lhe são diretamente aplicáveis: o devido processo legal, a presunção de inocência, o princípio do juiz natural, a publicidade, a busca da verdade real, o livre convencimento, a oficialidade, a disponibilidade, a oportunidade, a indisponibilidade, a legalidade e a imparcialidade.
Embora todos sejam relevantes, faz-se necessário concentrar a análise, de modo específico, nos princípios da presunção de inocência, da imparcialidade e da publicidade, dada sua íntima relação com a dinâmica do Júri.
Salienta-se que o princípio da presunção de inocência, por exemplo, encontra previsão expressa no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, que estabelece:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…] LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória […] (Brasil, 1988).
Assim, conforme expõe Lima (2016), o princípio da presunção de inocência estabelece que ninguém pode ser considerado culpado antes da existência de uma decisão definitiva, já transitada em julgado, que reconheça sua responsabilidade penal. Tal garantia está diretamente vinculada ao devido processo legal, bem como aos princípios da ampla defesa e do contraditório.
Além disso, o princípio em questão desdobra-se em duas regras fundamentais: a regra probatória e a regra de tratamento. A primeira corresponde ao postulado “in dubio pro reo”, segundo o qual o ônus de provar a acusação recai exclusivamente sobre quem a formula, devendo qualquer dúvida beneficiar o réu. A segunda determina que nenhuma pessoa pode ser tratada como culpada até que haja decisão judicial definitiva (Lima, 2016).
Nesse mesmo sentido, Lima (2016) reforça que o “in dubio pro reo” está intrinsecamente ligado à presunção de inocência, pois deve orientar a análise das provas sempre que persistir alguma incerteza capaz de influenciar o julgamento. Assim, caso o processo termine sem plena convicção sobre a autoria ou sobre fatos essenciais, torna-se obrigatória a aplicação desse princípio, garantindo-se uma decisão alinhada aos direitos fundamentais do acusado.
Cabe mencionar que essa garantia é reforçada pelo artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e também pelo artigo 283 do Código de Processo Penal, que dispõe: “Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado […]” (Brasil, 1941).
No tocante ao princípio da imparcialidade, observa-se que ele permeia tanto o processo penal quanto o processo civil, impondo ao Estado o dever de atuar sem predisposição favorável a qualquer das partes (Dias, 2020). Para Dias (2020), a imparcialidade pode ser compreendida como uma forma de independência judicial, razão pela qual a Constituição de 1988, em seu artigo 95, estabelece garantias específicas aos magistrados, protegendo-os de pressões externas e assegurando que possam exercer sua função com autonomia. A autora complementa afirmando que:
Com relação às prerrogativas concedidas aos magistrados, citada acima, que objetivam garantir sua imparcialidade, o legislador ordinário, prevendo a ocorrência de um possível desrespeito a tais normas definiu situações em que o magistrado estaria impedido de atuar em determinadas causas, justamente pela ausência de capacidade subjetiva (Dias, 2020, online).
Ressalta-se que o princípio da imparcialidade constitui elemento indispensável ao Estado Democrático de Direito, pois determina que o magistrado conduza o julgamento com ética e neutralidade. Dessa forma, contribui para o fortalecimento da legitimidade do Poder Judiciário, garantindo a adequada prestação dos serviços públicos e a efetivação dos valores que sustentam o sistema de justiça (Novo, 2019).
Tem-se, do mesmo modo, que o princípio da publicidade, por sua vez, está diretamente relacionado tanto à atuação estatal quanto ao direito processual penal. Ele encontra fundamento na Constituição Federal de 1988, especialmente no artigo 5º, inciso LX, que estabelece que “[…] a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem […]” (Brasil, 1988).
Nessa linha, Aras (2001) assinala que a publicidade constitui uma garantia individual destinada a assegurar que os processos cíveis e penais, em regra, sejam acessíveis ao público, evitando abusos e equívocos na atuação do Poder Judiciário.
Em outras palavras, visa-se garantir transparência na prática dos atos processuais, reforçando a confiança da sociedade na administração da justiça.
Além dessa previsão, cabe mencionar que o princípio da publicidade também está consagrado no artigo 5º, inciso XXXIII, da Constituição de 1988, que assegura a todos o direito de “[…] receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral […]” (Brasil, 1988).
A partir dessas bases, compreende-se que o princípio em análise se expressa por meio de duas modalidades: a publicidade geral ou plena, aplicável à totalidade dos processos judiciais; e a publicidade especial, que restringe o acesso às informações às partes ou a seus representantes legais, especialmente quando envolverem direitos de caráter individual (Bulos, 2023).
No tocante às exceções ao princípio da publicidade, Aras (2001) explica que:
Para evitar esses abusos midiáticos, em certas causas e situações há exceções ao princípio da publicidade plena, como quando a divulgação da informação ou diligência represente risco à defesa do interesse social ou do interesse público; à defesa da intimidade, imagem, honra e da vida privada das partes; e à segurança da sociedade e do Estado. Exemplos dessas restrições estão no: a) art. 792 e §1º, do CPP (caso genérico); b) arts. 476 e 481 do CPP (votação no júri); c) art. 217 do CPP (retirada do réu); d) art. 748 do CPP (registro da reabilitação); e) art. 20 do CPP (sigilo no inquérito policial); f) art. 202 da Lei das Execuções Penais; g) art. 3º da Lei Federal n.9.034/95 (Aras, 2001, online).
Dessa forma, Aras (2001) observa que, apesar da relevância indiscutível do princípio da publicidade, é necessária a manutenção de determinadas exceções a ele. Essas restrições visam garantir a efetividade de outros princípios e direitos fundamentais, permitindo que certos atos sejam conduzidos de forma reservada. Entre essas exceções, destaca-se o sigilo das votações no âmbito do Tribunal do Júri, previsto tanto no artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “b”, da Constituição Federal de 1988, quanto no artigo 485 do Código de Processo Penal.
2.1.2 Crimes de competência do tribunal do júri
No que se refere aos crimes de competência do Conselho de Sentença, verifica-se que o Tribunal do Júri é responsável pelo processamento e julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Entre eles, incluem-se: o homicídio doloso, conforme disposto no artigo 121, §§ 1º e 2º, do Código Penal; o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, previsto no artigo 122; o infanticídio, previsto no artigo 123; e os crimes de aborto, regulados pelos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal. Além disso, a competência do Tribunal do Júri é reafirmada pelo artigo 74, §1º, do Código de Processo Penal, que estabelece:
Art. 74. A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri. § 1º Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados (Brasil, 1941).
Dessa forma, verifica-se que a competência do Conselho de Sentença para processar e julgar os crimes sob sua alçada é taxativa e mínima, constituindo-se como uma cláusula pétrea, não sujeita a restrições, conforme dispõe o artigo 60, §4º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988. Nesse contexto, o Tribunal do Júri, segundo Nucci (2023), limita-se ao processamento e julgamento dos delitos previamente definidos, não abrangendo outros crimes comuns que resultem em morte, como é o caso do latrocínio.
De forma supletiva, Lopes Júnior (2023) ressalta que, embora a competência do Júri seja originalmente delimitada, é possível sua extensão em situações de conexão ou continência entre crimes.
Adicionalmente, Lima (2016) destaca que o Código de Processo Penal, por meio do artigo 81, parágrafo único, prevê hipóteses de exclusão da competência do Conselho de Sentença, como nos casos de desclassificação do delito, impronúncia ou absolvição sumária. Nessas situações, caberá ao magistrado comum conduzir o julgamento. Vale ressaltar que, se houver exclusão da competência do Júri em razão de crime conexo, essa exclusão se estenderá também ao julgamento do referido crime.
Portanto, consoante Lima (2016), o Tribunal do Júri se estrutura a partir de princípios próprios e possui uma esfera de competência especial, restrita aos crimes dolosos contra a vida. Nesse sentido, torna-se imprescindível aprofundar a compreensão sobre os demais elementos que caracterizam e regulam essa instituição.
3 A MÍDIA: DEFINIÇÃO E OS CRITÉRIOS RELEVANTES
Compreende-se que, desde os tempos remotos, a comunicação se configura como uma necessidade essencial ao ser humano, estando profundamente ligada à sua própria natureza. Aristóteles, por intermédio da obra denominada “Ética a Nicômaco”, já afirmava que o homem é um ser naturalmente voltado à vida em comunidade, sendo nesse convívio social que encontra a plena realização de seu bem. Nessa perspectiva, a comunicação se revela como elemento indispensável para a organização e a continuidade da vida coletiva (Mandel, 2019).
Amparando-se nessa mesma linha filosófica, Sousa (2021) destaca que o ser humano é, por excelência, um ser social. Desde os primórdios, as comunidades primitivas dependiam da comunicação para garantir sua sobrevivência, estabelecendo laços e trocas que asseguravam a vida em grupo. Tal constatação evidencia que o impulso comunicativo é inerente ao homem, constituindo condição vital para sua existência em sociedade (Sousa, 2021).
Ademais, consoante Sousa (2021), os antepassados desenvolveram variadas formas de expressão para superar as limitações comunicativas, registrando e transmitindo ideias por meio de desenhos e símbolos. Com o passar do tempo, esses sistemas foram se aperfeiçoando até culminarem na criação da escrita, considerada um divisor de águas na trajetória da humanidade e um dos fundamentos da comunicação social.
Outrossim, tem-se que diversos fatores contribuíram para que a comunicação alcançasse a relevância que possui atualmente. Entre eles, a escrita figura como um dos elementos centrais, servindo de base histórica para o desenvolvimento dos meios comunicacionais. Sousa (2021) aponta, ainda, que transformações como a Revolução Industrial, marcada por ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, o avanço do liberalismo político, a urbanização e o crescimento do turismo foram determinantes para a consolidação da comunicação moderna.
Em uma perspectiva mais recente, destaca-se a chamada Terceira Revolução Industrial, ou Revolução Técnico-Científica. De acordo com Mandel (2019), esse processo teve início na década de 1940, nos Estados Unidos, com o surgimento da energia nuclear. Compreende-se que Mandel (2019) caracteriza essa fase como o período do capitalismo tardio, responsável por desencadear mudanças profundas e aceleradas nas esferas social, tecnológica e produtiva.
Destaca-se do mesmo modo, conforme Mandel (2019), que a Segunda Guerra Mundial atuou como catalisadora para o avanço das tecnologias, em virtude das necessidades bélicas. Dessa época datam os primeiros computadores eletrônicos, que posteriormente impulsionaram o desenvolvimento das redes digitais. A popularização da internet e o aperfeiçoamento dos softwares e navegadores transformaram-se em marcos decisivos para a interconexão global e para o fortalecimento da comunicação contemporânea. Assim, inaugura-se uma nova era, caracterizada pela intensificação da globalização e pela rápida evolução tecnológica.
As mudanças constantes que permeiam o campo tecnológico e social geram transformações igualmente intensas na comunicação, na produção e nas formas de interação humana. Embora essas inovações impulsionem o progresso, elas também impõem a necessidade de atualização contínua dos modelos tradicionais para acompanhar o ritmo acelerado das transformações. Nesse contexto, conforme observa Sousa (2021), a comunicação exerce um papel paradoxal: ao mesmo tempo em que sustenta e fortalece as estruturas sociais, também pode atuar como força de ruptura, refletindo sua natureza ambígua no cenário contemporâneo (Mandel, 2019).
Para compreender plenamente o papel da mídia nesse processo, é fundamental considerar os diversos sentidos atribuídos ao termo. Segundo Sousa (2021), a mídia pode ser entendida como o principal meio de difusão de informações, responsável por transmitir conteúdo de um emissor a um receptor sobre diferentes temas e acontecimentos.
De outro modo, segundo uma definição presente nos dicionários hodiernos, o conceito de “mídia” abarca todos os suportes e mecanismos para fins de difusão das informações e acontecimentos, atuando como um instrumento intermediário entre o transmissor desse conteúdo e seus receptores:
Todo suporte de difusão da informação constitui um meio intermediário de expressão capaz de transmitir mensagens; meios de comunicação social de massas não diretamente interpessoais. Abrangem esses meios o rádio, a televisão, o cinema, a televisão, a escrita impressa em livros, revistas, boletins, jornais, computadores e, de um modo geral, os meios eletrônicos e telemáticos de comunicação em que se incluem também as diversas telefonias (Dicio, 2025, online).
Em suma, a partir das reflexões apresentadas anteriormente, aduz-se que o conceito de mídia abrange um conjunto diversificado de instrumentos e canais comunicacionais responsáveis pela transmissão e circulação de informações.
Dessa forma, complementa Sousa (2021) que o papel essencial da mídia na sociedade contemporânea consiste em informar, funcionando como mediadora entre os acontecimentos, sejam eles de âmbito nacional ou internacional e o público. Além de relatar os fatos, a mídia também exerce influência direta na formação de opiniões, razão pela qual deve pautar sua atuação na veracidade, na clareza e na imparcialidade, evitando qualquer forma de juízo de valor em suas abordagens.
3.1 A Liberdade no exercício da informação jornalística
Segundo Silva (2019), a expressão “liberdade de informação jornalística” surgiu como uma substituição à antiga “liberdade de imprensa”, considerada inadequada diante da realidade contemporânea. Desse modo, hodiernamente, compreende-se que a circulação de informações ocorre em larga escala por diversos meios, tanto físicos quanto digitais, ultrapassando o alcance da imprensa tradicional.
Nesse mesmo contexto, complementa o autor em comento que a denominada “liberdade de informação jornalística” contida no âmago da Magna Carta de 1988 não pode ser interpretada do mesmo modo em tempos modernos, haja vista que hoje há um novo alcance dessas informações:
A liberdade de informação jornalística de que fala a Constituição (art. 220, §1º) não se resume mais na simples liberdade de imprensa, pois esta está ligada à publicação de veículo impresso de comunicação. A informação jornalística alcança qualquer forma de difusão de notícias, comentários e opiniões por qualquer veículo de comunicação social (Silva, 2019, p. 246).
Outrossim, Silva (2019) aduz que o mesmo dispositivo que assegura a liberdade de expressão e proíbe qualquer forma de censura, isto é, a Constituição Federal de 1988, também determina os limites da liberdade de informação jornalística. Essa delimitação está expressa nos Artigos 220 a 224, que estabelecem diversas restrições ao exercício dessa liberdade, como a proibição de monopólios e oligopólios na comunicação, a necessidade de autorização do governo federal para a criação de emissoras de rádio e televisão, além da responsabilidade dos meios de comunicação em cumprir sua função informativa (Brasil, 1988).
Desse modo, conforme Sousa (2021), nos últimos anos tornou-se evidente que a imprensa tem ultrapassado sua função essencial, que é a de informar. Com o avanço das novas tecnologias e a consolidação da comunicação digital e telemática, os meios de comunicação passaram a deter um poder social crescente, transformando o cidadão em mais do que um simples receptor — em muitos casos, em um refém da própria informação ali existente.
3.2 A transformação da mídia no século XXI
Enquanto, no final do século XX, os meios de comunicação se restringiam aos jornais impressos, ao rádio e à televisão, o início do século XXI marcou o surgimento e a popularização da internet no Brasil, ou seja, um avanço que ampliou consideravelmente o alcance e a diversidade das formas de disseminação de informação (Ziller, 2016). Dessa maneira, a partir desse momento, emergiram sites, blogs, canais de vídeo e uma infinidade de espaços voltados à produção e publicação de conteúdo digital (Ziller, 2016).
Conforme preceitua Sousa (2021), a partir da expansão dos meios de difusão, tornou-se inevitável o surgimento de debates acerca dos impactos das novas mídias na sociedade e de como elas influenciam diferentes esferas da vida coletiva. Enquanto setores mais progressistas exaltam a ampliação do acesso à informação e defendem que esse processo representa uma democratização da mídia, vozes mais conservadoras expressam preocupação com a falta de controle e de credibilidade das fontes, uma vez que qualquer indivíduo passou a poder divulgar conteúdo sem respaldo verificável, baseando-se, muitas vezes, em especulações ou informações falsas. Ademais, tem-se que essas discussões trouxeram à tona dois fenômenos amplamente debatidos na contemporaneidade, quais sejam, as denominadas “fake News” e os “clickbaits’.
3.2.1 As denominadas “Fake News”
Embora a expressão “fake news” (ou notícias falsas, em português) tenha se popularizado recentemente, o fenômeno em si é antigo. Trata-se da divulgação de informações falsas ou distorcidas, apresentadas de forma a simular veracidade e credibilidade. O tema já era objeto de debate nos meios de comunicação tradicionais, mas a internet potencializou sua disseminação, dada a velocidade e o amplo alcance proporcionados pela rede mundial de computadores (Carvalho, 2022).
Suplementarmente ao exposto, complementa Carvalho (2022) que a propagação de informações falsas remonta aos primórdios da comunicação humana:
É certo que, de uma maneira ou de outra, a disseminação de notícias falsas é tão antiga quanto a própria língua, muito embora a questão tenha alcançado especial importância como consequência do fato de que a Internet, em especial no popular ambiente das redes sociais, proporcionou acesso fácil a receitas provenientes de publicidade, de um lado, e de outro, do incremento da polarização política-eleitoral, com possibilidades reais de que a prática venha a influenciar indevidamente as eleições de um país (Carvalho, 2022, p. 01).
Apesar de ser um fenômeno relativamente recente, a disseminação de informações falsas pela internet tem se consolidado como um dos principais desafios desta década (Carvalho, 2022).
Nesse sentido, Carvalho (2022) ainda aduz que as razões que levam à propagação de notícias falsas são variadas, podendo envolver motivações ideológicas, busca por vantagens econômicas ou políticas, ou ainda sua utilização como instrumento para a prática de crimes, tais como injúria, difamação e calúnia, previstos no Código Penal Brasileiro.
3.2.2 O fenômeno dos “Clickbaits”
É cediço que, na busca por aumentar o tráfego e a visibilidade de seus sites, muitas empresas de comunicação e criadores de conteúdo recorrem a estratégias de atração de cliques. Uma das mais comuns é o uso dos chamados clickbaits, conteúdos com títulos ou descrições sensacionalistas, distorcidas ou parcialmente omitidas, criados com o propósito de despertar a curiosidade do leitor e induzir o acesso à matéria (Folha, 2018).
Nesse esteio, Zamith (2019) argumenta que o alcance dos clickbaits tende a ser ainda maior nas redes sociais, ambientes em que informações circulam de forma rápida e descontrolada, baseando-se frequentemente na exploração de boatos, tragédias e apelos emocionais. Ademais, consoante Zamith (2019), esse tipo de conteúdo se vale do sensacionalismo e da manipulação narrativa para estimular o engajamento, ainda que em detrimento da veracidade e da qualidade informativa:
[…] o designado clickbait (ou caça-cliques), que conduz a desinformação, causa dúvidas sobre o conteúdo e induz ao erro. Encontrado com frequência em títulos de conteúdos de origem menos convencional, o clickbait é por vezes usado também pelos cibernéticos jornalísticos e muito disseminado pelas redes sociais. O objetivo, ao utilizar esta fórmula, é aumentar os acessos ao conteúdo produzido, e, assim, gerar mais receitas de publicidade (Zamith, 2019, online).
Portanto, na contemporaneidade, diversas empresas de comunicação têm se especializado na produção de conteúdos baseados em clickbaits, utilizando essa prática como estratégia para aumentar seus lucros, geralmente associados ao número de acessos e ao tempo de permanência dos usuários em suas páginas. Essa conduta, segundo Zamith (2019), tem sido amplamente criticada pelos grandes veículos de imprensa, pois a divulgação massiva de conteúdos sensacionalistas contraria princípios éticos fundamentais do jornalismo profissional, como a veracidade, a responsabilidade e o compromisso com a informação de qualidade.
4 O PAPEL DA MÍDIA E AS SUAS INTERFERÊNCIAS NO ÂMBITO DO TRIBUNAL DO JÚRI
Conforme exposto alhures, observa-se que a mídia está hoje inserida em praticamente todos os aspectos da vida cotidiana, veiculando notícias, informações e acontecimentos de maneira rápida e eficiente. Essa realidade, somada à facilidade de acesso aos meios de comunicação, acaba tornando as pessoas cada vez mais dependentes dessas tecnologias. Nessa perspectiva, destaca Araújo (2019):
As sociedades contemporâneas tornaram-se cada vez mais modernas e os meios de comunicação também acompanharam os avanços. Desde então, as distâncias geográficas foram minimizadas e a notícia passou a ser transmitida com mais velocidade (Araújo, 2019, online).
Diante da significativa evolução e relevância dos meios de comunicação, é preciso reconhecer que, por um lado, houve um importante progresso para a sociedade, uma vez que o acesso às informações e aos acontecimentos se tornou mais amplo e imediato. Por outro lado, porém, também se observa que a mídia passou a exercer forte influência na formação da opinião de cada indivíduo que a consome:
A televisão tem uma espécie de monopólio de fato sobre a formação das cabeças de uma parcela muito importante da população. Ao insistir nas variedades, preenche-se esse tempo raro com vazio, com nada ou quase nada, afastam-se as informações pertinentes que deveria possuir o cidadão para exercer seus direitos democráticos (Bordieu, 2021, p. 23).
Nesse prumo, tem-se que os mecanismos midiáticos, a cada dia, se distanciam de suas funções precípuas, ou seja, reportar, informar e narrar fatos. Dessa maneira, passam a opinar e influenciar, ao invés de simplesmente noticiarem aquelas situações:
Os órgãos da mídia distanciaram-se de sua função inicial (reportar, narrar) para, vagarosamente, destacarem-se como intervenientes e invasores do fato. Com isso, não mais noticiam, mas opinam. Deixaram de informar para formar opinião. Neste contexto verificado, a relação entre a mídia e a opinião pública chegou a um tamanho grau de hegemonia do primeiro e submissão do segundo que, atualmente, pode-se dizer que, a opinião pública reduziu-se à opinião publicada pelos órgãos da mídia (Andrade, 2022, p. 48).
É importante aduzir que no contexto do atual Estado Democrático de Direito brasileiro, assim como ocorre em diversos setores sociais, a informação consolidouse como um verdadeiro instrumento de poder. Nesse cenário, a mídia, enquanto veículo difusor desse poder, torna-se um dos principais objetos de debate, especialmente no que diz respeito à sua relação com o Poder Judiciário, notadamente no âmbito do processo penal e da atuação decisória do magistrado (Andrade, 2022).
Outrossim, tem-se que essa constatação decorre do fato de que, na contemporaneidade, é evidente que a sociedade, ao mesmo tempo em que demonstra grande interesse por informações e acontecimentos, sobretudo aqueles de caráter trágico ou controverso, capazes de impactar seus valores e opiniões, também sofre influência direta da forma como tais episódios são apresentados pelos meios de comunicação. A manipulação ou direcionamento da informação pode gerar efeitos significativos, sobretudo no modo como o público enxerga o papel, muitas vezes complexo e essencial, desempenhado pelo Judiciário (Andrade, 2022).
Nessa direção, percebe-se que a influência exercida pela mídia pode ultrapassar a mera formação da opinião pública, alcançando também o âmbito jurídico. Conforme ressalta Nucci (2023), determinados meios de comunicação direcionam seus esforços à divulgação de notícias sensacionalistas, voltadas principalmente a elevar índices de audiência. Dentro desse conjunto de conteúdos, destacam-se os casos criminais de grande repercussão, que, em regra, são submetidos ao julgamento pelo Tribunal do Júri:
[…] eis porque é maléfica a atuação da imprensa na divulgação de casos sub judice, especialmente na esfera criminal e, pior ainda, quando são relacionados ao Tribunal do Júri. Afinal, quando o jurado se dirige ao fórum, convocado para participar do julgamento de alguém, tomando ciência de se tratar de “Fulano de Tal”, conhecido artista que matou a esposa e que já foi “condenado” pela imprensa e, consequentemente, pela “opinião pública”, qual isenção terá para apreciar as provas e dar seu voto com liberdade e fidelidade às provas? (Nucci, 2023, p. 137).
Em razão da forte influência exercida pela mídia na cobertura de determinados casos criminais, diversos juristas, como Nucci (2023) e Lopes Júnior (2023), têm manifestado preocupação quanto à capacidade do Conselho de Sentença de manter sua imparcialidade ao avaliar o conjunto probatório, a autoria, a materialidade delitiva e, sobretudo, ao julgar esses crimes.
Contrariando normas, princípios e valores que orientam o processo penal, observa-se que o sensacionalismo e a intensa atenção dedicada pela mídia a casos de grande repercussão, especialmente durante a fase investigativa e no momento da prisão dos suspeitos, têm como objetivo central apenas elevar os índices de audiência. Consequentemente, grande parte dos telespectadores, incluindo os jurados, pode acabar sendo influenciada de maneira inadequada por essa cobertura distorcida.
Além disso, considerando que os jurados são cidadãos comuns, muitas vezes sem formação jurídica ou preparo técnico para distinguir um fato verídico de uma informação manipulada com o intuito de atrair público, a gravidade dessa interferência torna-se ainda mais evidente (Nucci, 2023).
Nesse contexto, destacam-se as reflexões apresentadas por Gonçalves e Mignoli (2018):
O processo criminal brasileiro, pode ser considerado como um dos que mais sofre com esta midiatização atual, ainda mais quando é utilizada de forma sensacionalista com o intuito de atrais receptores. Pode-se analisar que os casos em que envolvam crime ocorridos em nosso sistema, deveria ter sua condução de forma mais preservada possível a fim de evitar ainda mais tumultos e formações de opiniões precipitadas da sociedade, principalmente nos casos em que serão levados ao Tribunal do Júri, onde há a participação de jurados que fazem parte desta sociedade (Gonçalves; Mignoli, 2018, online).
De forma complementar, Gomes (2015) observa que, na contemporaneidade, há uma excessiva valorização midiática da violência e dos casos criminais, resultando em um sensacionalismo que ultrapassa a neutralidade necessária nesse contexto. Caso o objetivo da mídia fosse apenas a busca pela verdade, as notícias seriam transmitidas sem manipulações intensas ou sem a exploração deliberada das emoções primárias do público. Em outras palavras, o telespectador seria conduzido a uma reflexão racional sobre os fatos divulgados (Gomes, 2015).
Entretanto, como aponta Vieira (2023), a realidade se apresenta de modo distinto:
A valorização da violência, o interesse pelo crime e pela justiça penal é uma prática enraizada na mídia, que encontra seu melhor representante no jornalismo sensacionalista. Utilizando-se de um modo próprio da linguagem discursiva, ágil, coloquial e do impacto da imagem, promove uma banalização e espetacularização da violência (Vieira, 2023, p. 55).
Nessa perspectiva, destaca-se que os juízes togados, ainda que não possam se afastar por completo das pressões externas e das influências exercidas pela mídia, são obrigados, na fase de pronúncia, a fundamentar e justificar suas decisões, conforme determina o artigo 155 do Código de Processo Penal (Brasil, 1941).
Em contrapartida, a situação dos jurados é distinta: eles não atuam com a mesma independência ao proferirem seus votos, uma vez que suas deliberações são permeadas por valores morais, concepções sociais e padrões de conduta.
Assim, conforme aponta Lopes Júnior (2023), os jurados mostram-se mais vulneráveis à pressão social, a ideias previamente construídas e a julgamentos influenciados por percepções externas, o que pode comprometer a forma como compreendem e avaliam o processo decisório:
A íntima convicção, despida de qualquer fundamentação, permite a imensa monstruosidade jurídica de ser julgado a partir de qualquer elemento. Isso significa um retrocesso ao Direito Penal do autor, ao julgamento pela ‘cara’, cor, opção sexual, religião, posição socioeconômica, aparência física, postura do réu durante o julgamento ou mesmo antes do julgamento, enfim, é imensurável o campo sobre o qual pode recair o juízo de (des) valor que o jurado faz em relação ao réu. E, tudo isso, sem qualquer fundamentação (Lopes Júnior, 2023, p. 149).
Outro aspecto destacado por Lopes Júnior (2023) refere-se ao fato de que a mídia, ao divulgar determinados casos criminais, frequentemente confere um forte apelo emocional às narrativas e desconsidera elementos racionais fundamentais. Assim, ao conduzir suas reportagens por essa via, a mídia tende a posicionar a vítima em um lugar de empatia e, simultaneamente, a projetar o acusado em uma condição desfavorável, repulsiva e presumidamente condenável.
Nessa mesma linha, Coelho (2006) observa que a atuação midiática busca atender às suas próprias demandas de audiência e ao clamor popular, frequentemente expondo indivíduos ao ridículo e ignorando que se trata de seres humanos dotados de direitos e deveres perante a sociedade e o sistema jurídico:
O sensacionalismo se presta a informar mais para satisfazer as necessidades instintivas do público, por meio de formas sádicas e espetaculares, expondo pessoas ao ridículo. As matérias têm o tempo e a duração que forem necessários, desde que mantenham o receptor interessado naquilo que é mostrado, garantindo a audiência (Coelho, 2006, p. 82).
Adicionalmente ao que foi asseverado, argumenta Ramos (2007):
Em momentos de emoção, jornalistas muitas vezes preferem espelhar o sentimento da população a aprofundar o debate. Nas escolhas entre o que paginar em um espaço limitado, a opinião costuma ser mais valorizada do que a análise. O resultado, muitas vezes, contribui mais para reforçar noções preconcebidas do que para esclarecer o leitor (Ramos, 2007, p. 68).
De forma complementar ao que foi exposto, Gomes (2015) enfatiza que a atividade jornalística vai muito além da simples transmissão de informações. Nesse sentido, o profissional responsável pela elaboração de uma notícia acaba, ainda que de maneira indireta, conduzindo o leitor a compartilhar determinadas emoções, convicções e valores. Assim, sobretudo no âmbito do jornalismo investigativo, tornase evidente a existência de um conflito entre o direito à liberdade de expressão e princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, o in dubio pro reo e a igualdade.
4.1 Casos criminais de ampla repercussão midiática
Observa-se que, ao longo dos anos, a mídia passou a dedicar atenção intensa a determinados casos criminais, acompanhando-os de forma minuciosa e explorando publicamente aspectos relacionados à vida dos acusados e das vítimas.
Entre os inúmeros casos criminais amplamente divulgados, destacam-se aqueles que despertaram maior clamor social e repercussão midiática. A título ilustrativo, serão analisados o caso “Daniela Perez”, o caso “Richthofen” e o caso “Eloá Pimentel”.
4.1.1 O caso “Daniela Pérez”
Em 28 de dezembro de 1992, a sociedade brasileira e a imprensa acompanharam minuciosamente os pormenores cruéis que envolveram o homicídio da atriz e bailarina Daniella Ferrante Perez Gazolla, popularmente conhecida como Daniella Perez. Cumpre salientar que a jovem era filha da renomada dramaturga Glória Perez (Souza; Ferreira, 2012). Ressalta-se que na época do ocorrido, Daniella era considerada uma atriz promissora, destacando-se como protagonista da novela exibida no horário nobre das 21 horas, e o fato de seu algoz ser seu colega de cena, o ator Guilherme de Pádua, contribuiu para a ampla repercussão e comoção social que o episódio provocou. Registra-se ainda que o crime contou com a participação de Paula Thomaz, esposa de Pádua, na execução do ato criminoso (Souza; Ferreira, 2012).
Além dessas circunstâncias, tem-se a questão da brutalidade do assassinato, haja vista que a atriz foi atingida por dezoito golpes de tesoura, somada à divulgação de imagens do local do crime e do corpo da vítima, intensificou sobremaneira o interesse midiático e a atenção pública em torno do caso. Ao longo do processo judicial, concluído em 1997, já se delineava uma opinião pública amplamente favorável à condenação dos acusados (Souza; Ferreira, 2012).
Segundo Souza e Ferreira (2012), a morte de Daniella motivou a dramaturga Glória Perez a empreender uma significativa mobilização social, angariando aproximadamente 1,3 mil assinaturas em apoio a um projeto de lei destinado a incluir o homicídio qualificado entre os crimes hediondos. Consequentemente, a medida ganhou eficácia com a promulgação da Lei nº 8.930/94, que passou a abranger uma nova categoria de crime hediondo.
4.1.2 Caso “Von Richthofen”
Assim como o assassinato da atriz Daniella Perez despertou ampla atenção da mídia, o homicídio de Manfred e Marísia Von Richthofen, pais de Suzane Von Richthofen, igualmente mobilizou o interesse público e jornalístico (Souza; Ferreira, 2012).
De acordo com Souza e Ferreira (2012), Suzane, em conluio com seu namorado Daniel Cravinhos e seu cunhado Cristian Cravinhos, perpetraram o assassinato dos genitores no dia 31 de outubro de 2002. Posteriormente, o caso ocupou por várias semanas as páginas e horários de destaque da imprensa nacional, que divulgou minuciosamente os detalhes do crime, bem como aspectos da vida pessoal das vítimas e dos acusados.
Além disso, no ano de 2006, durante o julgamento dos três réus perante o Tribunal do Júri, houve um requerimento para que o ato processual fosse transmitido em rede de televisão. Contudo, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou o pedido, argumentando que a transmissão televisiva de um julgamento ultrapassaria o âmbito do princípio da publicidade processual:
A publicidade do processo é uma garantia de que os atos nele praticados são feitos com lisura, daí a permanência das portas abertas de forma a que qualquer pessoa que esteja no Fórum possa ingressar e assistir à cerimônia solene. Daí a se pretender que todo o país possa assistir ao lamentável drama que se desenvolve no Plenário do Tribunal do Júri, inclusive com repasse de trechos para jornais internacionais, vai uma longa distância (Brasil. Tribunal de Justiça de São Paulo. HC 972.803.3/0-00. Relator: desembargador José Damião Pinheiro Machado Cogan. Diário Judiciário- Dj, 22 jun. 2006).
Embora o Tribunal de Justiça de São Paulo tenha negado o pedido de transmissão televisiva do julgamento de Suzane Von Richthofen e seus comparsas, a imprensa desempenhou papel central em manter a sociedade amplamente informada sobre todos os acontecimentos no Tribunal do Júri. Por semanas, jornais, revistas e telejornais divulgaram detalhes do processo, explorando não apenas os fatos do crime, mas também aspectos da vida pessoal dos envolvidos, garantindo que o caso permanecesse em evidência nacional. A condenação dos réus, que receberam penas de reclusão entre 38 e 39 anos, refletiu a gravidade e a premeditação do ato cometido (Souza; Ferreira, 2012).
Além do aspecto judicial, o episódio causou impacto significativo na sociedade, suscitando discussões sobre a influência da mídia em processos criminais, os limites da cobertura jornalística e a exposição de réus e vítimas. A notoriedade do caso “Von Richthofen” o tornou objeto de reflexão sobre questões éticas e psicológicas, incluindo os fatores motivacionais que podem levar indivíduos a cometer homicídios dentro do contexto familiar, e serviu como referência em debates acadêmicos e jurídicos sobre crimes de grande repercussão.
O caso também exerceu forte influência na produção cultural. A repercussão continuada do episódio inspirou obras literárias, documentários e filmes, consolidando a memória do crime na cultura contemporânea. Um exemplo recente ocorreu em 2021, com o lançamento dos filmes O Menino que Matou Meus Pais e A Menina que Matou os Pais, disponíveis na plataforma Amazon Prime Vídeo. Ambos os filmes abordam a trajetória de Suzane Von Richthofen, detalhando não apenas o planejamento e a execução do homicídio, mas também os elementos familiares e psicológicos que permeiam o episódio (Pinho, 2021).
Conforme ponderações de Pinho (2021), o prolongado interesse público pelo caso evidencia como crimes de grande repercussão, especialmente aqueles envolvendo famílias de classes sociais elevadas e circunstâncias extraordinárias, tendem a permanecer no imaginário coletivo. Ademais, Pinho (2021) destaca que o episódio “Von Richthofen” ultrapassa o âmbito criminal e se insere em discussões sobre responsabilidade social, ética, psicologia e a função da mídia na formação da opinião pública, revelando como determinadas tragédias podem influenciar leis, debates acadêmicos e produções artísticas por décadas.
4.1.3 Caso “Eloá Pimentel”
No dia 13 de outubro de 2008, Lindemberg Alves, motivado por intensa emoção e paixão, invadiu a residência de sua namorada, Eloá Pimentel, onde estavam também sua amiga Nayara e mais dois conhecidos, mantendo todos como reféns. A situação terminou de forma trágica durante a intervenção policial, quando Lindemberg disparou duas vezes contra Eloá e uma vez contra Nayara, resultando em sua morte (Souza; Ferreira, 2012).
O episódio ganhou repercussão nacional imediata, com mais de cem horas de cobertura jornalística contínua, transformando a tragédia em uma espécie de “novela da vida real” ou reality show jornalístico. Esse fenômeno é comumente referido como “espetacularização do crime”, uma vez que a mídia atuou de forma direta na exposição do caso. Entre os exemplos mais notáveis, destaca-se que, durante os dois dias em que durou o cárcere, Lindemberg Alves concedeu entrevistas à apresentadora Sônia Abrão, da Rede TV, à jornalista Zelda Mello, da Rede Globo, e a um repórter da Folha Online, amplificando a atenção pública sobre o episódio (Souza; Ferreira, 2012).
Segundo ponderações de Souza e Ferreira (2012), o caso Eloá evidencia a influência direta que a mídia exerce sobre a sociedade, sendo capaz de mobilizar a opinião pública e gerar intensos debates sobre ética, sensacionalismo e limites da cobertura jornalística.
Ademais, Souza e Ferreira (2012) aduzem que a liberdade de informação, embora garantida pela Constituição no Artigo 5º, precisa respeitar princípios fundamentais e limites éticos, de modo que a imprensa cumpra sua função social de informar sem comprometer a imparcialidade do processo judicial. Casos de grande repercussão, como o de Eloá, geram enorme clamor social, e a cobertura intensa do episódio trouxe à tona discussões sobre a interferência midiática em procedimentos legais de relevância nacional (Souza; Ferreira, 2012).
Semanas antes do julgamento de Lindemberg, a divulgação de notícias relacionadas ao caso dominava o noticiário, levantando questionamentos sobre o impacto dessas informações na condução do processo. A cobertura midiática contínua criou um ambiente de intensa expectativa social e, muitas vezes, de pressão indireta sobre os agentes do sistema judiciário (Souza; Ferreira, 2012).
Durante o julgamento, diversos veículos de comunicação acompanharam de perto os desdobramentos. A Record News, por exemplo, manteve plantão no Fórum Criminal de Santo André, entrevistando a promotora, a defesa e especialistas, reforçando a repercussão pública. Lindemberg foi julgado por doze crimes: homicídio (contra Eloá), duas tentativas de homicídio (contra Nayara Rodrigues e o sargento Atos Valeriano), cinco ocorrências de cárcere privado (contra Eloá, Vitor Lopes, Iago Oliveira e duas vezes contra Nayara) e quatro disparos de arma de fogo. Ao final, foi condenado a 98 anos de prisão, com a dosimetria das penas aplicada de forma proporcional a cada crime cometido (Souza; Ferreira, 2012).
No momento da sentença, a expectativa social e midiática era enorme. Diversos canais de televisão, plataformas digitais e redes sociais transmitiram ao vivo a decisão proferida pela juíza Milena Dias. Em seu pronunciamento, a magistrada destacou que “a liberdade de informação é uma garantia da democracia, e a imprensa é o elo com a população”, ressaltando ainda que “a democracia está intrinsecamente ligada à atuação da mídia” (Souza; Ferreira, 2012).
Nesse sentido, Souza e Ferreira (2012) argumentam que o caso de Eloá Pimentel evidencia a necessidade de equilíbrio entre liberdade de imprensa e justiça, mostrando que a cobertura midiática de crimes de grande repercussão deve ser conduzida de forma ética e responsável, preservando a imparcialidade do julgamento e respeitando os princípios constitucionais que regem o direito à informação.
4.2 A influência midiática e a legislação penal moderna
Conforme observado, o Tribunal do Júri é incumbido de julgar crimes dolosos contra a vida. Nesse contexto, Vieira (2023) ressalta que os jurados podem estar sujeitos à influência da opinião pública, em função da comoção provocada pela mídia e pela sociedade em geral:
[…] o jurado é mais permeável à opinião pública, à comoção, que se criou em torno do caso em julgamento, do que os juízes togados e, por sentiremse pressionados pela campanha criada na imprensa, correm o risco de se afastarem do dever de imparcialidade e acabam julgando de acordo com o que foi difundido na mídia (Vieira, 2023, p. 246).
Em virtude da possibilidade de que o Conselho de Sentença seja influenciado por fatores externos, especialmente pela mídia, podem ocorrer decisões injustas, ou seja, que não se pautem unicamente pelos fatos e pelas provas constantes nos autos. Nesse cenário, caso haja violação do princípio da presunção de inocência, bem como do direito à privacidade, tanto do acusado quanto da vítima, os direitos à informação e à liberdade de expressão devem ser considerados secundários (Nucci, 2023).
Dentro dessa perspectiva, percebe-se que o simples pedido para que o Conselho de Sentença desconsidere todas as informações veiculadas e o clamor popular mostra-se insuficiente, visto que é praticamente impossível desfazer a imagem já construída pela mídia (Nucci, 2023).Assim, conclui-se que a conduta mais adequada consiste na não divulgação de matérias que possam exercer influência indevida, comprometendo os direitos fundamentais dos acusados e das vítimas, como observa Naves (2003), citado por Vianna (2015):
Devemos ter em mente que procedimento preparatório, acusação, julgamento e condenação são atos que competem, constitucional e legalmente, ao Poder Judiciário com a valiosa colaboração do Ministério Público e da polícia judiciária. Assim, não é correto que a notícia leve a coletividade a concluir pela culpabilidade do acusado antes do pronunciamento judicial. Não é justo que se inverta na mente das pessoas, a ordem das coisas, e a sentença seja passada antes mesmo da instauração do procedimento preliminar ou preparatório de ação penal, a cargo da autoridade policial. E mais: se os fatos não são levados a julgamento, cria-se a suspeita de que a Justiça faz parte de conluio para acobertar o pretenso crime. Jamais percamos de vista que, entre os direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição, encontra-se inscrito que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (Naves, 2003, p. 97, apud Vianna, 2015, online).
Destaca-se, conforme Nucci (2023), que questões relacionadas ao direito à informação, à liberdade de expressão e aos direitos próprios de acusados e vítimas devem ser avaliadas individualmente. Nesse contexto, cabe ao magistrado realizar uma ponderação entre valores e princípios, de modo a adotar a decisão mais justa e equilibrada.
É importante salientar que no campo jurisprudencial moderno também se observam decisões relativas ao Tribunal do Júri que são motivadas pela influência causada pela mídia. Nesse sentido, tem-se uma decisão proveniente do Tribunal de Justiça do Paraná, acerca de um pedido de desaforamento de julgamento:
DESAFORAMENTO DE JULGAMENTO – TRIBUNAL DO JÚRI – ALEGAÇÃO DE RISCO DE IMPARCIALIDADE DOS JURADOS PELA REPERCUSSÃO SOCIAL – EXISTÊNCIA DE PROVAS NESSE SENTIDO – PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ART. 427, CAPUT, CPP – ELEMENTOS CONCRETOS QUE EVIDENCIAM A NECESSIDADE DO DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA TERRITORIAL – MOTIVAÇÃO DO CRIME EM SUPOSTO CONTEXTO RELIGIOSO – REPERCUSSÃO MIDIÁTICA – DESAFORAMENTO – PROVIMENTO. I. CASO EM EXAME 1.
I. Desaforamento de julgamento requerido pelo réu, fundamentado na alegação de risco de imparcialidade dos jurados devido à intensa repercussão midiática do caso, que envolve um homicídio supostamente motivado por questões religiosas, em uma comarca de aproximadamente 35 mil habitantes. O pedido foi inicialmente negado pelo Ministério Público, que sustentou que a repercussão não era suficiente para justificar a transferência do julgamento. O juízo a quo manifestou-se favoravelmente ao desaforamento, considerando a necessidade de garantir a imparcialidade do julgamento.II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. A questão em discussão consiste em saber se é cabível o desaforamento do julgamento em razão da alegação de risco de imparcialidade dos jurados devido à repercussão social e à cobertura midiática do caso.
III. RAZÕES DE DECIDIR 3. A cobertura midiática exacerbada do caso gerou influência na opinião pública, comprometendo a imparcialidade dos jurados.
IV. A proximidade da comunidade com a vítima, que era funcionário da maior empregadora da região, aumenta o risco de parcialidade no julgamento.
V. Existem elementos concretos que evidenciam a necessidade de deslocamento de competência territorial, conforme o art. 427 do CPP.
VI. O contexto religioso do crime e a repercussão midiática associada a ele podem influenciar a percepção dos jurados, prejudicando a justiça do julgamento.
VII. DISPOSITIVO E TESE 7. Desaforamento de julgamento conhecido e provido, com deslocamento do feito para a Comarca de Cascavel/PR. Tese de julgamento: O desaforamento de julgamento no Tribunal do Júri é cabível quando há fundadas dúvidas sobre a imparcialidade dos jurados, em razão da repercussão social do caso e da influência da mídia, especialmente em comarcas de pequeno porte onde a proximidade entre a comunidade e as partes envolvidas pode comprometer a equidade do julgamento (Brasil. Tribunal de Justiça do Paraná. 00786552820248160000 Palotina. Relator.: substituto Sérgio Luiz Patitucci. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 23 mar. 2025).
Compreende-se que o pedido de desaforamento do julgamento foi formulado pelo réu, com base na alegação de que a imparcialidade dos jurados poderia estar comprometida devido à ampla repercussão midiática do caso. O julgamento em questão referia-se a um homicídio consumado, cuja motivação estaria relacionada a questões religiosas, ocorrido em uma comarca de aproximadamente 35 mil habitantes (TJPR, 2025).
Diante dessa situação, o Tribunal de Justiça do Paraná determinou a transferência do julgamento para outra comarca, reconhecendo a existência de dúvidas quanto à imparcialidade dos jurados na cidade de Palotina, local do crime. O réu sustentou que a intensa cobertura da mídia, associada à repercussão da suposta motivação religiosa, poderia influenciar a opinião dos jurados, comprometendo a obtenção de um julgamento justo e equilibrado (TJPR, 2025).
É Importante salientar que o tribunal considerou relevante o fato de que a vítima era uma pessoa conhecida na comunidade, o que aumentaria o risco de parcialidade por parte do Conselho de Sentença. Dessa forma, decidiu-se que o julgamento seria realizado na comarca de Cascavel, onde se espera que os jurados possam deliberar de maneira mais objetiva, baseada unicamente nos fatos e nas provas apresentadas, garantindo maior imparcialidade e justiça ao processo.
5 CONCLUSÃO
Com base em todos os elementos suscitados, tem-se que o presente estudo permitiu aprofundar a compreensão acerca do sistema processual penal brasileiro, evidenciando sua complexidade e os desafios históricos e contemporâneos enfrentados na consolidação de um processo justo e equilibrado. Constatou-se que o ordenamento jurídico brasileiro se estrutura em um modelo misto ou acusatório atenuado, combinando características do sistema inquisitivo na fase pré-processual, sobretudo durante a investigação criminal conduzida pela Polícia Judiciária, e elementos do sistema acusatório na fase judicial, com predomínio da atuação do Poder Judiciário e do Tribunal do Júri. Ressalta-se que essa configuração histórica reflete tanto a herança inquisitiva consolidada ao longo dos séculos quanto as transformações impulsionadas pela valorização dos direitos humanos e pela dignidade da pessoa, evidenciando a gradual superação de métodos punitivos autoritários em prol de garantias constitucionais e do devido processo legal.
No contexto do Tribunal do Júri, instituição singular no sistema penal brasileiro, foi possível identificar a importância de seu papel como instrumento de concretização de princípios constitucionais fundamentais, tais como a presunção de inocência, o devido processo legal, a publicidade, a imparcialidade e o livre convencimento dos jurados. A participação direta da sociedade no julgamento de crimes dolosos contra a vida não apenas legitima a atividade jurisdicional, mas também promove o envolvimento cívico e o exercício da cidadania, reforçando a confiança da população no sistema de justiça.
Todavia, o estudo demonstrou que a atuação do Tribunal do Júri está intrinsecamente vinculada à influência da mídia, cuja cobertura de determinados casos criminais pode comprometer a imparcialidade do Conselho de Sentença. A divulgação intensa, seletiva e, muitas vezes, sensacionalista de crimes graves tende a moldar a percepção dos jurados e da sociedade, projetando a vítima em posição de empatia e o acusado em condição presumidamente condenável, o que configura um desafio significativo à neutralidade judicial. Ademais, observou-se que, embora o magistrado possua a função de equilibrar interesses e garantir a legalidade das decisões, o poder de influência exercido pela opinião pública e pela mídia sobre os jurados revela-se difícil de neutralizar, reforçando a necessidade de mecanismos protetivos, como o desaforamento de julgamento, já aplicado em casos de grande repercussão, como o ocorrido em Palotina.
Neste cenário, a análise das relações entre mídia, processo penal e Tribunal do Júri evidencia que o acesso à informação, embora essencial para a transparência e a democracia, deve ser ponderado frente aos direitos fundamentais dos acusados e das vítimas. A liberdade de informação e de expressão não pode se sobrepor à garantia de um julgamento imparcial e à preservação da dignidade humana, exigindo uma atuação consciente, ética e responsável dos meios de comunicação, bem como decisões judiciais fundamentadas que minimizem interferências externas.
Portanto, conclui-se que a construção de um sistema penal verdadeiramente equilibrado no Brasil depende de múltiplos fatores interdependentes: a consolidação de normas processuais eficazes, a atuação responsável do Judiciário, a educação jurídica da sociedade e a observância ética pelos meios de comunicação. A harmonização desses elementos é essencial para assegurar que o Tribunal do Júri possa desempenhar sua função com imparcialidade, fundamentando decisões exclusivamente nos fatos e nas provas, e não em clamor social ou repercussão midiática.
Em síntese, entende-se que a complexidade do processo penal brasileiro, aliada à relevância social do Tribunal do Júri e à influência da mídia, revela a necessidade de contínua reflexão crítica e aperfeiçoamento institucional. Outrossim, mostra-se precípuo que cada situação seja analisada de forma individual, em respeito aos direitos, princípios e valores ali contidos. Além disso, tem-se que apenas mediante o respeito aos princípios constitucionais, à ética na comunicação e à participação consciente da sociedade será possível garantir julgamentos justos, equilibrados e socialmente legítimos, fortalecendo, assim, o Estado Democrático de Direito e promovendo a efetiva proteção dos direitos fundamentais dos acusados e das vítimas.
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1 Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Católica de Rondônia -FCR. E-mail: lellorussell724@gmail.com
2 Orientador e Docente integrante da Faculdade Católica de Rondônia -FCR. E-mail: everson.rodrigues@fcr.edu.br
