ENTRE A SUPERLOTAÇÃO E A IMPUNIDADE: OS VERDADEIROS DESAFIOS DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202506281517


Marcos José de Moraes Affonso Júnior
Diogenes José Gusmão Coutinho


Resumo – O presente estudo aborda a crise do sistema prisional brasileiro, questionando a narrativa predominante de “encarceramento em massa” e focando nos desafios reais que comprometem a segurança pública e a efetividade da justiça. A metodologia empregada foi a análise documental e o estudo de casos, com abordagem qualitativa e descritiva. Foram analisados dados oficiais da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) e do SINESP, estudos acadêmicos sobre morosidade judicial, e casos ilustrativos da imprensa, com o objetivo de desmistificar a percepção de que o Brasil “prende demais”. Os resultados demonstram que, em termos proporcionais, o país não se destaca globalmente em taxas de aprisionamento, e que uma parcela significativa das pessoas sob restrição de liberdade não se encontra em celas físicas. Contudo, a precariedade estrutural das unidades prisionais, a ineficácia na gestão de recursos (com R$ 1,1 bilhão do Fundo Penitenciário Nacional – Funpen – parados nos estados) e a morosidade judicial (mediana de 9 anos para a conclusão de casos de homicídio) geram elevados índices de impunidade. Adicionalmente, políticas de desencarceramento, exemplificadas pela Resolução CNJ nº 474/2022 e por casos de reincidência de crimes graves, contribuem para a percepção de que o crime compensa, minando a confiança social no sistema de justiça. Conclui-se que o problema central não é o excesso de encarceramento, mas a ineficácia da sanção penal. Recomenda-se uma mudança de paradigma, priorizando a efetividade da punição, o aparelhamento das instituições de justiça e a celeridade processual para restaurar a confiança social e reduzir a criminalidade.

Palavras-chave: Sistema Prisional Brasileiro; Impunidade; Criminalidade; Desencarceramento; Morosidade Judicial; Efetividade da Pena; Segurança Pública.

Abstract: This study addresses the crisis of the Brazilian prison system, questioning the predominant narrative of “mass incarceration” and focusing on the real challenges that compromise public security and the effectiveness of justice. The methodology employed was documentary analysis and case studies, with a qualitative and descriptive approach. Official data from the National Penitentiary Department (SENAPPEN) and SINESP, academic studies on judicial sluggishness, and illustrative press cases were analyzed to demystify the perception that Brazil “imprisons too much.” The results demonstrate that, in proportional terms, the country does not stand out globally in incarceration rates, and that a significant portion of individuals under restriction of liberty are not held in physical cells. However, the structural precariousness of prison units, the ineffective management of resources (with R$ 1.1 billion from the National Penitentiary Fund – Funpen – unspent in the states), and judicial sluggishness (a median of 9 years for the conclusion of homicide cases) lead to high rates of impunity. Additionally, decarceration policies, exemplified by CNJ Resolution No. 474/2022 and by cases of serious crime recidivism, contribute to the perception that crime pays, undermining public trust in the justice system. It is concluded that the central problem is not excessive incarceration, but the ineffectiveness of penal sanction. A paradigm shift is recommended, prioritizing the effectiveness of punishment, the equipping of justice institutions, and procedural celerity to restore social trust and reduce criminality.

Keywords: Brazilian Prison System; Impunity; Criminality; Decarceration; Judicial Sluggishness; Effectiveness of Punishment; Public Security.

1. INTRODUÇÃO: O debate sobre criminalidade e sistema penitenciário no Brasil exige uma análise distante de ideologias e apartada de perspectivas políticopartidárias. Estudos rigorosos precisam se fundamentar em dados concretos e, principalmente, em interpretações isentas de vieses extremados – tanto do espectro à direita quanto à esquerda. Em meio à polarização, a realidade da execução penal frequentemente se torna refém de discursos distorcidos e simplificações.

No imaginário coletivo, o Brasil é frequentemente apontado como “um dos países que mais prende no mundo”. Contudo, uma análise crítica revela que o principal problema do sistema penitenciário nacional não reside necessariamente na quantidade absoluta de pessoas presas, mas sim na qualidade, dignidade e eficiência das unidades prisionais e na real capacidade do Estado de aplicar corretamente as penas privativas de liberdade. A punição é componente essencial para a manutenção da ordem em sociedades democráticas, contribuindo para a contenção da criminalidade a um nível tolerável e compatível com a convivência social. Ressalte-se, porém, que o crime é inerente à condição humana e jamais será plenamente erradicado; o papel do Estado, portanto, é garantir mecanismos que mantenham a violência e a delinquência dentro de limites socialmente aceitáveis.

Entretanto, não é novidade que, no Brasil, o sistema carcerário apresenta graves deficiências, como superlotação crônica, condições insalubres e a inexistência de políticas efetivas de ressocialização. Esse cenário compromete tanto a dignidade dos apenados quanto a eficácia da punição, minando qualquer expectativa de ressocialização.

Este artigo busca discutir esses desafios, problematizando diagnósticos superficiais e apontando caminhos para um debate mais honesto e fundamentado sobre punição, prisão e justiça no Brasil, desconstruindo mitos e analisando a ineficácia da resposta estatal frente à violência endêmica e as implicações das políticas de desencarceramento.

2. Mitos e Realidades da População Prisional Brasileira: Desconstruindo a Narrativa do “Encarceramento em Massa”

O debate sobre o sistema prisional brasileiro é frequentemente permeado por narrativas que o descrevem como um modelo de “encarceramento em massa”. Contudo, uma análise aprofundada dos dados e da realidade da execução penal revela que essa percepção é, em grande parte, um mito que desvirtua a discussão e impede a formulação de políticas públicas eficazes.

De acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), por meio do Sistema Nacional de Informações Penais (SISDEPEN), em seu 17º ciclo (julho a dezembro de 2024), o Brasil registrava um total de 905.316 pessoas sob restrição de liberdade. É crucial, entretanto, detalhar a composição desse número para uma compreensão precisa :

670.265 indivíduos estavam em celas físicas, abrangendo regimes fechado, semiaberto e aberto, além de presos provisórios.

122.102 encontravam-se em prisão domiciliar com monitoramento eletrônico.

112.949 estavam em prisão domiciliar sem monitoramento eletrônico.

Essa distinção é fundamental, pois grande parte dos indivíduos vinculados aos regimes semiaberto e aberto, na prática, não cumpre pena em ambientes prisionais fechados. Conforme o Artigo 33, §1º, alínea “c”, do Código Penal (BRASIL, 1940), o regime aberto deveria ser cumprido em casa de albergado ou estabelecimento similar, estrutura que é amplamente inexistente na maioria dos municípios brasileiros. Situação análoga ocorre no regime semiaberto, onde a ausência de colônias agrícolas ou industriais frequentemente resulta no cumprimento da pena em regime domiciliar. Assim, o número de pessoas efetivamente alocadas em regime fechado – ocupando vagas nas instituições prisionais – é consideravelmente inferior ao total de “pessoas sob restrição de liberdade”. Inflar estatísticas com indivíduos que não estão em privação total de liberdade física desvirtua o debate público e dificulta a formulação de políticas efetivas para a execução penal.

Para contextualizar o cenário brasileiro em uma perspectiva global, é relevante analisar os dados de encarceramento proporcionalmente à população. Embora o Brasil detenha a terceira maior população prisional do mundo em números absolutos, atrás apenas dos Estados Unidos e da China, essa posição se altera drasticamente quando se considera a taxa de aprisionamento por 100 mil habitantes. Segundo o World Prison Brief, do Instituto de Pesquisa em Política Criminal da Universidade de Londres, o país ocupa a 13ª posição global, com aproximadamente 389 pessoas presas para cada 100 mil habitantes. Este índice é inferior ao de nações como Turquia, Uruguai e, notavelmente, Estados Unidos.

A relativização desses números é crucial para desmistificar a ideia de que o Brasil “prende demais”. Pelo contrário, a questão central reside na ausência de investimentos e de políticas estruturantes que garantam instalações adequadas ao cumprimento da pena e promovam a correta aplicação das normas penais.

A tese de que o Brasil não é um país de “encarceramento em massa” torna-se ainda mais evidente quando confrontamos os dados de aprisionamento com a alarmante taxa de criminalidade. Entre 2015 e 2024, o país registrou 521.493 vítimas de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI), que incluem homicídio, latrocínio e lesão corporal seguida de morte, conforme dados do SINESP/Ministério da Justiça. Adicionalmente, no mesmo período, houve 426.588 vítimas de tentativas de homicídio. A soma desses dois indicadores resulta em uma impressionante marca de 948.081 vítimas em apenas nove anos, considerando apenas esses delitos mais graves.

É fundamental ressaltar que esses números representam apenas uma fração da criminalidade total, sem contabilizar a vasta gama de outros crimes graves previstos no Código Penal e em leis especiais, como estupro, roubo, sequestro e extorsão, por exemplo. Os registros oficiais, inclusive, provavelmente subestimam a dimensão real do problema, dada a subnotificação por medo de represálias ou envolvimento em atividades ilícitas que desestimulam o acionamento policial.

Dessa forma, a comparação entre o volume de crimes cometidos e o número de pessoas efetivamente privadas de liberdade em celas físicas, ou mesmo sob outras formas de restrição, sugere que o Brasil, em vez de prender em massa, demonstra uma capacidade limitada de resposta estatal frente à magnitude da violência. A baixa efetividade na aplicação da lei e na responsabilização dos infratores contribui diretamente para a sensação de impunidade, que, por sua vez, retroalimenta o ciclo da criminalidade.

3. Os Verdadeiros Desafios: Precariedade Estrutural, Ineficácia da Resposta Estatal e a Morosidade da Justiça

A crise do sistema prisional brasileiro transcende a mera discussão sobre o volume de pessoas encarceradas, revelando desafios estruturais profundos que comprometem a dignidade humana, a eficácia da punição e a própria capacidade do Estado de garantir a ordem social. O problema central reside na precariedade dos estabelecimentos penais, na ineficácia da resposta estatal e na urgência de reformas estruturais capazes de alinhar o cumprimento da pena aos princípios constitucionais da dignidade humana e da proporcionalidade .

Não é novidade que o sistema carcerário brasileiro apresenta graves deficiências, que se manifestam em diversos níveis. A superlotação crônica, as condições insalubres, a falta de separação entre presos provisórios e condenados, os relatos recorrentes de tortura, a corrupção institucionalizada e a inexistência de políticas efetivas de ressocialização são apenas alguns dos problemas que transformam muitas unidades prisionais em ambientes que se assemelham a “masmorras medievais”. Esse cenário não apenas viola sistematicamente os direitos humanos dos apenados, mas também mina qualquer expectativa de ressocialização e compromete a própria finalidade da pena (Entre a Superlotação e a Impunidade, Introdução).

A essa precariedade estrutural soma-se a limitada capacidade das polícias judiciárias, do Ministério Público e do Poder Judiciário para investigar, processar e julgar o vasto volume de delitos graves. Essa limitação não apenas contribui para a sobrecarga do sistema, mas, crucialmente, perpetua elevados índices de impunidade, especialmente frente aos crimes violentos.

Um aspecto que agrava ainda mais a situação é a ineficiência na gestão de recursos destinados à melhoria do sistema prisional. Dados recentes revelam que, entre 2016 e 2023, o Ministério da Justiça calculou que os estados deixaram de utilizar 41,7% do total de verbas enviadas via Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), totalizando R$ 1,1 bilhão em recursos parados. Essa inação demonstra que, mesmo havendo dotação orçamentária para a criação de vagas dignas e a melhoria das condições carcerárias, os estados falham em aplicar esses recursos. Tal cenário não apenas impede a construção de novas unidades e a reforma das existentes, mas também agrava a superlotação e a precariedade, evidenciando que a falta de infraestrutura não é apenas uma questão de ausência de verba, mas de deficiência na gestão e execução de políticas públicas (EXAME.com, 2024).

Um dos fatores mais impactantes na ineficácia da resposta estatal é a morosidade da justiça. O tempo prolongado entre a ocorrência de um crime e a prolação de uma condenação definitiva, com trânsito em julgado, não apenas sobrecarrega o sistema e contribui para a superlotação de presos provisórios, mas, de forma mais grave, gera uma sensação generalizada de impunidade. Quando a justiça é tardia, ela perde parte de seu caráter preventivo e retributivo. A percepção de que mesmo os poucos casos que chegam aos tribunais demoram a ser resolvidos, ou que a pena pode ser protelada indefinidamente, desestimula a denúncia, mina a confiança nas instituições e, paradoxalmente, reforça a tese de que o Brasil, apesar de sua alta criminalidade, prende pouco em termos de efetividade e celeridade da sanção penal.

A persistência dessa morosidade é evidenciada por estudos recentes. Conforme a pesquisa “Mensurando o tempo do processo de homicídio: dez anos depois”, que atualiza um levantamento pioneiro de 2014, pouca coisa mudou na morosidade do Judiciário brasileiro em dar respostas aos assassinatos cometidos no país em uma década. Os resultados preliminares, obtidos a partir de dados do sistema DataJud do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) referentes a 2023, revelam tempos de processamento alarmantes para casos de homicídio doloso:

Inquéritos Policiais: 50% dos inquéritos são encerrados em 2,5 anos.

Ações Penais: 50% das ações penais são concluídas em 6,5 anos.

Tempo Mediano Total: Ao somar as duas fases, um caso que avança do inquérito para a ação penal tem um tempo mediano de nove anos para ser encerrado. Este dado se aproxima muito dos 8,5 anos constatados na pesquisa original de 2014, indicando uma estagnação na celeridade processual (O tempo de processamento de casos de homicídios na Justiça brasileira, Seção “O que os dados do DataJud nos dizem sobre o tempo de processamento de homicídios no Brasil?”).

Ainda que existam variações por tipo de homicídio (feminicídios, por exemplo, apresentam uma mediana de 3 anos, indicando uma possível prioridade na tramitação, enquanto homicídios simples chegam a 9,5 anos) e entre unidades da federação, a marca da morosidade permanece. Estados como Minas Gerais (7,9 anos) e Rio Grande do Sul (6,9 anos) continuam entre os mais lentos, enquanto outros, como Rio de Janeiro (0,45 anos), Distrito Federal (0,6 anos) e Alagoas (0,8 anos), apesar de tempos medianos mais curtos, apresentam alto desvio padrão, sugerindo que muitos casos se arrastam por décadas (O tempo de processamento de casos de homicídios na Justiça brasileira, Seção “A morosidade dos processos de homicídio e sua baixa elucidação”).

Para ilustrar a complexidade e as consequências dessa dinâmica, mesmo em situações de crimes de alta gravidade que alcançam a fase de condenação, é pertinente analisar casos concretos que reverberam na percepção pública. Um exemplo notório ocorreu em Fortaleza, Ceará, em janeiro de 2024. Edilson Florência da Conceição foi detido em flagrante por estupro de vulnerável, após ser flagrado por policiais tentando imobilizar a vítima, Renata Coan Cuduh, de 19 anos, com um golpe de “mata-leão” enquanto ela estava sob efeito de álcool. O agressor, que possuía treinamento em artes marciais, foi contido no local (G1 Ceará, 2024a).

Apesar da celeridade relativa do processo, que culminou em sua condenação a 8 anos de prisão por estupro de vulnerável e 2 meses por resistência à prisão em 5 de junho do mesmo ano, Edilson foi colocado em liberdade apenas quatro dias depois, em 9 de junho. A decisão da magistrada da 5ª Vara Criminal de Fortaleza, Adriana Aguiar Magalhães, que proferiu a sentença condenatória, concedeu-lhe o direito de recorrer em liberdade, fundamentando-se em sua “primariedade e bons antecedentes” (G1 Ceará, 2024b).

Este desfecho, embora formalmente amparado por prerrogativas processuais penais, expõe de forma contundente a fragilidade da efetivação da sanção penal no contexto brasileiro. A imediata liberação de um indivíduo condenado por um crime hediondo, mesmo que primário, gera uma profunda sensação de impunidade na sociedade e, mais dolorosamente, para a vítima. Tal situação evidencia como a priorização de determinadas garantias processuais do réu pode, na prática, esvaziar a percepção de justiça e a segurança da vítima, relegando-a a um segundo plano. O caso de Renata Coan Cuduh serve como um lembrete vívido de que, mesmo diante da gravidade do delito e da formalização da condenação, a resposta estatal pode falhar em coibir a impunidade e em proteger a sociedade, reforçando a tese de que o verdadeiro desafio do sistema prisional brasileiro não reside em um suposto “encarceramento em massa”, mas sim na ineficácia e na morosidade que perpetuam a sensação de que o crime compensa, minando a confiança na justiça.

A gravidade dessa ineficácia é ainda mais acentuada quando se observa a reincidência criminosa em decorrência de falhas na aplicação da pena. O caso de Wendel Silva Machado, no Maranhão, é um exemplo trágico dessa realidade. Condenado a 24 anos e 9 meses de prisão pelo feminicídio de Carla Tayra Sousa de Oliveira, ocorrido em janeiro de 2021 em Imperatriz, Wendel foi preso pela Polícia Civil do Maranhão (PC-MA) e permaneceu detido por apenas três meses antes de ser liberado para responder ao crime em liberdade (G1 Maranhão, 2022).

A leniência do sistema teve consequências devastadoras. Em agosto de 2024, Wendel Silva Machado cometeu outro feminicídio, vitimando sua ex-companheira, a indígena Joanilde Paulino Guajajara, de 33 anos, em Amarante do Maranhão. Joanilde, técnica de enfermagem e mãe de quatro filhas (duas com o agressor), foi brutalmente assassinada a facadas na frente de duas crianças. A polícia já havia autuado Wendel em flagrante por lesão corporal contra Joanilde em 2014, evidenciando um histórico de violência que não foi adequadamente contido pelo sistema de justiça (G1 Maranhão, 2024).

Este caso ilustra de forma contundente como a falha em manter criminosos de alta periculosidade sob custódia efetiva e a morosidade na conclusão definitiva de processos podem ter um custo social incalculável. A liberação prematura de um indivíduo já acusado de um crime hediondo, como o feminicídio, e com histórico de violência, não apenas expõe a sociedade a riscos desnecessários, mas também demonstra a incapacidade do Estado em proteger as vítimas e em prevenir a reincidência. A reiteração de crimes graves por um mesmo indivíduo, que já havia sido objeto de atenção do sistema de justiça, reforça a percepção de que a impunidade é um fator central na perpetuação da violência no Brasil, e que a atenção devida aos crimes graves e a seus autores é frequentemente negligenciada.

4. A Política de Desencarceramento e suas Implicações na Segurança Pública

Apesar dos alarmantes índices de criminalidade que posicionam o Brasil entre os países mais violentos do mundo, conforme já discutido nas seções anteriores, a efetividade da aplicação da lei e da sanção penal tem sido consistentemente questionada. Observa-se uma correlação preocupante entre o enfraquecimento da punição e o aumento dos índices de criminalidade, um fenômeno que mina a capacidade do Estado de garantir a ordem e a segurança pública. A punição, em sua essência, visa não apenas à retribuição e à ressocialização, mas também à dissuasão (prevenção geral e especial) e à incapacitação (impedir que o criminoso cometa novos delitos enquanto privado de liberdade). Quando esses pilares são fragilizados, a criminalidade tende a prosperar, alimentada pela percepção de impunidade.

Um exemplo concreto dessa fragilização reside em decisões recentes que, na prática, mitigam a execução de penas já impostas. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, tem se posicionado sobre a execução de mandados de prisão para regimes menos gravosos. A Resolução CNJ nº 474, de 20 de setembro de 2022, que dispõe sobre a expedição de mandados de prisão para o início do cumprimento de pena em regime aberto ou semiaberto, recomenda que:

“Art. 1º Recomendar aos Tribunais e aos magistrados com competência criminal que, nos casos de condenação à pena privativa de liberdade em regime inicial aberto ou semiaberto, quando o réu tiver respondido ao processo em liberdade, não seja expedido mandado de prisão para o início do cumprimento da pena, devendo ser intimado para dar início ao cumprimento da pena nas condições estabelecidas. Art. 2º Recomendar que os mandados de prisão expedidos em desconformidade com o art. 1º desta Resolução sejam recolhidos.” (BRASIL. CNJ, Resolução nº 474, 2022)

Esta diretriz implica que indivíduos já condenados a penas privativas de liberdade, mesmo que em regimes mais brandos como o aberto ou semiaberto, e que aguardavam o trânsito em julgado em liberdade, não terão seus mandados de prisão executados para o início do cumprimento da pena. Em vez disso, esses mandados devem ser “recolhidos” – ou seja, suspensos ou cancelados – permitindo que o condenado permaneça em liberdade e seja apenas intimado a cumprir as condições do regime. Embora a intenção possa ser a de desafogar o sistema prisional ou evitar o encarceramento desnecessário para regimes que não exigem reclusão integral, a consequência prática é a não efetivação imediata da sanção penal.

Essa e outras medidas, que se inserem em um contexto mais amplo de política de desencarceramento, têm sido implementadas no país. Embora o discurso por trás dessas políticas frequentemente aponte para a necessidade de humanização do sistema prisional e redução da superlotação, a sua aplicação, sem as devidas estruturas de acompanhamento e fiscalização, pode inadvertidamente contribuir para o aumento dos índices de criminalidade. A sociedade, em geral, espera que a ocorrência de um crime resulte em uma punição efetiva, servindo não apenas como retribuição pelo ato cometido, mas também como um exemplo dissuasório para outros potenciais infratores e como garantia de que o criminoso não reincidirá. Quando essa expectativa é frustrada pela não efetivação da pena, a confiança no sistema de justiça é abalada e a percepção de que o crime “compensa” se fortalece, impactando diretamente a segurança pública.

5. Conclusões

Este estudo buscou desmistificar a narrativa predominante de que o Brasil é um país que “prende em excesso”, argumentando que os verdadeiros desafios do sistema prisional brasileiro residem na precariedade estrutural, na ineficácia da resposta estatal e na morosidade da justiça, que culminam em elevados índices de impunidade e na perpetuação da violência.

A análise dos dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) revelou que, embora o número absoluto de pessoas sob restrição de liberdade seja expressivo, uma parcela significativa não se encontra em celas físicas, e a taxa de aprisionamento proporcional à população coloca o Brasil em uma posição intermediária no cenário global, desqualificando a ideia de um “encarceramento em massa”. O problema não é a quantidade de presos, mas a qualidade e a dignidade das condições prisionais, que são cronicamente deficientes, e a incapacidade de gerir eficazmente os recursos disponíveis, como evidenciado pelo 1.1 bilhão de reais do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) que permanece parado nos estados. Essa talvez seja a maior demonstração de que não se leva com seriedade o combate à criminalidade dentro do respeito e dignidade que o próprio Estado exige.

Adicionalmente, demonstrou-se que a morosidade processual é um fator crítico na fragilização da justiça. O tempo mediano de nove anos para a conclusão de casos de homicídio, conforme apontado por estudos recentes, não apenas sobrecarrega o sistema, mas, crucialmente, alimenta a sensação de impunidade. Essa lentidão, somada à limitada capacidade das instituições de segurança e justiça em investigar, processar e julgar o vasto volume de crimes, cria um cenário onde a criminalidade prospera, e a percepção de que o crime “compensa” se enraíza na sociedade.

A política de desencarceramento, embora possa ter intenções humanitárias e de desafogamento do sistema, foi analisada sob a ótica de suas implicações práticas. Decisões como a Resolução CNJ nº 474/2022, que recomenda o não recolhimento de mandados de prisão para regimes abertos e semiabertos, ilustram como a priorização de garantias processuais, sem o devido contraponto de uma efetiva fiscalização e aplicação da pena, pode resultar na não efetivação da sanção penal. Os casos emblemáticos de Edilson Florência da Conceição e Wendel Silva Machado serviram como trágicos exemplos de como a leniência do sistema e a falha em manter criminosos de alta periculosidade sob custódia podem levar à reincidência e à vitimização de mais pessoas, reforçando a percepção de que a atenção devida aos crimes graves e a seus autores é frequentemente negligenciada.

Em suma, a crise do sistema prisional brasileiro não é uma questão de “prender demais”, mas sim de prender mal e punir de forma ineficaz. A alta criminalidade no país não é combatida por um sistema que falha em sua função de dissuasão e incapacitação, e que, por sua morosidade e ineficiência na gestão de recursos e na aplicação da lei, acaba por retroalimentar o ciclo da violência e da impunidade.

Para reverter esse quadro, é imperativo um paradigma que priorize a efetividade da sanção penal, com investimentos não apenas na construção de vagas dignas, mas, principalmente, na capacitação e aparelhamento das forças policiais, do Ministério Público e do Poder Judiciário para garantir a celeridade e a firmeza na aplicação da lei. Somente assim será possível restaurar a confiança da sociedade na justiça e, de fato, reduzir os alarmantes índices de criminalidade que assolam o país.

Referências

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resolução nº 474, de 20 de setembro de 2022. Dispõe sobre a expedição de mandados de prisão para o início do cumprimento de pena em regime aberto ou semiaberto. Disponível em: atos.cnj.jus.br. Acesso em: 14.06.2025.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Art. 33, §1º, alínea “c”.

BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN). SISDEPEN, 17º ciclo, julho-dezembro de 2024.

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). SINESP (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, Material Genético, Digitais e Drogas).

EXAME.com. Sistema carcerário tem R$ 1,1 bilhão em recursos para melhorias parados nos estados. Publicado em 12 de junho de 2024. Disponível em:exame.com. Acesso em: 06.06.2025.

G1 Ceará. Motorista de aplicativo é preso suspeito de estuprar passageira em Fortaleza. Publicado em 20 de janeiro de 2024a. Disponível em:g1.globo.com. Acesso em: 02.06.2025.

G1 Ceará. Motorista de aplicativo condenado por estupro de passageira é solto em Fortaleza. Publicado em 10 de junho de 2024b. Disponível em: g1.globo.com. Acesso em: 16.06.2025.

G1 Maranhão. Homem é condenado a mais de 24 anos de prisão por feminicídio em Imperatriz. Publicado em 13 de maio de 2022. Disponível em: g1.globo.com. Acesso em:16.06.2025.

G1 Maranhão. Homem que matou ex-companheira em Imperatriz é preso suspeito de matar outra ex-companheira em Amarante do Maranhão. Publicado em 28 de agosto de 2024. Disponível em: g1.globo.com. Acesso em:16.06.2025.

RIBEIRO, Ludmila; ROCHA, Rafael; CASTRO, Marcella. O tempo de processamento de casos de homicídios na Justiça brasileira. JOTA, 03 abr. 2025. Disponível em: www.jota.info. Acesso em:16.06.2025.