REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202505232313
Albuquerque, Larissa Lima de1
Blandi, Camila Parussolo Lima2
RESUMO
A violência doméstica constitui uma problemática de elevada complexidade, com impactos significativos na saúde pública e nos direitos humanos, afetando majoritariamente as mulheres. Este estudo teve como objetivo analisar a contribuição da enfermagem na assistência às vítimas de violência doméstica, identificando os desafios enfrentados pelos profissionais e propondo estratégias para fortalecer o acolhimento, a identificação precoce e o encaminhamento adequado, visando à melhoria da qualidade do cuidado e à mitigação dos impactos dessa problemática. Discutiram-se as diversas tipologias de violência — física, psicológica, sexual, patrimonial e moral — e seus efeitos na saúde das vítimas. O estudo baseou-se na análise crítica de artigos científicos dos últimos 10 anos, extraídos das bases SciELO e Google Scholar, considerando relevância e aplicabilidade ao contexto da enfermagem no enfrentamento à violência doméstica. Os achados indicam que os enfermeiros enfrentam desafios como subnotificação de casos, insuficiência de suporte institucional e falta de capacitação. Estratégias como a implementação de programas de formação contínua, o desenvolvimento de protocolos clínico assistenciais e a articulação interdisciplinar mostraram-se essenciais para potencializar a eficácia das intervenções. Conclui-se que a atuação da enfermagem, pautada em práticas éticas e fundamentadas em evidências científicas, consolida-se como um elemento basilar no enfrentamento à violência doméstica, promovendo a proteção das vítimas e contribuindo para a construção de uma sociedade mais equitativa e comprometida com a dignidade humana.
Palavras-chave: Assistência, Abuso, Proteção, Prevenção, Saúde da mulher
ABSTRACT
Domestic violence is a highly complex problem, with significant impacts on public health and human rights, affecting mostly women. This study aimed to analyze the contribution of nursing in the care of victims of domestic violence, identifying the challenges faced by professionals and proposing strategies to strengthen welcoming, early identification and appropriate referral, aiming to improve the quality of care and mitigate the impacts of this problem. The various types of violence — physical, psychological, sexual, patrimonial and moral — and their effects on the health of the victims were discussed. The study was based on a critical analysis of scientific articles from the last 10 years, extracted from the SciELO and Google Scholar databases, considering relevance and applicability to the context of nursing in coping with domestic violence. The findings indicate that nurses face challenges such as underreporting of cases, insufficient institutional support and lack of training. Strategies such as the implementation of continuing education programs, the development of clinical-care protocols, and interdisciplinary articulation proved to be essential to enhance the effectiveness of interventions. It is concluded that the performance of nursing, based on ethical practices and based on scientific evidence, is consolidated as a basic element in the fight against domestic violence, promoting the protection of victims and contributing to the construction of a more equitable society committed to human dignity.
Keywords: Assistance, Abuse, Protection, Prevention, Women’s Health
Introdução
A violência doméstica é uma problemática complexa e multifatorial, que se configura como uma grave questão de saúde pública e uma violação dos direitos humanos. Esse fenômeno afeta milhões de pessoas em todo o mundo, com maior prevalência entre mulheres, cujas vidas são impactadas de maneira profunda e duradoura, tanto fisicamente quanto psicologicamente. No Brasil, os dados são alarmantes, com cerca de três em cada dez mulheres já tendo sido vítimas de alguma forma de violência no ambiente doméstico. Apesar das conquistas legislativas e da expansão das redes de apoio, ainda existem lacunas significativas que prejudicam a eficácia das estratégias de acolhimento e proteção. A violência doméstica se manifesta em diferentes formas, incluindo abusos físicos, psicológicos, sexuais e patrimoniais, e, apesar dos avanços na conscientização e no reconhecimento jurídico dessa violência como uma transgressão dos direitos humanos, continua a exigir intervenções mais eficazes e estratégias mais assertivas para seu enfrentamento (Silva et al., 2024).
Nesse cenário, a profissão de enfermagem emerge como um componente essencial na linha de frente do enfrentamento à violência doméstica, assumindo um papel de notável relevância na identificação precoce dos sinais de abuso, no acolhimento humanizado e no direcionamento das vítimas para os serviços especializados. Todavia, a atuação dos profissionais da enfermagem é frequentemente cerceada por obstáculos significativos, tais como a ausência de capacitação direcionada, a inexistência de protocolos sistematizados e a recorrente subnotificação dos casos. Tais fatores não apenas comprometem a qualidade da assistência prestada, mas também dificultam a interrupção do ciclo de violência, perpetuando o estado de vulnerabilidade das vítimas (Sousa et al., 2024).
A investigação acerca dessa temática evidencia a premente necessidade de investimentos em capacitação técnica, estruturação de protocolos clínico assistenciais e fortalecimento da articulação interdisciplinar, como forma de aprimorar a atuação dos enfermeiros na abordagem desse problema. A relevância de tal análise transcende o âmbito da prática profissional, contribuindo para a formulação de políticas públicas mais efetivas e para a consolidação de redes de cuidado integradas.
Nesse sentido, o fortalecimento das estratégias de intervenção não apenas proporciona maior proteção às vítimas, mas também fomenta a construção de uma sociedade pautada pela equidade e pelo respeito à dignidade humana.
Propõe-se, como hipótese central deste estudo, que a implementação de programas de capacitação específicos para os profissionais de enfermagem, associados à incorporação de práticas embasadas em evidências científicas, contribui de maneira substancial para a identificação precoce, o acolhimento qualificado e a mitigação dos efeitos deletérios da violência doméstica. Assim, este trabalho almeja, por meio de uma análise crítica, identificar os desafios enfrentados pelos enfermeiros, evidenciar lacunas estruturais nos serviços de saúde e propor estratégias que visem a um aprimoramento contínuo da assistência.
Por fim, a abordagem dessa questão ressalta o protagonismo da enfermagem como um agente transformador no combate à violência doméstica. A prestação de uma assistência integral e humanizada, ancorada em protocolos robustos e práticas éticas, reafirma o compromisso da profissão com a promoção da saúde, a segurança e o bem-estar das vítimas, contribuindo de forma significativa para a redução das desigualdades sociais e a consolidação de uma sociedade mais justa e inclusiva.
Desenvolvimento
A violência doméstica constitui-se como um intrincado problema social de natureza pluridimensional, transversalizando a existência de indivíduos de distintas faixas etárias, identidades de gênero e estratos socioeconômicos. Em que pese a diversidade das vítimas, as mulheres persistem como o grupo populacional mais frequentemente atingido por essa modalidade de violência. Define-se a violência doméstica como qualquer ação ou omissão perpetrada no espaço doméstico ou familiar que acarrete danos de ordem física, sexual, psicológica ou patrimonial à pessoa vitimada. No Brasil, as mulheres vítimas de violência doméstica são amparadas por um conjunto abrangente de direitos legais e de saúde, estruturados para proporcionar suporte integral e sensível às suas demandas complexas (Lopes et al., 2025).
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) constitui o pilar fundamental desse arcabouço normativo, ao não apenas criminalizar a violência doméstica e familiar contra a mulher, mas também ao garantir, de forma explícita, o direito à assistência integral à saúde. Tal assistência abrange atendimento médico imediato para o tratamento de lesões físicas, acompanhamento psicológico destinado ao enfrentamento das sequelas emocionais e psíquicas, e suporte social para reconstrução da vida e acesso a serviços essenciais. Essa legislação preconiza uma assistência contínua, articulada entre diferentes pontos da rede de atendimento, assegurando uma abordagem integrada e multidisciplinar (Brasil, 2020; Brasil, 2023).
Santos et al. (2017) destacam que, desde o século XX, no Brasil, o Movimento Feminista tem se organizado em prol da defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres, dos ideais inerentes aos direitos humanos e da erradicação de todas as formas de discriminação, tanto no plano legal quanto nas práticas sociais.
A Lei nº 13.984/2020 aprimorou a Lei Maria da Penha ao introduzir medidas protetivas de urgência, como o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação e o acompanhamento psicossocial do ofensor.Já a Lei nº 14.550/2023 consolidou a aplicação da referida lei ao estipular que a causa ou a condição do agressor e da vítima não excluem sua aplicabilidade, além de reforçar a vigência das medidas protetivas enquanto houver risco à integridade da mulher (Brasil, 2020; Brasil, 2023).
Ao longo das décadas, a violência tem sido tema recorrente nas principais conferências internacionais voltadas às questões femininas. Contudo, foi apenas em 1993, durante a Conferência de Viena, que a violência contra as mulheres passou a ser reconhecida oficialmente como uma violação dos direitos humanos. Desde então, consolidou-se a ideia de que essa violência configura uma das mais graves transgressões dos direitos humanos das mulheres, uma vez que, em grande parte de suas formas, ocorre dentro dos espaços domésticos. A utilização do conceito de direitos humanos desloca essa violação do âmbito privado para o público, impondo ao Estado a responsabilidade de garantir a proteção igualitária de todos os cidadãos, com especial ênfase na garantia da cidadania plena das mulheres (Nascimento, 2020).
Um marco significativo para a assistência em saúde foi a promulgação da Lei nº 14.847/2024, que alterou a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990) para assegurar o atendimento individualizado e privativo às vítimas de violência doméstica no Sistema Único de Saúde (SUS), reconhecendo a necessidade de um ambiente acolhedor e de confiança. Essa abordagem complementa a prioridade no atendimento social, psicológico e médico instituída pela Lei nº 14.887/2024, que também viabiliza a realização de cirurgias plásticas reparadoras para vítimas de violência doméstica (Brasil, 2024a; Brasil, 2024b).
Dessa forma, a violência contra as mulheres é compreendida como um problema multifatorial, enraizado nas relações hierárquicas de poder entre homens e mulheres, refletindo as desigualdades que foram historicamente construídas e naturalizadas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica essa violência como uma questão global de saúde pública de proporções epidêmicas. No entanto, apesar dessa gravidade, observa-se que ainda são poucos os profissionais que reconhecem o fenômeno como uma questão que requer sua devida atenção (Nascimento, 2020).
Esses avanços legislativos se somam a iniciativas como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, que permanece um referencial estratégico para garantir o acesso universal e integral à saúde das mulheres, incluindo aquelas em situação de violência (Ministério da Saúde, [ano da publicação da política]). Complementarmente, programas do Ministério da Saúde, como as “Salas Lilás”, estabelecidas pela Lei nº 14.847/2024, e a inclusão de reconstrução dentária para vítimas no escopo do programa Brasil Sorridente, têm ampliado o cuidado humanizado e multidimensional (Portal Gov.br, 2025).
A violência doméstica no Brasil, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela um quadro preocupante e multifacetado. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, conduzida pelo IBGE, aponta que aproximadamente 29,1 milhões de pessoas com 18 anos ou mais foram vítimas de violência psicológica, física ou sexual no país em um único ano. O conjunto de direitos garantidos às mulheres materializa-se em ações concretas, desde o tratamento de lesões físicas até a profilaxia para Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) em casos de violência sexual. Acompanhamento psicológico, assistência social e acesso a abrigos seguros também integram esse aparato, com o objetivo de promover a autonomia financeira e a superação do ciclo de violência. Assim, o Brasil avança na construção de uma rede de proteção que contempla desde o cuidado emergencial até o acompanhamento de longo prazo, reafirmando o compromisso com a recuperação integral das mulheres vítimas de violência (Senado Notícias, 2025).
Especificamente em relação à violência contra a mulher, a pesquisa do IBGE demonstra que os principais agressores são, em grande parte, parceiros ou ex-parceiros. Entre as mulheres que sofreram violência física, 52,4% indicaram como autor o parceiro, ex-parceiro, namorado ou ex-namorado, ou ainda algum familiar. Essa dinâmica se repete na violência psicológica (32,0%) e sexual (53,3%), evidenciando que o ambiente doméstico é, frequentemente, o local onde essas agressões ocorrem.Um dado alarmante da PNS 2019 é que três em cada dez mulheres brasileiras declararam ter sofrido alguma forma de violência doméstica em suas vidas. Essa estatística sublinha a persistência e a abrangência desse problema no tecido social brasileiro (Senado Notícias, 2025).
A análise de Alcantara et al. (2024) elucida a conexão intrínseca entre a violência doméstica e as dinâmicas de poder e controle exercidas pelo agressor. Essa dominação frequentemente se dissimula sob relações de dependência emocional ou econômica, dificultando a identificação e a cessação do ciclo de violência. Tal perspectiva possibilita discernir as variadas formas pelas quais a violência pode manifestar-se, seja de modo isolado ou concomitante. Entre as tipologias mais recorrentes, sobressaem a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, cada qual com suas características e sequelas específicas na vida da vítima.
A violência física compreende atos que infligem dor, lesões corporais ou representam risco à vida da vítima, abrangendo agressões como bofetadas, contusões, escoriações e o emprego de armas ou objetos com o propósito de causar dano físico. Conquanto figure como uma das expressões mais evidentes de violência, raramente ocorre de maneira isolada, frequentemente coexistindo com outras tipologias, notadamente a violência psicológica. Esta, por sua vez, caracteriza-se por um conjunto de comportamentos que geram sofrimento emocional ou perturbações psicológicas na vítima, a exemplo de insultos, depreciações, ameaças, manipulação, controle obsessivo e isolamento social, afetando profundamente sua saúde mental, autoestima e bem-estar emocional (Silva et al., 2024).
A violência sexual concerne a qualquer ato de natureza sexual praticado sem o consentimento livre e esclarecido da vítima, englobando desde o assédio sexual até o estupro e outras formas de coerção sexual. Investigações indicam que essa modalidade de violência frequentemente se associa a outras formas de agressão, intensificando o trauma e o sofrimento infligido à vítima A violência patrimonial, a seu turno, consiste na destruição, subtração, retenção ou administração indevida dos bens materiais, documentos pessoais, recursos financeiros ou instrumentos laborais da vítima, configurando uma estratégia de sujeição econômica e de restrição de sua autonomia (Gomes et al., 2022).
Por fim, a autoimagem da vítima, como difamações, calúnias, injúrias e exposição vexatória. No contexto digital contemporâneo, essa forma de violência pode ser potencializada pela rápida disseminação de conteúdos depreciativos em plataformas virtuais e redes sociais ampliando o alcance do dano psicológico e social causado à vítima (Sousa et al., 2024),
É importante salientar que as distintas modalidades de violência doméstica frequentemente se interligam e se potencializam mutuamente, exacerbando as injúrias físicas e psíquicas experimentadas pela vítima. Essa interconexão agrava sobremaneira a situação de mulheres que se encontram em contextos de acentuada vulnerabilidade, como aquelas que vivenciam transtornos mentais, conforme assinalam estudos recentes. A apreensão aprofundada das diversas tipologias de violência doméstica revela-se, portanto, um elemento basilar para a formulação de políticas públicas eficazes e o desenvolvimento de estratégias de intervenção que ofereçam amparo integral e adequado às vítimas (Silva et al., 2020).
Alcantara et al. (2024) enfatizam que a violência doméstica transcende a mera ocorrência de atos isolados, manifestando-se frequentemente de maneira multifacetada e sendo intensificada por desigualdades estruturais de gênero profundamente inscritas na sociedade. Durante o período crítico da pandemia de Covid-19, as medidas de restrição de mobilidade implementadas para conter a disseminação do vírus exacerbaram os episódios de violência doméstica, concomitantemente dificultando o acesso das vítimas às redes de apoio e aos serviços de proteção.
Estudos recentes indicam que os profissionais de enfermagem, inseridos na linha de frente da assistência em saúde, defrontam-se com desafios consideráveis na identificação precoce e no suporte adequado às vítimas de violência doméstica. Tais desafios derivam, em parte, da insuficiência na formação especializada sobre o tema e das limitações institucionais existentes nos serviços de saúde. A análise rigorosa de dados epidemiológicos emerge como um instrumento essencial para fundamentar a formulação de políticas públicas robustas e para assegurar o desenvolvimento e a implementação de ações eficazes no enfrentamento da violência doméstica em suas diversas manifestações (Gomes et al., 2022; Sousa et al., 2024).
O enfrentamento eficaz da violência doméstica reclama a articulação de um conjunto abrangente de medidas preventivas e interventivas, que considerem os complexos determinantes sociais e culturais subjacentes a esse fenômeno. Os serviços de saúde exercem um mister crucial que extrapola o mero atendimento às vítimas, abrangendo também o fomento de iniciativas que visem mitigar os fatores de risco associados à ocorrência da violência, atuando na prevenção primária e secundária (Silva et al., 2024).
A atuação integrada e colaborativa entre os setores de saúde, assistência social e segurança pública configura-se como um esteio fundamental para ampliar o alcance e a efetividade das intervenções direcionadas às vítimas de violência doméstica. Investir em programas de capacitação periódica e continuada para os profissionais de saúde é imprescindível para aprimorar suas habilidades de identificação, acolhimento e manejo dos casos. Adicionalmente, a implementação de protocolos padronizados de atendimento pode favorecer a detecção precoce das situações de violência e garantir uma resposta mais coordenada e eficaz. A inserção da temática da violência doméstica nos currículos de formação em enfermagem, desde a graduação, pode contribuir significativamente para a edificação de práticas profissionais mais humanizadas, sensíveis e assertivas no cuidado às vítimas (Alcantara et al., 2024).
A violência doméstica é, indubitavelmente, uma problemática de saúde pública que demanda respostas intersetoriais e ações coordenadas para sua mitigação e erradicação. No contexto específico dos serviços de saúde, a enfermagem assume uma função singular e fundamental, atuando tanto na identificação precoce das vítimas quanto na oferta de suporte imediato e continuado. A presença constante e capilarizada dos profissionais de enfermagem em diversas unidades de saúde os posiciona em uma conjuntura estratégica privilegiada para intervir de forma sensível e eficaz em situações de violência (Alcantara et al., 2024).
O primeiro contato das vítimas de violência doméstica com os serviços de saúde frequentemente se estabelece pela mediação dos enfermeiros. Essa interação inicial reveste-se de crucial importância para a constituição de um vínculo de confiança entre o profissional e a vítima. Ao acolher as mulheres em situação de violência, os profissionais de enfermagem devem manifestar empatia genuína, respeito incondicional e assegurar a estrita confidencialidade das informações compartilhadas, propiciando um ambiente seguro e acolhedor para que estas se sintam à vontade para relatar suas experiências traumáticas. Essa abordagem humanizada é essencial para romper o silêncio que frequentemente envolve os episódios de violência doméstica (Gomes et al., 2022).
Os enfermeiros detêm, outrossim, a responsabilidade de identificar sinais e sintomas de violência que nem sempre são evidentes ou verbalizados pelas vítimas. Lesões físicas não explicadas, alterações comportamentais abruptas, manifestações de ansiedade, depressão e queixas psicossomáticas podem ser indícios de abuso. É, portanto, imprescindível que os profissionais de enfermagem estejam adequadamente habilitados para reconhecer essas sutilezas e conduzir uma investigação cuidadosa e sensível, abstendo-se de pressionar a vítima a discorrer sobre o que não se sente confortável em compartilhar, e sempre priorizando sua segurança e bem-estar (Silva et al., 2024).
Ademais do acolhimento e da identificação, os profissionais de enfermagem exercem uma função educativa fundamental, orientando as vítimas sobre seus direitos legais e os serviços de apoio disponíveis na rede de proteção. O desconhecimento das alternativas de suporte e dos mecanismos de denúncia constitui uma barreira significativa para que as mulheres consigam romper o ciclo de violência. Nesse sentido, os enfermeiros podem atuar como agentes de informação, fornecendo dados relevantes sobre delegacias especializadas de atendimento à mulher, serviços de assistência social, casas de acolhimento e outros recursos da rede de proteção (Alcantara et al., 2024).
A atuação da enfermagem abarca, igualmente, a articulação intersetorial com outros profissionais e serviços para garantir uma abordagem integral e multidisciplinar às vítimas de violência doméstica. O trabalho em colaboração com psicólogos, assistentes sociais, advogados e órgãos de justiça é fundamental para oferecer um suporte contínuo e personalizado, que contemple as diversas necessidades da vítima. A elaboração e implementação de planos de atendimento individualizados permitem abordar as especificidades de cada caso, promovendo a autonomia, o fortalecimento e a segurança da mulher em situação de violência (Silva et al., 2024).
No âmbito da profilaxia da violência doméstica, os enfermeiros possuem a oportunidade de atuar em programas educativos comunitários, fomentando a conscientização sobre as diferentes formas de violência, seus impactos e os recursos disponíveis para as vítimas. A realização de campanhas informativas em instituições de ensino, centros comunitários e unidades de saúde pode contribuir para desmistificar o tema, sensibilizar a população e estimular as denúncias de casos de violência. Essa atuação preventiva revela-se crucial para interromper ciclos de violência antes que eles se intensifiquem e causem danos ainda maiores (Sousa et al., 2024).
Segundo Gomes et al. (2022), a falta de preparo adequado pode conduzir à revitimização das mulheres que buscam auxílio, reforçando a necessidade de investimentos contínuos em programas de capacitação e educação permanente para os profissionais de enfermagem. A formação contínua e a atualização profissional representam outro aspecto nodal da função da enfermagem no enfrentamento da violência doméstica, pois a implementação de protocolos institucionais claros e a oferta de treinamentos específicos e regulares habilitam os profissionais a lidar com os casos de violência de maneira ética, segura e eficaz.
Os desafios enfrentados pelos enfermeiros no cotidiano da assistência incluem a sobrecarga laboral, a carência de recursos e de estrutura adequadas nas unidades de saúde e o risco de exposição a situações de conflito e violência. A despeito dessas dificuldades, sua atuação permanece indispensável para promover transformações significativas no complexo cenário da violência doméstica. Ao exercer suas atribuições com competência técnica, sensibilidade humana e compromisso ético, os enfermeiros podem constituir-se como agentes transformadores no amparo e na recuperação das vítimas (Stock et al., 2024).
A documentação minuciosa e acurada dos casos de violência doméstica atendidos configura-se como outra responsabilidade relevante da enfermagem. Registros completos e fidedignos são fundamentais para garantir que as vítimas tenham acesso aos recursos legais e de saúde necessários, além de poderem ser utilizados como prova em processos judiciais, fortalecendo a proteção e a busca por justiça para as vítimas (Silva et al., 2020).
Considerações Finais
A violência doméstica configura-se como uma das mais graves violências contra os direitos humanos, afetando, de forma direta, a saúde física e emocional de suas vítimas, com uma prevalência alarmante entre as mulheres. Este fenômeno é uma manifestação das profundas desigualdades estruturais de gênero, cuja superação exige uma mudança paradigmática tanto nas relações interpessoais quanto nas políticas públicas. O fenômeno é multifacetado, abrangendo formas físicas, psicológicas, sexuais, patrimoniais e morais, todas interligadas e frequentemente exacerbadas pelo contexto socioeconômico e cultural das vítimas. A violência, embora atinja diferentes grupos, é predominantemente vivenciada pelas mulheres, uma realidade que exige respostas específicas e efetivas no combate a esse ciclo.
O Brasil, como muitos outros países, ainda enfrenta uma grande dificuldade em enfrentar a violência doméstica de maneira eficaz. Apesar dos avanços legislativos e das discussões internacionais sobre o tema, ainda persiste uma falha significativa na implementação de políticas públicas que realmente protejam as vítimas e assegurem a responsabilização dos agressores. Além disso, a violência doméstica continua a ser um problema que se esconde por trás de portas fechadas, o que torna a sua erradicação um desafio contínuo. É essencial, portanto, que se desenvolvam estratégias integradas de atuação, envolvendo não apenas as autoridades legais, mas também profissionais da saúde, como os enfermeiros, que desempenham um papel crucial na identificação e no acolhimento das vítimas.
A atuação da enfermagem no enfrentamento da violência doméstica revela-se fundamental em diversos aspectos. Desde a identificação precoce de sinais de abuso até o acolhimento humanizado e a orientação sobre os direitos das vítimas, os enfermeiros estão na linha de frente para oferecer uma resposta sensível e eficaz. No entanto, é necessário que esses profissionais recebam treinamento contínuo e adequado para lidar com a complexidade da violência doméstica, de modo a não revitimizar as vítimas e, ao contrário, oferecer o suporte necessário para que possam romper o ciclo de abuso. A implementação de protocolos específicos nas instituições de saúde também é imprescindível para que as intervenções sejam coordenadas e sistemáticas.
Além disso, é vital a articulação intersetorial entre os serviços de saúde, assistência social, segurança pública e organizações de apoio. A violência doméstica não é um problema isolado, mas sim um fenômeno social que exige uma abordagem holística. Os profissionais de enfermagem devem atuar em colaboração com psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais para garantir que as vítimas recebam o atendimento completo e integrado, levando em consideração as múltiplas necessidades e vulnerabilidades que enfrentam. A atuação conjunta facilita a criação de planos de atendimento individualizados e assegura a continuidade do apoio necessário.
O fortalecimento das redes de apoio e a conscientização sobre os direitos das vítimas também devem ser objetivos centrais na luta contra a violência doméstica. Muitos agressores perpetuam a violência devido à falta de informação e ao desconhecimento das alternativas legais que as vítimas têm à disposição. Nesse sentido, a atuação educativa dos profissionais de enfermagem é de extrema importância, pois além de prestar cuidados imediatos, também podem informar as vítimas sobre as possibilidades de denúncia e apoio jurídico, o que pode ser um fator decisivo para que se quebrem os ciclos de violência.
Desta forma, a violência doméstica é um fenômeno complexo que exige uma resposta abrangente e bem coordenada entre diferentes setores da sociedade. A enfermagem, como profissão essencial na linha de frente do atendimento à saúde, tem um papel significativo na proteção das vítimas, não apenas por meio da identificação e do acolhimento, mas também através da educação, do apoio psicológico e da articulação com outros profissionais. A superação desse grave problema social depende da capacitação contínua dos profissionais, da implementação de políticas públicas eficazes e de uma mudança cultural que, ao romper com as normas de violência e desigualdade, promova uma sociedade mais justa e livre de violência.
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1Acadêmica do curso de Bacharel em Enfermagem da Faculdade de Ciências Sociais e Agrárias de Itapeva – FAIT – da Sociedade Cultural e Educacional de Itapeva. Email: lari.albuq@hotmail.com
2Docente do curso de Enfermagem da Faculdade de Ciências Sociais e Agrárias de Itapeva – FAIT – da Sociedade Cultural e Educacional de Itapeva. Email: enfermagem@fait.edu.br