REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202506301024
Thiago Pereira Dantas1
Felipe Lopes de Lima2
Resumo
O presente artigo científico propõe-se a analisar as inconstitucionalidades praticadas no cenário jurídico brasileiro contemporâneo, com especial atenção à atuação do Supremo Tribunal Federal (STF). A pesquisa investiga o descompasso existente entre o texto e o espírito da Constituição Federal de 1988, a jurisprudência consolidada e as decisões recentes proferidas pela Suprema Corte. Serão abordados casos específicos, no período compreendido entre 2017 e 2025, com ênfase nas decisões de 2022 até os dias atuais, nas quais há a desconsideração de precedentes válidos anteriormente estabelecidos. Discute-se o impacto dessa mutabilidade jurisprudencial na segurança jurídica, na previsibilidade do direito e na estabilidade do sistema jurídico-constitucional brasileiro, levantando questionamentos sobre os limites da discricionariedade judicial e a necessidade de justificação para o overruling.
Palavras-chave: Inconstitucionalidade, Segurança Jurídica, Supremo Tribunal Federal, Jurisprudência, Precedentes, Mutabilidade Jurisprudencial.
Abstract
This scientific article aims to analyze the unconstitutionalities practiced in the contemporary Brazilian legal scenario, with special attention to the performance of the Supreme Federal Court (STF). The research investigates the disparity between the text and the spirit of the 1988 Federal Constitution, consolidated jurisprudence, and recent decisions issued by the Supreme Court. Specific cases will be addressed, from 2017 to 2025, with an emphasis on decisions from 2022 to the present day, in which previously established valid precedents have been disregarded. The impact of this jurisprudential mutability on legal certainty, the predictability of law, and the stability of the Brazilian legal constitutional system will be discussed, raising questions about the limits of judicial discretion and the need for justification for overruling.
Keywords: Unconstitutionality, Legal Certainty, Supreme Federal Court, Jurisprudence, Precedents, Jurisprudential Mutability.
1. Introdução
A Constituição Federal de 1988 representa o pilar da redemocratização do Brasil, instituindo um Estado Democrático de Direito alicerçado em princípios e garantias fundamentais. Ao Supremo Tribunal Federal (STF), coube a missão primordial de interpretar e aplicar a Carta Magna, de modo a assegurar a estabilidade e a previsibilidade do sistema jurídico. No entanto, o cenário contemporâneo revela uma crescente percepção de inconstitucionalidades, muitas vezes emanadas da própria Corte Suprema.
Este aparente descompasso entre o papel do STF e sua atuação recente acende um alerta sobre a segurança jurídica, um princípio basilar para a confiança dos cidadãos e para a solidez das relações sociais e econômicas. A mutabilidade excessiva e, por vezes, injustificada da jurisprudência, especialmente quando ignora precedentes consolidados sem um processo de superação (overruling) claro e bem fundamentado, gera um ambiente de incerteza e fragiliza a legitimidade institucional. Este artigo propõe-se a investigar, de maneira crítica, decisões proferidas pelo STF nos últimos oito anos, com foco especial no período de 2022 a 2025, para analisar a materialização de inconstitucionalidades e seus efeitos na ordem jurídica nacional.
2. Fundamentação Teórica: Segurança Jurídica e o Dever de Coerência
A pesquisa se ancora em uma sólida base teórica do Direito Constitucional, da Hermenêutica e da Teoria dos Precedentes. A “Teoria da Segurança Jurídica” de Humberto Ávila é fundamental para compreender a necessidade de estabilidade e previsibilidade no direito. Em paralelo, a crítica de Lenio Luiz Streck à discricionariedade judicial, exposta em “Hermenêutica Jurídica em Crise”, questiona a liberdade decisória que ignora os contornos normativos.
A teoria de Ronald Dworkin sobre a “integridade” e a “coerência” do direito, apresentada em “O Império do Direito”, serve como um contraponto crucial à prática de decisões que parecem isoladas e contraditórias. A integridade exige que os juízes interpretem a lei de forma consistente com os princípios que a justificam, tratando o ordenamento como um todo coeso. A atuação do STF é também analisada à luz das obras de seus próprios membros, como Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, que discorrem sobre ativismo judicial e controle de constitucionalidade. A discussão é complementada pelas lições de processualistas como Fredie Didier Jr., que detalha o sistema de precedentes introduzido pelo Código de Processo Civil de 2015, o qual busca precisamente fortalecer a estabilidade jurisprudencial.
3. Metodologia
A investigação adota uma abordagem qualitativa, de natureza exploratória e descritiva, utilizando como método a pesquisa bibliográfica e documental. A coleta de dados foi estruturada em duas frentes: (1) um levantamento da doutrina especializada sobre segurança jurídica, hermenêutica e teoria dos precedentes; e (2) uma análise aprofundada de acórdãos e súmulas do STF. O foco foi identificar jurisprudências consolidadas a partir de 2017 e decisões recentes (2022-2025) que configuram uma clara mudança de rumo em relação a entendimentos anteriores. A análise de conteúdo dessas decisões permite um confronto direto com a doutrina, buscando identificar padrões de mutabilidade e a ausência de justificativas robustas para tais alterações.
4. Resultados e Discussão: Análise de Casos Paradigmáticos
Os resultados confirmam uma preocupante tendência de instabilidade jurisprudencial no STF, com a desconsideração de entendimentos consolidados em temas de grande repercussão. Os casos a seguir ilustram este cenário.
Caso 1: A “Jurisprudência Pêndulo” da Execução Provisória da Pena
- Tema Jurídico: A possibilidade de iniciar o cumprimento da pena de prisão após uma condenação em segunda instância, antes do trânsito em julgado.
- Controvérsia e Mutabilidade: A posição do STF sobre o tema oscilou de forma drástica, criando um verdadeiro “pêndulo jurisprudencial”. Em 2009, no julgamento do HC 84.078, a Corte firmou o entendimento de que a execução da pena só poderia ocorrer após o esgotamento de todos os recursos (trânsito em julgado). Sete anos depois, em 2016, uma virada radical: no HC 126.292, o STF promoveu um overruling e voltou a permitir a prisão após a condenação em segunda instância. Contudo, em 2019, em uma nova reviravolta no julgamento das ADCs 43, 44 e 54, a Corte reverteu mais uma vez seu posicionamento, restabelecendo a necessidade do trânsito em julgado.
- Discussão e Impacto Prático: Esta instabilidade é o exemplo mais notório do impacto da mutabilidade jurisprudencial na vida dos cidadãos. A cada mudança, a segurança jurídica foi profundamente abalada, afetando a liberdade de milhares de pessoas, que foram presas e, posteriormente, soltas com base na mesma Constituição, mas sob interpretações opostas. Essa oscilação alimentou um intenso debate público sobre a politização do Judiciário e a força do princípio da presunção de inocência, gerando insegurança não apenas para os réus, mas para todo o sistema de justiça criminal.
Caso 2: A Relativização da Coisa Julgada em Matéria Tributária
- Tema Jurídico: A estabilidade de uma decisão judicial definitiva (coisa julgada) que beneficia um contribuinte, frente a uma decisão posterior do STF que declara a constitucionalidade do tributo antes afastado.
- Jurisprudência Consolidada: Por décadas, o entendimento pacífico era o da imutabilidade da coisa julgada, conforme o artigo 5º, XXXVI, da Constituição. Empresas e pessoas físicas que obtinham na justiça o direito de não pagar um determinado tributo podiam confiar nessa decisão para realizar seus planejamentos financeiros e tributários de longo prazo.
- Decisão Recente Divergente (2023): Em uma das decisões mais controversas de sua história, ao julgar os Recursos Extraordinários 949.297 e 955.227, o STF estabeleceu que a decisão judicial favorável ao contribuinte perde seus efeitos se, anos depois, a Corte declarar o tributo constitucional em um julgamento de repercussão geral.
- Discussão e Impacto Prático: O impacto desta decisão na segurança jurídica é colossal. Empresas que, por décadas, estruturaram seus negócios com base em decisões judiciais transitadas em julgado, viram-se, de um dia para o outro, devedoras de tributos que a própria Justiça havia declarado indevidos. Isso gera um cenário de incerteza retroativa, destruindo planejamentos e minando a confiança no sistema judicial. A ausência de uma justificativa robusta para uma mudança tão drástica atenta contra os princípios da coerência e da integridade, dando a impressão de que o direito é um instrumento instável e imprevisível.
Caso 3: A Redefinição do Foro por Prerrogativa de Função
- Tema Jurídico: O alcance do foro especial (conhecido como foro privilegiado) para autoridades como deputados e senadores.
- Jurisprudência Consolidada: A interpretação histórica e literal da Constituição era ampla: uma vez diplomado parlamentar, todos os seus processos criminais, independentemente de terem ou não relação com o cargo, eram atraídos para o STF.
- Decisão Recente Divergente (2018): No julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal (AP) 937, o STF promoveu uma drástica restrição de sua própria competência. A Corte decidiu que o foro por prerrogativa de função só se aplica a crimes cometidos durante o exercício do mandato e que tenham relação direta com as funções desempenhadas.
- Discussão e Impacto Prático: Embora a decisão tenha sido amplamente celebrada pela opinião pública como um avanço contra a impunidade, ela representou uma reinterpretação constitucional com forte impacto em centenas de processos em andamento. A mudança abrupta das regras de competência no meio de investigações e ações penais ilustra o poder da Corte de redefinir o alcance de suas próprias atribuições, levantando debates sobre os limites do ativismo judicial e a estabilidade das regras processuais. Processos foram deslocados para a primeira instância, reiniciando fases processuais e gerando discussões sobre a validação de atos já praticados.
5. Conclusão
Este estudo analisou as inconstitucionalidades contemporâneas no Brasil, demonstrando o claro descompasso entre a Constituição, a jurisprudência estabelecida e recentes decisões do STF. Ficou evidente que, em temas cruciais, a Suprema Corte tem desconsiderado precedentes firmados nos últimos anos, com especial intensidade entre 2022 e 2025, gerando instabilidade e imprevisibilidade.
Conclui-se que a mutabilidade jurisprudencial, quando não acompanhada de uma justificativa clara e robusta, compromete severamente a segurança jurídica e a previsibilidade do direito, pilares do Estado de Direito. A desconsideração de precedentes consolidados mina a confiança dos cidadãos e das instituições, gerando um cenário de incerteza sobre a aplicação futura da lei. Diante do exposto, é imperativo que o Supremo Tribunal Federal, na sua função de guardião da Constituição, atue com maior coerência e integridade. A superação de um precedente deve ser um ato excepcional, transparente e devidamente justificado, a fim de preservar a estabilidade do ordenamento jurídico brasileiro. O equilíbrio entre a necessária evolução do direito e a manutenção da segurança jurídica é vital para a saúde do Estado de Direito.
6. Referências Bibliográficas
Doutrina (Livros e Artigos)
- ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2021.
- BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
- CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
- DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Meios de Impugnação às Decisões Judiciais e Processo nos Tribunais. v. 3. 18. ed. Salvador: JusPodivm, 2022.
- DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
- MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
- SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: Teoria, História e Métodos de Trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
- STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica em Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
- STRECK, Lenio Luiz. O STF e a Coisa Julgada Tributária: o impossível overruling e a afronta à CF. Revista Consultor Jurídico (ConJur), fev. 2023.
- TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
Jurisprudência (Casos Citados)
- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 43. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgamento: 07/11/2019.
- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal (AP) 937 QO. Relator: Min. Roberto Barroso. Julgamento: 03/05/2018.
- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus (HC) 126.292. Relator: Min. Teori Zavascki. Julgamento: 17/02/2016.
- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) 949.297. Relator: Min. Edson Fachin. Redator do Acórdão: Min. Luiz Fux. Julgamento: 08/02/2023. (Tema 881 da Repercussão Geral).
- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE) 955.227. Relator: Min. Roberto Barroso. Julgamento: 08/02/2023. (Tema 885 da Repercussão Geral)
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