O VEADO E A ONÇA DE ANA MARIA MACHADO: UMA ALEGORIA SOBRE A CONVIVÊNCIA E O RESPEITO MÚTUO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202506181926


Evelin Lays Modesto Araujo1
Profª Drª Maria da Luz Lima Sales2


RESUMO

Este artigo tem como objetivo fazer um estudo do livro O Veado e a Onça de Ana Maria Machado, destacando sua relevância como uma alegoria ou fábula indígena ou uma história de animais sobre a convivência e o respeito mútuo. Por meio de uma abordagem metodológica bibliográfica, baseada em artigos científicos dialogando com diferentes autores acerca da temática em questão como: Andrade (2007), Esopo (2020); Fedro (2008), Farencena (2010), Freire (1996), Krenak (2020, 2022), La Fontaine (2007), Magalhães (1940), Munduruku (2004). Busca-se compreender as mensagens transmitidas pela autora e suas contribuições para a educação, além de analisar os temas explanados e as possíveis aplicações em sala de aula e no contexto social. A obra é apresentada como um recurso literário que pode proporcionar reflexões importantes sobre valores, comportamento e convívio social, valores estes cada vez mais importantes às sociedades hodiernas. Os resultados obtidos poderão ser utilizados em sala de aula, como ferramenta pedagógica para abordar os temas mencionados, e também poderão ser relevantes para pesquisadores e interessados em literatura infantil, cultura indígena e educação.

PALAVRAS-CHAVE: História de animais, Ana Maria Machado, reflexões, comportamento, convivência social.

ABSTRACT

This article aims to study the book O Veado e a Onça by Ana Maria Machado, highlighting its relevance as an indigenous allegory or fable or an animal story about coexistence and mutual respect. Through a bibliographical methodological approach, based on scientific articles dialoguing with different authors on the theme in question such as: Andrade (2007), Aesop (2020); Fedro (2008), Farencena (2010), Freire (1996), Krenak (2020, 2022), La Fontaine (2007), Magalhães (1940), Munduruku (2004). The aim is to understand the messages conveyed by the author and her contributions to education, in addition to analyzing the themes explained and the possible applications in the classroom and in the social context. The work is presented as a literary resource that can provide important reflections on values, behavior and social coexistence, values ​​that are increasingly important in today’s societies. The results obtained can be used in the classroom, as a pedagogical tool to address the mentioned themes, and may also be relevant for researchers and those interested in children’s literature, indigenous culture and education.

KEYWORDS: animal history, Ana Maria Machado, reflections, behavior, social coexistence.

1. Introdução

O presente trabalho tem como objetivo geral analisar a obra evidenciando sua relevância como alegoria sobre a convivência e o respeito mútuo, do livro “O Veado e a Onça”, bem como sua importância para a literatura infantil e para a cultura indígena. Para isso, serão investigados os seguintes objetivos específicos: analisar os temas centrais abordados na obra, como a convivência entre diferentes, a resolução de conflitos, a importância da cooperação e do respeito mútuo, e a relação entre o ser humano e a natureza, discutir a importância da obra como ferramenta pedagógica para o ensino de valores e para a promoção da reflexão crítica sobre questões sociais e ambientais e comparar a obra com outras narrativas indígenas e com fábulas de diferentes culturas, buscando identificar pontos de contato e especificidades. A pesquisa será desenvolvida através de uma abordagem de estudo bibliográfico, utilizando artigos científicos e a análise da narrativa se dará a partir da perspectiva da literatura infantil, com foco nos elementos simbólicos, alegóricos e educativos presentes na obra.

O Veado e a Onça é um conto ou lenda que pertence à literatura indigenista, isto é, aquela que proveio da Literatura Indígena originalmente, mas que foi renarrada por um escritor não indígena. Tendo sido narrada por um indígena tupi em 1700 a um sábio francês (2004), é, ao mesmo tempo, uma alegoria ou fábula infantil, diferente das contadas por Esopo na Antiguidade ou por La Fontaine nos seiscentos. Recontada por Ana Maria Machado e publicada em 2004 com ilustrações de Supla, convida a refletir sobre diferentes temas universais tais como a convivência e o respeito mútuo, tão necessários nos dias hodiernos. 

A história infantil explora as nuances do difícil relacionamento humano, desde a cooperação inicial entre dois seres naturalmente inimigos, até os desafios da coexistência com um outro ser opostamente diferente. Apresenta uma forma inteligente e pacífica de resolver conflitos, mostrando que a astúcia e a diplomacia, desde que recheadas de coragem, podem ser mais eficazes que a força física. Durante a construção da casa, a qual faz parte do enredo, observa-se que esta simboliza a relação do homem com a natureza (ou com o Outro) e a importância de utilizar os recursos de forma consciente e planejada. A narrativa celebra a diversidade entre os seres, expondo que, apesar das diferenças, é possível encontrar pontos em comum e construir algo juntos.

Machado é uma das mais importantes autoras de literatura infantil do Brasil. Suas obras são conhecidas por abordar temas relevantes de forma lúdica e acessível, estimulando a reflexão e a imaginação das crianças. A escritora tem o dom de recontar histórias tradicionais, adaptando-as para o público infantil, agregando novos elementos que as tornam ainda mais ricas e atuais enquanto é uma grande incentivadora da leitura, acreditando no poder transformador dos livros. Suas obras são traduzidas para variados idiomas e foram premiadas em diversas ocasiões, tanto no Brasil quanto no exterior. O Veado e a Onça é um exemplo clássico da capacidade dela de transformar um conto tão antigo e que veio da tradição oral em uma narrativa contemporânea, capaz de encantar e educar crianças de todas as idades.

Fábulas e alegorias como esta desempenham um papel crucial na formação de crianças e jovens, transmitindo valores e ensinamentos de forma lúdica e acessível. Através de personagens cativantes e tramas envolventes, essas narrativas exploram temas universais como amizade, respeito, honestidade, coragem e tolerância, auxiliando os jovens leitores a desenvolverem um senso crítico e a compreenderem a complexidade das relações humanas.

No caso de O Veado e a Onça, a história da improvável amizade entre dois animais naturalmente predadores ensina sobre a importância da cooperação, do respeito às diferenças e da busca por soluções pacíficas para os conflitos. Protagonizada por animais, mas não se enquadrando como uma fábula clássica, mostra que é possível superar preconceitos e construir relações positivas mesmo com aqueles que são diferentes de nós. Além de transmitir valores e ensinamentos, também estimula a imaginação e a criatividade dos jovens leitores. Ao entrarem em contato com mundos fantásticos e personagens cativantes, crianças e jovens são incentivados a desenvolverem sua capacidade de criação e a explorarem novas perspectivas.

A literatura infantil, da qual o conto de Machado é um exemplo, desempenha um papel fundamental na formação de cidadãos conscientes e engajados. Ao apresentar temas relevantes de forma lúdica e acessível, as obras literárias infantis contribuem para o desenvolvimento do senso crítico, da empatia e da capacidade de reflexão dos jovens leitores. Importante ressaltar que a leitura desses livros, precipuamente o que escolhemos para estudo é fundamental para a formação de indivíduos mais conscientes, críticos e engajados com o mundo ao seu redor, essencial aos dias hodiernos.

2. Saber viver em harmonia com o Outro

Na trama em estudo, tanto o veado e quanto a onça estão construindo a mesma casa sem o saber. O primeiro trabalha durante o dia, enquanto a outra assume a construção à noite. Curiosamente, eles nunca se encontram, porém, diariamente admiram o progresso da obra, agradecendo a Tupã por pensar que Ele os teria ajudado. Quando finalmente descobrem que o auxílio não era divino, mas que vinha de seu oponente, decidem, então, morar juntos, pois se esforçaram em demasia nessa construção. O veado, no entanto, sabe ser presa fácil da onça e, consciente de sua vulnerabilidade, arquiteta um plano com a ajuda dos amigos. Não querendo ser devorado pela inimiga e, assim como ela, não quer abrir mão do lar. E com esperteza e determinação, consegue espantar o felino para bem longe.

A casa no conto indígena e na história de Machado (2004) simboliza mais do que um simples abrigo físico, formado por elementos materiais – representa a conexão com o ambiente, a sustentabilidade e a cooperação. Ao se trabalhar juntos, criam-se laços mais fortes e confiáveis com as pessoas ao nosso redor. Fazer parte de um grupo e trabalhar em equipe faz as pessoas se sentirem mais conectadas e valorizadas. Em resumo, a cooperação constitui uma habilidade fundamental para a vida em sociedade. No momento em que convivem juntos, seres humanos podem construir um mundo mais justo, solidário e próspero para todos. O veado e a onça, mesmo sem se conhecerem, colaboram para construir algo maior; no entanto, essa união também traz o dilema da sobrevivência: o veado precisa se proteger da adversária, seu predador natural.

O convívio é um aspecto essencial para viver em sociedade, não havendo outra opção senão tolerar o outro, envolvendo a interação entre indivíduos, sejam eles familiares, colegas de trabalho, vizinhos, amigos, ou até inimigos ou quem se julgue como tal. Viver em harmonia com outrem requer habilidades sociais e respeito mútuo. Conviver com outras pessoas exige que sejamos capazes de compreender suas perspectivas, sentimentos e necessidades. A empatia permite a quem a sentir, enxergar o mundo sob diferentes ângulos, o que facilita a coexistência pacífica.

Uma comunicação clara e respeitosa faz-se essencial para a boa convivência. Ouvir atentamente, expressar-se de forma assertiva e evitar mal-entendidos são práticas que contribuem para relacionamentos saudáveis. Cada pessoa é única, com valores, crenças e culturas distintas, e respeitar as diferenças torna-se crucial para um relacionamento harmonioso, que é o que se exige hoje, em tempos tão sombrios. Isso inclui aceitar opiniões divergentes e não julgar precipitadamente o outro.

Em qualquer relação humana, surgem embates e interesses conflitantes. Saber negociar, ceder e encontrar soluções que beneficiem a todos é uma habilidade valiosa. Às vezes, necessita-se abrir mão de algo em prol do bem coletivo. Respeitar os limites individuais e o espaço pessoal também é fundamental. Reconhecer quando alguém precisa de privacidade ou de um momento para si mesmo constitui algo necessário para evitar atritos. Conviver com pessoas diferentes pode ser desafiador, mas a tolerância e a paciência são virtudes importantes e nem sempre se concorda com tudo, mas aprender a lidar com as divergências faz parte da convivência saudável.

A harmonia entre os seres envolve ainda apoiar uns aos outros, seja ajudando um vizinho ou colega, colaborando em projetos de trabalho, oferecendo-lhe uma palavra de coragem ou o ombro amigo, porque a solidariedade fortalece os laços entre as pessoas. A convivência é um exercício diário de compreensão mútua, respeito e busca por equilíbrio. Quando se cultivam essas atitudes positivas, criam-se ambientes mais saudáveis, positivos e enriquecedores para todos. Por outro lado, enxergar o mundo sob diferentes ângulos nos ajuda a refletir para convivermos pacificamente, pois uma comunicação respeitosa, ouvir quem está ao lado atentamente e buscar entender seus motivos em determinadas ações e reações, expressar-se de forma assertiva, tudo isso contribui para relacionamentos saudáveis, o que acaba se tornando primordial. 

Saber negociar e encontrar soluções que beneficiem a todos é uma habilidade valiosa e, ocasionalmente, torna-se necessário abrir-se mão de algo em prol de um bem maior e comunitário, conforme se observa na astúcia do Veado, protagonista da narrativa recontada por Machado. Respeitar os limites individuais e o espaço pessoal do outro, reconhecer quando ele precisa de privacidade e obedecer a suas regras e espaços para evitar atritos e conviver com pessoas diferentes pode parecer desafiador, como foi para os protagonistas da fábula indígena e machadiana. Entretanto, a tolerância e a paciência são virtudes importantes para lidar com divergências, uma vez que apoiar uns aos outros e fortalecer os laços, é imprescindível para a convivência e, envolve colaboração e compreensão mútuas.

Tais ideias lembram outras, similares às de Paulo Freire, para quem aprender é um ato em que as pessoas o fazem em convívio com o outro. Ninguém aprende para si mesmo numa ação egoísta e solitária. Embora se refira ao ato educativo – afinal, relacionamentos humanos sempre envolvem o aprendizado –, o pensador reporta que:

[…] Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade. (Freire, 1996, p. 13, 14).

Ou seja, para o educador, quando se ensina, também se aprende e esse ato envolve os outros ao redor conjuntamente. Existir e coexistir estão imbricados e, nessa prática, aprendemos uns com os outros, assim como o Veado, que aprendeu a conviver (por um certo tempo) com seu arqui-inimigo, a Onça, que, da parte dela, também teve de passar a coabitar com alguém que não era na verdade – embora ela pensasse tratar-se – um mero alimento. A antagonista foi obrigada a tolerar o Veado nesse convívio, a princípio, impossível.

O reconto de Machado não é propriamente uma fábula, ainda que a nomeemos assim por sua proximidade com esse antigo gênero literário, o qual tradicionalmente se conhece como protagonizado por animais que representam seres humanos, com o objetivo moralizador ou didático. A narrativa de origem indígena, em seu enredo em estudo, embora também traga personagens como onças e veados, não tem preocupação com a moralidade, mas ensina as manhas de bichos que representam metáforas de homens e mulheres. As origens fábulas remontam à Antiguidade, com exemplos encontrados na literatura da Índia, da Grécia e de Roma. Na era antiga, Esopo, fabulista grego, considerado um dos mais importantes autores nessa modalidade literária, serviu de inspiração aos seguidores do gênero, como o romano Fedro, na Idade Média, que, à moda esópica, criou narrativas encantadoras, o mesmo havendo mais tarde, com as fábulas de La Fontaine.

A narrativa d’O Veado e a Onça ensina, embora sem intento moralizador, de modo prazeroso e lúdico, versa sobre a importância de compartilhar recursos e respeitar o meio ambiente. Muitas fábulas mostram como a união e a cooperação são essenciais para superar desafios e alcançar objetivos comuns, afinal é este o objetivo da narrativa fabulosa: ensinar. A famosa história da lebre e da tartaruga, por exemplo, ilustra como a persistência e a colaboração podem levar à vitória, ou a fábula do pão e a pedra, ensinam que compartilhar é uma atitude nobre e que pode trazer benefícios para todos (La Fontaine, 2007). 

Ao dividir o pão com a pedra, o personagem menino demonstra generosidade e aprende que a amizade é mais importante que a posse material. Algumas dessas narrativas abordam a questão da distribuição de recursos de forma justa e equitativa, a exemplo da história do lobo e do cordeiro, a qual mostra como a injustiça pode levar a conflitos e à desordem social (Esopo, 2020; Fedro, 2008; Farencena, 2010). Ainda sobre a interdependência entre os seres vivos: muitas delas mostram como todos os seres vivos estão conectados e dependem uns dos outros, pensamento esse que faz parte da filosofia indígena (Munduruku, 2004). “A cigarra e as formigas” ensina a importância de se preparar para o futuro e de cuidar do meio ambiente (Esopo, 2020), todas elas trazem soluções criativas para os desafios da vida.

Em um mundo globalizado e com desafios ambientais cada vez mais complexos, as lições transmitidas pelas fábulas, narrativas tão antigas quanto a presença do homem no planeta Terra são mais relevantes do que nunca, dão um alerta acerca do que o homem tem feito deste planeta: “Inabitável”, conforme escreveu Drummond (2007, p. 27), difícil de sobreviver, viver e conviver. Ao instruir desde cedo sobre a importância de compartilhar, cooperar e respeitar o meio ambiente, essas narrativas contribuem para a formação de cidadãos mais conscientes e engajados.

Machado, a autora que nasceu no Rio de Janeiro, por meio de uma narrativa protagonizada por animais, convida-nos a refletir sobre nossa própria relação com o planeta e com os outros seres que nele habitam. A história também nos instrui que, mesmo entre inimigos naturais, é possível encontrar soluções pacíficas. Os protagonistas aprenderam a dividir tarefas, respeitar limites e, acima de tudo, a confiar um no outro – obviamente, que essa confiança jamais poderia ser total (por se tratarem os dois de inimigos mortais), pois a lei da selva é matar ou morrer. Mas a convivência harmoniosa prevaleceu, pelo menos por um tempo, graças à inteligência e à solidariedade.

Em suma, a obra nos lembra que, assim como o veado e a onça, todos nós compartilhamos o mesmo espaço e devemos encontrar maneiras de coexistir harmoniosamente, preservando a natureza e respeitando suas leis. A narrativa de Machado é mais do que uma fábula, ela constitui uma reflexão importante e necessária aos dias pós-modernos acerca de como podemos superar as diferenças e construir relações positivas. A obra nos convida a olhar além das aparências e a encontrar soluções criativas para os desafios da vida em comunidade.

3. Camadas mais profundas da leitura de O Veado e a Onça

Uma análise aprofundada de O Veado e a Onça visa desvendar os elementos da fábula ou narrativa de animais como o Veado, o qual representa a fragilidade, a astúcia e a necessidade de proteção. Trata-se de um personagem que, apesar de sua vulnerabilidade, demonstra uma grande capacidade de adaptação e de busca de soluções criativas para problemas. A alegoria que encontra no Veado seu ponto máximo pode simbolizar a natureza, seu ciclo e a necessidade urgente de preservação do meio ambiente e da autopreservação.

O segundo protagonista é a Onça, que nos mostra força, ferocidade e também instinto de sobrevivência. O felino representa o lado selvagem e imprevisível da natureza, no entanto, a história revela ainda um lado vulnerável da personagem, que, assim como o Veado, busca um lugar que seja seu. Durante o desenrolar da narrativa, conhecemos os amigos deste, que representam a solidariedade, a união e a importância das relações interpessoais. A ajuda de seus amigos é fundamental para a solução do conflito, demonstrando que a colaboração é essencial para superar desafios.

Apesar de simples, a história é marcada por elementos de suspense e surpresa, apresenta complexidade ao explorar temas como convivência, confiança e a busca por um lugar seguro, culminando em uma resolução criativa e inesperada. Ela se desenvolve em tempo indeterminado e um passado distante: “Há muitos e muitos anos, quando as mulheres e os homens que viviam por aqui eram índios, quando o chão era só de terra e quem voava mais alto no céu era o gavião” (Machado, 2004, p. 4). Os raros marcadores temporais específicos contribuem para a universalidade da história e permitem que o leitor se conecte com a fábula indígena em qualquer época. Observa-se que o espaço da história é a floresta, ambiente natural que simboliza a liberdade, a aventura e a imprevisibilidade. Este é o palco onde os personagens interagem e constroem suas vidas e a casa, por sua vez, representa o lar, a segurança e a necessidade de um lugar de abrigo e proteção. 

Rico em simbolismos que transcendem a narrativa superficial, o conto convida o leitor a uma reflexão mais profunda sobre a natureza (inclusive humana) e as relações interpessoais. A casa faz uma analogia sobre o desejo universal de ter um ambiente próprio e confortável para viver, em um local aprazível, haja vista o fragmento: “Era perto de um rio encachoeirado, se ele quisesse beber água. Era protegido por umas árvores grandes, que não deixavam o vento chegar muito forte” (Machado, 2004, p. 5). Com isso, a construção simbolizaria a edificação da própria identidade, a busca por um lugar no mundo. A cooperação em construir a casa traduz a importância da contribuição e do trabalho em equipe para alcançar um objetivo comum. O lar, por ser construído por dois seres tão diferentes, retrata a fragilidade das construções humanas e a necessidade de cuidado e manutenção para que perdurem. Por fim, a floresta significa a natureza selvagem, imprevisível e cheia de mistérios, um espaço de liberdade, onde os animais podem se mover livremente e explorar o mundo. Contudo, ela espelha o ciclo da vida, com seus nascimentos, mortes e renovações constantes.

A obra O Veado e a Onça de Machado transcende a sua simplicidade narrativa para se conectar com diversos contextos históricos e culturais, tanto do Brasil indígena quanto da literatura infantil contemporânea. A história original, proveniente de um relato anônimo de um nativo brasileiro de etnia tupi e reportado por Couto de Magalhães (1940), carrega consigo elementos da cosmovisão indígena. A natureza, por exemplo, é vista como um ser vivo e sagrado, com o qual os humanos devem coexistir em harmonia. 

A floresta, cenário da história, designa não apenas um habitat, mas também um espaço de espiritualidade e conexão com os ancestrais de acordo com a filosofia indígena. A figura da onça, um animal de grande respeito e poder nas culturas indígenas, reforça essa conexão com a natureza e com o mundo espiritual. Ao recontar essa narrativa, Machado a insere no contexto da literatura infantil contemporânea, marcada pela busca por temas relevantes e pela valorização da diversidade, encontrando na história do veado e da onça elementos que a tornam atual e significativa. O conto resgata uma lenda de origem indígena, contribuindo para a valorização da cultura brasileira e para a promoção do multiculturalismo.

Esta narrativa funciona como uma ponte entre o passado e o presente, conectando a sabedoria ancestral dos povos indígenas com as preocupações da sociedade contemporânea – entre a cultura indígena e a sociedade pós-moderna, resgatando valores universais e adaptando-os para um novo público. Como um tipo especial de fábula, ao mesmo tempo em que preserva elementos da cultura indígena, atualiza a narrativa e a torna relevante para crianças de oito a oitenta anos. Ela se conecta com a cosmovisão indígena, valoriza a natureza e a espiritualidade, insere-se no contexto da literatura infantil atual e aborda temas relevantes como multiculturalismo e sustentabilidade. 

Ao comparar O Veado e a Onça com a obra do filósofo e ambientalista indígena Ailton Krenak (2020), encontramos um diálogo rico e profundo sobre a relação entre o homem e a natureza, a importância da comunidade e a busca por um modo de vida mais sustentável. O pensador, que é um dos principais intelectuais indígenas do Brasil, traz para o debate público uma visão de mundo profundamente conectada à natureza e à ancestralidade. Sua obra, marcada por uma linguagem poética e filosófica, convida à reflexão sobre a nossa relação com o planeta e com os seres vivos que o habitam.

A noção de comunidade é central tanto nos livros de Krenak (2020, 2022) quanto na história fabulosa machadiana. Em ambos se concebe a natureza como um ser vivo, com a qual os humanos devem estabelecer uma relação de respeito e reciprocidade. A floresta, presente em tais obras, é um espaço sagrado e fonte de vida. A cooperação, a solidariedade e o cuidado mútuo são valores fundamentais para a sobrevivência e o bem-estar de todos. Os escritos de Krenak e o de Machado defendem a necessidade desse modo de vida, mais sustentável e em harmonia com a natureza. A construção da casa para animais tão díspares pode ser vista como uma alegoria para a construção de um futuro mais justo e equitativo.

A comparação entre O Veado e a Onça e a obra de Ailton Krenak revela a riqueza e a complexidade da cultura dos indígenas brasileiros e americanos. Ambas as obras nos convidam a refletir sobre a relação (quase sempre tensa) com a natureza, com o planeta Terra de modo geral, com os outros e com o próprio ser humano consigo mesmo. Ao dialogar com a filosofia indígena, a narrativa ganha uma nova dimensão, tornando-se um instrumento poderoso para a educação ambiental e para a construção de um futuro mais sustentável.

Para realizar uma comparação mais profunda entre o reconto de Machado e a obra de Krenak, observa-se a seguinte citação deste: “A floresta não é um depósito de madeira, é uma biblioteca. E nós, seres humanos, somos como uma pequena parte dessa biblioteca que anda” (2020, p. 29). Nessa parte, assim como no livro machadiano, destaca-se a importância da natureza para a vida humana. A floresta é vista nas duas obras como um espaço sagrado e fonte de conhecimento pois é nele que podemos nos abrigar das intempéries e onde temos a oportunidade de conviver com o outro. 

A metáfora da floresta de Krenak, como uma biblioteca, ressalta a ideia de que a natureza é uma fonte inesgotável de conhecimento e sabedoria para quem a quer viva. Essa perspectiva se conecta com a necessidade de aprender com ela, presente na fábula, onde os animais demonstram uma profunda conexão com o seu habitat. A concepção de que os seres humanos são parte de uma biblioteca maior – a mata – reforça a noção de comunidade e interdependência entre todas as formas de vida. Essa perspectiva se relaciona com a importância da amizade e da cooperação presentes na fábula indigenista de Machado.

Os temas abordados nessa fábula indígena, como a convivência, a resolução de conflitos e a sustentabilidade, são atemporais e relevantes para a sociedade contemporânea. A obra é um exemplo de como a literatura infantil pode abordar assuntos complexos de forma lúdica e acessível, contribuindo para a formação de leitores críticos e reflexivos. Esse tipo de narrativa, a qual não tem necessariamente compromisso com a moralidade (2010) das fábulas clássicas, torna-a um importante patrimônio cultural brasileiro. A história pode ser utilizada como ferramenta pedagógica para trabalhar diversos conteúdos em sala de aula, como na língua portuguesa, história, geografia, educação ambiental e outros. A análise da obra contribui para um melhor entendimento da produção literária de Ana Maria Machado e de sua importância para a literatura infantil brasileira.

A leitura, como ato de imersão em diferentes realidades e perspectivas, desempenha um papel fundamental na formação de leitores críticos e conscientes. Através dos livros, os indivíduos são expostos a uma diversidade de experiências, culturas e ideias, o que contribui para o desenvolvimento de habilidades cognitivas, emocionais e sociais. A literatura permite que o leitor se coloque no lugar de outros personagens, compreendendo seus sentimentos, motivações e desafios. Ao vivenciar as histórias através dos olhos de outros, pode-se ampliar a capacidade de conexão emocional com pessoas diferentes (e até com animais, já que o ser humano se mostra insensível até com estes), de experimentar o mundo sob perspectivas distintas.

Os livros nos apresentam uma variedade de culturas, crenças e valores, promovendo o respeito à diversidade e a tolerância. Quando se entra em contato com diferentes pontos de vista, aprende-se a valorizar as dessemelhanças e a conviver com pessoas que pensam de forma diferente da do leitor, bem como se desenvolve o senso de responsabilidade social e o desejo de contribuir para um mundo mais justo e equitativo. Muitas histórias exploram a importância da cooperação para alcançar objetivos comuns. Ao acompanhar as personagens em suas jornadas, o menino e a menina aprendem que trabalhar em equipe e colaborar com os outros são habilidades essenciais para o sucesso. A literatura pode abordar temas sociais relevantes, como justiça social, direitos humanos e meio ambiente, incentivando a reflexão crítica e a participação ativa na sociedade.

A construção da casa exige a colaboração do veado e da onça, mostrando que a união é fundamental para superar desafios. Sem o trabalho de cada um deles não seria possível construir a casa da narrativa. E mais, a história demonstra a importância de respeitar as diferenças e o desafio de encontrar soluções pacíficas para problemas comuns. Como uma ferramenta poderosa, a leitura forma o indivíduo, tornando-o mais consciente, empático e cooperativo. Escolhendo obras literárias como a citada, que abordam temas relevantes e apresentando personagens inspiradores, pode-se contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade melhor e mais justa.

Objetivo geral

Analisar a obra “O Veado e a Onça” de Ana Maria Machado, evidenciando sua relevância como alegoria sobre a convivência e o respeito mútuo, bem como sua importância para a literatura infantil e para a cultura indígena.

Objetivos específicos

Analisar os temas centrais abordados na obra, como a convivência entre diferentes, a resolução de conflitos, a importância da cooperação e do respeito mútuo, e a relação entre o ser humano e a natureza.

Discutir a importância da obra como ferramenta pedagógica para o ensino de valores e para a promoção da reflexão crítica sobre questões sociais e ambientais.

Comparar a obra com outras narrativas indígenas e com fábulas de diferentes culturas, buscando identificar pontos de contato e especificidades.

Justificativa

A escolha da obra “O Veado e a Onça” de Ana Maria Machado como objeto de estudo se justifica pela sua relevância no contexto da literatura infantil brasileira e pela sua capacidade de suscitar reflexões importantes sobre a convivência, o respeito mútuo e a relação entre o ser humano e a natureza. A narrativa, que reconta uma narrativa tradicional indígena, apresenta uma história envolvente e rica em simbolismos, que pode ser explorada sob diferentes perspectivas. A análise da obra pode contribuir para um melhor entendimento da cultura indígena, de seus valores e de sua visão de mundo, além de promover a reflexão sobre a importância da diversidade cultural e do respeito às diferenças.

O livro da escritora, uma das mais importantes autoras de literatura infantil do Brasil, destaca-se pela sua qualidade literária e pela sua capacidade de dialogar com crianças de diferentes idades e backgrounds. “O Veado e a Onça” é um exemplo de como a literatura infantil pode abordar temas complexos de forma acessível e lúdica, contribuindo para a formação de leitores críticos e conscientes. A análise pode ser relevante para educadores, pais e demais interessados em literatura infantil, cultura indígena e educação. Ao evidenciar o potencial pedagógico da obra, a pesquisa pode contribuir para o desenvolvimento de práticas educativas que valorizem a leitura, a reflexão crítica e o respeito à diversidade cultural.

Além disso, a pesquisa pode contribuir para o aprofundamento do debate sobre a importância da valorização da cultura indígena na literatura infantil brasileira, destacando a necessidade de ampliar a representatividade dos povos indígenas e de suas narrativas no universo literário destinado às crianças.

Metodologia 

A presente pesquisa se caracteriza como um estudo bibliográfico, utilizando como principal fonte de dados a obra “O Veado e a Onça” de Ana Maria Machado (2004). A análise da narrativa se dará a partir da perspectiva da literatura infantil, com foco nos elementos simbólicos, alegóricos e educativos presentes na obra. A obra literária  será a principal fonte de dados para esta pesquisa. A análise da narrativa se concentrará nos elementos textuais e visuais da obra, buscando identificar os significados e as mensagens transmitidas através da história.

Serão utilizados artigos científicos, livros e ensaios que abordam a obra de Ana Maria Machado, a literatura infantil, a cultura indígena e temas relacionados à convivência, respeito mútuo e meio ambiente. Estas fontes secundárias auxiliarão na contextualização da pesquisa, no aprofundamento da análise da obra e na discussão dos temas abordados.

A análise da obra será realizada de forma qualitativa, buscando interpretar os significados presentes na narrativa, bem como suas relações com a cultura indígena e a sociedade contemporânea. Serão considerados os seguintes aspectos: elementos narrativos: personagens, enredo, tempo, espaço, narrador e foco narrativo; linguagem: recursos estilísticos, figuras de linguagem, tom e registro; temas: convivência, respeito mútuo, meio ambiente, diversidade cultural e valores sociais; simbolismos e alegorias: interpretação dos símbolos e alegorias presentes na narrativa, bem como suas relações com a cultura indígena e a literatura infantil, diálogo com a crítica: análise de diferentes interpretações da obra, buscando identificar pontos de convergência e divergência.

Espera-se que esta pesquisa contribua para um melhor entendimento da obra “O Veado e a Onça” de Ana Maria Machado, bem como para a reflexão sobre a importância da convivência, do respeito mútuo e da preservação do meio ambiente. Os resultados obtidos poderão ser utilizados em sala de aula, como ferramenta pedagógica para abordar os temas mencionados, e também poderão ser relevantes para pesquisadores e interessados em literatura infantil, cultura indígena e educação.

Considerações finais 

A narrativa de animais indígena, assim como a fábula, é um gênero literário que encanta crianças e adultos há séculos. Caracterizada por sua brevidade, linguagem simples e mensagens explícitas ou implícitas, ela utiliza animais como personagens para representar qualidades e defeitos humanos. As fábulas indígenas são narrativas curtas – por isso estudam-nas como Literatura Infantil –, com um enredo simples, mas que podem esconder grandes revelações, com histórias que apresentam um significado mais profundo, além da narrativa literal, a exemplo de O Veado e a Onça, de Machado. 

Desempenhando um papel fundamental na formação de crianças de todas as idades, as histórias contribuem para o desenvolvimento de diversas habilidades e valores, com suas histórias envolventes que estimulam o hábito da leitura tão necessário, mas negligenciado. Os personagens animais e as situações fantásticas presentes nessas narrativas estimulam a criatividade e a imaginação dos leitores. Abordando temas universais, essa literatura, que ajuda quem a aprecia, a compreender o mundo ao redor e a refletir sobre as próprias experiências e as do outro. A linguagem rica e expressiva nela contida contribui para o enriquecimento do vocabulário e para o desenvolvimento da capacidade de expressão.

Essa literatura é utilizada para entreter, embora acabe ensinando valores sociais e práticos de forma leve e divertida. Ela pode servir como instrumento para criticar comportamentos e atitudes, promover a reflexão sobre questões sociais relevantes, preservando costumes, crenças e valores de uma determinada cultura, contribuindo para a identidade de povos e nações indígenas e não indígenas, exercendo uma função estética e utilizando recursos linguísticos como a alegoria, a metáfora, a personificação e a ironia para criar narrativas envolventes.

Por fim, a narrativa indígena de animais é um gênero literário atemporal que, através de situações simples e alegóricas, transmite ensinamentos valiosos sobre a vida pragmática. Sua capacidade de conectar com diferentes públicos e culturas ao longo dos séculos atesta a relevância e a capacidade de adaptar-se a novos contextos. Elas continuam sendo uma ferramenta essencial para a educação infantil – e para todas as idades, já que o homem de hoje ainda não aprendeu a conviver em harmonia com o Outro –, contribuindo para a formação de leitores que fazem a diferença no mundo quando o assunto é saber viver.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia completa: conforme as disposições do autor. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

ESOPO. Fábulas de Esopo. Adaptação de Elli Woollard. Ilustração de Marta Altés. Tradução de Susana Cardoso Ferreira. 1. ed. – Amadora: Fábula, 2020.

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 1Discente do curso de Licenciatura Plena em Letras – Língua Portuguesa – pelo Instituto Federal do Pará, campus Belém.

2Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), coordenadora do Grupo de Estudos Literários e Linguísticos da Amazônia (GELLA) e pesquisadora do grupo de pesquisa Linguagem, Literatura e Tecnologia na Amazônia, ambos do IFPA.